Fonte: Revista Piauí.
Li recentemente uma correspondência publicada
no final do ano passado pelo grupo de Cassatella na Nature Immunology. Nela, o
grupo ataca de forma contumaz um artigo publicado na mesma revista pelo grupo
de Cerundolo em novembro de 2010. O grupo de Cerundolo afirma que a amilóide
sérica A1, uma proteína de fase aguda, induz a secreção de grandes quantidades
de IL-10 por neutrófilos humanos – de 100 a 400 ng/mL. Em contrapartida, o grupo
de Cassatella refuta tal dado, alegando que o mesmo experimento fora feito em
quatro laboratórios diferentes espalhados pelo mundo – um no Reino Unido, dois
na Itália e um na Alemanha - e que os resultados obtidos são contrários aos do
grupo de Cerundolo, mesmo utilizando diversos estímulos, incluindo a própria
amilóide sérica A1.
Num
primeiro momento, encarei inepto aqueles resultados. O que me interessava, a
priori, era saber se o neutrófilo produz ou não IL-10, já que muitos artigos
estão mostrando por aí a presença desse tal neutrófilo regulador; mas, a
posteriori, fiquei pensando cá com os meus botões: “teria o grupo de Cerundolo se
enganado com os dados publicados? Ou o grupo de Cassatella teria sido intransigente
demais, a ponto de levantar o dedo em riste e alegar uma possível farsa? Ou seriam
meramente resultados opostos? Ou ainda problemas técnicos durante a detecção de
IL-10?” Não cabe a mim analisar o mérito da questão, porém muito me intrigou a
forma recriminatória que um grupo comentou o trabalho do outro. Não façamos
falso julgamento de ninguém, mas certamente essas questões nos remetem a um
assunto recorrente aqui no blog: a
falta de idoneidade no mundo da pesquisa.
Estático,
acompanhei mais uma matéria publicada na revista Piauí sobre novas suspeitas de
fraude cometidas por pesquisadores brasileiros. A matéria tem como título Os alquimistas, fazendo alusão a
químicos brasileiros. O texto – muito bem escrito, por sinal – põe em xeque
onze estudos publicados, os quais foram retratados recentemente pela Elsevier.
Acompanhe ipsis litteris trechos da
matéria: “... Como engenheiro químico, o
pesquisador altera a estrutura de materiais que ocorrem espontaneamente na
natureza. Ele trabalha principalmente com argilas coletadas por geólogos em
trabalhos de campo, sobretudo na Amazônia. ‘O geólogo não tem grande interesse
nos materiais com que trabalho, às vezes até os despreza’, explicou. ‘Mas na
mão de um engenheiro químico eles podem ser modificados.’ O pesquisador insere
moléculas nessas argilas a fim de lhes conferir propriedades de interesse
industrial. ‘Esse material, por exemplo, tem esse espaço vazio’, ensina ele,
apontando para a imagem de microscópio de uma esmectita na tela de um
computador. ‘Aqui dentro posso colocar uma molécula orgânica que a torne mais
reativa.’” A técnica de ressonância magnética nuclear é então utilizada para
confirmar a inserção de tais moléculas, gerando um espectro. “O objeto das
suspeitas de fraude são justamente os resultados desses exames de ressonância
magnética nuclear. O autor e os cosignatários do trabalho estão sendo acusados
de manipular os espectros: haveria a repetição do padrão de ruídos em vários
gráficos – algo impossível para uma medida que deveria ser randômica. Quem
chamou a atenção da Elsevier para essas irregularidades foi um pesquisador
português da Universidade de Aveiro, mantido no anonimato pela editora.” (leia
a matéria completa aqui).
Aliás,
é inacreditável a disseminação desta prática abominável em todas as esferas
institucionais, seja na política, no poder judiciário, ou mesmo nas
instituições de ensino superior. É uma espécie de banalização da corrupção. E,
nas universidades, isso não está arraigado apenas no ato da publicação, mas
também se proliferou como um câncer nos recantos mais sombrios dos próprios
laboratórios de pesquisa. Não é novidade alguma ouvirmos casos de processos
judiciais, ou de pessoas que prejudicam o andamento do projeto de outrem, ou
mesmo de pessoas sem escrúpulos que burlam resultados em artigos científicos. Mas
o que torna essa prática cada vez mais frequente no ambiente acadêmico? Certamente
toda essa engrenagem é movimentada pelo olhar altaneiro da má fé, que gera
resultados rápidos e consequentemente alicerça o arrivismo.
A vida, meus caros, se esvai como neve
ao sol, e seguramente aqueles que se utilizam de interesses vis e escusos para
atingir os seus objetivos não conseguiram entendê-la. É certo que não nos interessa
a inocuidade generalizada no mundo da pesquisa, mas também não queremos adeptos
da idéia maquiavélica de que os fins justificam os meios. Assim como na
imunologia, a vida é regida pelo equilíbrio; pena que muitos não conseguiram
captar o seu verdadeiro significado.
Post
Scriptum: Ah! Sou da opinião
de que neutrófilos não produzem IL-10. E, se produzem, não alcançam níveis tão
estratosféricos como o anunciado.
Referências:
Davey MS, Tamassia N, Rossato M, Bazzoni F, Calzetti
F, Bruderek K, Sironi M, Zimmer L, Bottazzi B, Mantovani A, Brandau S, Moser B,
Eberl M, Cassatella MA. Failure to detect
production of IL-10 by activated human neutrophils. Nat Immunol. 2011 Oct 19;12(11):1017-8.
De Santo C, Arscott R, Booth S, Karydis I,
Jones M, Asher R, Salio M, Middleton M, Cerundolo V. Invariant NKT cells modulate the suppressive activity of IL-10-secreting neutrophils differentiated with serum
amyloid A. Nat Immunol. 2010 Nov;11(11):1039-46. Epub 2010 Oct 3.
De Santo C, Salio M, Dong T, Reiter Y, Cerundolo V. Reply to "Failure to detect production of IL-10 by activated human neutrophils". Nat Immunol. 2011
Oct 19;12(11):1018-20.
Post de Tiago Medina (doutorando FMRP – Iba)
Ótimo texto Tiago, parabens.
ResponderExcluirSensacional Tiaguito!!Congratulations!
ResponderExcluirParabéns pelo post! Adoro essas questões "práticas" e sombrias do nosso dia a dia. Tomara que "caia a ficha" dos contraventores, e de quem os 'alimentam'. E se isso não ocorrer, que esses assuntos levantados levem as pessoas que detém o poder e capacidade de colocar em prática alguma ação que fiscalize esses erros. Adorei o texto.
ResponderExcluirPs.: seria muito difícil um coordenador de grupo, após se deslumbrar com um gráfico e se rasgar de elogios ao futuro Einstein que o fez, solicitar que outro integrante do lab (não relacionado com o trabalho em pauta obviamente) ou mesmo um técnico, refaça alguns dos experimentos, só para confirmar o dado??? Afinal, vamos combinar que é no mínimo estranho que uma técnica "dê certo" somente na mão de uma, ou pouquíssimas pessoas, né? Será que cada laboratório tem seu "menino do dedo de ouro"? rs
Tiago, eu gostei imensamente do seu post. Primeiro porque, como iniciante na pesquisa, eu já imaginava que fraudes e a atitudes incoerentes seriam possíveis, só não imaginei que era tão frequente assim. Veja bem, tu mesmo falaste que tem até uma matéria sobre isso, no Brasil, aquela do Piauí. Eu não faço ideia se neutrófilos produzem IL-10 ou não, mas o que me intriga é: dois estudos assim na Nature? Imagine o que isso vai dar ainda... obrigada pelo post, assim, sensacional, rico e muito bom. Parabéns!!
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