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segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Com a cabeça ôca.
                  Este meu amigo tomou LSD somente uma vez na vida e ficou espantado demais para repetir a viagem. Durante a experiência psicodélica ele disse ao amigo, sóbrio, que o acompanhava: “Rapaz, como é que você pode continuar conversando enquanto derrete desse jeito?!” Para ele, o amigo parecia derreter como um sorvete ao sol – e continuava a falar como se nada estivesse acontecendo. Era espantoso demais.
                  Em 2007, eu li um artigo de neurologistas franceses que constataram que um funcionário público francês, que vivia uma vida normal, era casado com filhos, praticamente não tinha cérebro!  (Feuillet , Dufour, Pelletier, 2007). Em 2012, o filósofo  Marek Majorek expressa seu espanto de que uma menina possa viver uma vida “normal” com apenas metade do cérebro. Para ele, uma notícia como esta não deveria se resumir a uma pequena nota em um periódico científico: devia ser estampada em manchetes em todos os jornais do mundo e discutida exaustivamente por cientistas (Majorek, 2012). Este tema  - das pessoas “sem cérebro” - foi revisto recentemente por Forsdyke (2015). Quer dizer, de maneira formal e contida alguns cientistas expressam o mesmo espanto de meu amigo em sua viagem de LSD.
                  Vivi um espanto similar quando literalmente tropeçamos (Donald Hanson e eu) no fenômeno que hoje é chamado de “tolerância oral” (Hanson et al., 1977; Vaz et al., 1977). E o espanto aumentou quando constatamos que esta “tolerância” podia ser “adotivamente” transferida por linfócitos T para animais “não-tolerantes” (Richman et al., 1978). Porque a dose oral de antigeno (ovoalbumina) que usamos para desencadear a tolerância (20 mg) representa cerca de 0,5% da ingesta diária de proteínas por um camundongo adulto. Se o que encontráramos se aplicasse a todas as proteínas ingeridas e também a produtos da microbiota intestinal – quer dizer, se em vez da “memória”, uma reatividade secundária, mais intensa, o que surge é o inverso disso, uma tolerância – , então, a imunologia inteira teria que ser virada pelo avesso. (Além disso, na mesma época eu tinha encontrado Francisco Varela (Vaz and Varela, 1978) e minha cabeça mudou de vez; talvez ainda esteja ôca.)
                  Esse espanto teve um enorme efeito em minha carreira em minha vida, mas não vou falar sobre isso aqui. Hoje, aposentado, organizo um pequeno curso para alunos de biologia na UFMG; ofereço 20 vagas, aparece uma dúzia de alunos atraídos pelo título: “Imunologia: uma outra história”.  Ontem, após a primeira aula deste curso, recebi uma mensagem preocupante de um aluno: “Me senti como se eu estivesse perdendo tempo durante esses 4,5 anos na ufmg.” Respondi dizendo que estudar a imunologia tradicional não é uma perda de tempo; que sem este estudo não poderíamos sequer saber que ela está incompleta e equivocada em alguns de seus conceitos mais importantes. E me obrigo a tranquilizar a este aluno e seus colegas para que não pensem que “nada vale a pena”. Mas acho bom que eles encontrem coisas como estas, que deveriam estar nas manchetes dos jornais, mas a gente continua conversando como se não estivéssemos derretendo.


Bibliografia
Feuillet L, Dufour H, Pelletier J (2007) Brain of a white-collar worker.
                  Lancet 370:362
Forsdyke, D. R. (2015). "Wittgenstein’s Certainty is Uncertain: Brain Scans of Cured              Hydrocephalics Challenge Cherished Assumptions." Biol Theory 10: 336–342.
Hanson, D. G., et al. (1977). "Inhibition of specific immune responses by feeding protein antigens."                  Int.Arch.Allergy 55: 526-532.
Majorek MB (2012) Does the brain cause conscious experience?
                  J Conscious Stud 19(3–4):121–144
Richman, L. K., et al. (1978). "Enterically-induced immunological tolerance- I.Induction of   supressor T lymphocytes by intragastric administration of soluble protein antigens."
                  J. Immunol. 121: 2429-2434.
Vaz, N. M., et al. (1977). "Inhibition of homocitotropic antibody response in adult mice by    previous feeding of the specific antigen." J. Allergy Clin. Immunol. 60: 110.

Vaz, N. M. and F. G. Varela (1978). "Self and nonsense: an organism-centered approach to                immunology." Med. Hypothesis 4: 231-257.

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Com a cabeça ôca.
                  Este meu amigo tomou LSD somente uma vez na vida e ficou espantado demais para repetir a viagem. Durante a experiência psicodélica ele disse ao amigo, sóbrio, que o acompanhava: “Rapaz, como é que você pode continuar conversando enquanto derrete desse jeito?!” Para ele, o amigo parecia derreter como um sorvete ao sol – e continuava a falar como se nada estivesse acontecendo. Era espantoso demais.
                  Em 2007, eu li um artigo de neurologistas franceses que constataram que um funcionário público francês, que vivia uma vida normal, era casado com filhos, praticamente não tinha cérebro!  (Feuillet , Dufour, Pelletier, 2007). Em 2012, o filósofo  Marek Majorek expressa seu espanto de que uma menina possa viver uma vida “normal” com apenas metade do cérebro. Para ele, uma notícia como esta não deveria se resumir a uma pequena nota em um periódico científico: devia ser estampada em manchetes em todos os jornais do mundo e discutida exaustivamente por cientistas (Majorek, 2012). Este tema  - das pessoas “sem cérebro” - foi revisto recentemente por Forsdyke (2015). Quer dizer, de maneira formal e contida alguns cientistas expressam o mesmo espanto de meu amigo em sua viagem de LSD.
                  Vivi um espanto similar quando literalmente tropeçamos (Donald Hanson e eu) no fenômeno que hoje é chamado de “tolerância oral” (Hanson et al., 1977; Vaz et al., 1977). E o espanto aumentou quando constatamos que esta “tolerância” podia ser “adotivamente” transferida por linfócitos T para animais “não-tolerantes” (Richman et al., 1978). Porque a dose oral de antigeno (ovoalbumina) que usamos para desencadear a tolerância (20 mg) representa cerca de 0,5% da ingesta diária de proteínas por um camundongo adulto. Se o que encontráramos se aplicasse a todas as proteínas ingeridas e também a produtos da microbiota intestinal – quer dizer, se em vez da “memória”, uma reatividade secundária, mais intensa, o que surge é o inverso disso, uma tolerância –, então, a imunologia inteira teria que ser virada pelo avesso. (Além disso, na mesma época eu tinha encontrado Francisco Varela (Vaz and Varela, 1978) e minha cabeça mudou de vez; talvez ainda esteja ôca.)
                  Esse espanto teve um enorme efeito em minha carreira em minha vida, mas não vou falar sobre isso aqui. Hoje, aposentado, organizo um pequeno curso para alunos de biologia na UFMG; ofereço 20 vagas, aparece uma dúzia de alunos atraídos pelo título: “Imunologia: uma outra história”.  Ontem, após a primeira aula deste curso, recebi uma mensagem preocupante de um aluno: “Me senti como se eu estivesse perdendo tempo durante esses 4,5 anos na ufmg.” Este é um comentário bem preocupante.
                Respondi dizendo que estudar a imunologia tradicional não é uma perda de tempo; que sem este estudo não poderíamos sequer saber que ela está incompleta e equivocada em alguns de seus conceitos mais importantes. E me obrigo a tranquilizar a este aluno e seus colegas para que não pensem que “nada vale a pena”. Mas acho bom que eles encontrem coisas como estas, que deveriam estar nas manchetes dos jornais, mas a gente continua conversando como se não estivéssemos derretendo.

Bibliografia
Feuillet L, Dufour H, Pelletier J (2007) Brain of a white-collar worker.
                  Lancet 370:362
Forsdyke, D. R. (2015). "Wittgenstein’s Certainty is Uncertain: Brain Scans of Cured              Hydrocephalics Challenge Cherished Assumptions." Biol Theory 10: 336–342.
Hanson, D. G., et al. (1977). "Inhibition of specific immune responses by feeding protein antigens."                  Int.Arch.Allergy 55: 526-532.
Majorek MB (2012) Does the brain cause conscious experience?
                  J Conscious Stud 19(3–4):121–144
Richman, L. K., et al. (1978). "Enterically-induced immunological tolerance- I.Induction of   supressor T lymphocytes by intragastric administration of soluble protein antigens."
                  J. Immunol. 121: 2429-2434.
Vaz, N. M., et al. (1977). "Inhibition of homocitotropic antibody response in adult mice by    previous feeding of the specific antigen." J. Allergy Clin. Immunol. 60: 110.

Vaz, N. M. and F. G. Varela (1978). "Self and nonsense: an organism-centered approach to                immunology." Med. Hypothesis 4: 231-257.
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