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sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Predição in silico de resistência do HIV-1 ao Nelfinavir


Figura 1: A estrutura da protease do HIV-1 em sua conformação fechada (PDB: 1OHR).

A protease do HIV-1 é uma proteína amplamente estudada por diversos grupos de pesquisa no Brasil e no exterior. Ela é responsável pela clivagem das poliproteínas precursoras, liberando as proteínas virais em sua forma nativa. Este é um passo fundamental no ciclo de replicação do vírus e a inibição desta enzima impede a maturação dos novos vírions. Esta pequena proteína possui duas cadeias idênticas, cada uma com 99 aminoácidos, de modo que o sítio catalítico se localiza no centro deste dímero. O tamanho reduzido da enzima propiciou uma descrição detalhada de sua estrutura, sobretudo por cristalografia de raios-X, havendo hoje mais de 400 estruturas de protease depositadas no Protein Data Bank (PDB). Sabe-se que a protease do HIV-1 possui duas regiões flexíveis, referidas como flaps (representadas em vermelho na figura acima), as quais se abrem permitindo o acesso do substrato ao centro catalítico. A conformação dos flaps varia e os cristais disponíveis nos mostram que a enzima pode estar em uma conformação fechada, semiaberta ou aberta. A distância entre o aspartato 25 (resíduo catalítico) e a isoleucina 50 (linha tracejada em azul, na Figura 1) é normalmente utilizada para monitorar e categorizar estes estados transitórios (Perryman e cols., 2004).
Já foram identificados diversos fármacos com capacidade de inibir a protease, tendo sido este um dos principais avanços da medicina no controle do HIV-1. São normalmente pequenas moléculas capazes de se posicionar no sítio catalítico da enzima, estabelecendo uma série de interações que em conjunto conseguem impedir (ou retardar) a abertura completa dos flaps. O Nelfinavir é uma das principais drogas inibidoras da protease. O sucesso destes fármacos, no entanto, é frequentemente limitado pelo surgimento de mutações de resistência nas sequências virais (Johnson e cols. 2013).
       Em um estudo de 2011, o Centro de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CDCT/FEPPS - RS) identificou mutações incomuns – D30V e V32E – em sequências de proteases obtidas de pacientes gaúchos infectados com o vírus HIV-1 (de Medeiros e cols., 2011). Estes pacientes não estavam sob tratamento com antirretrovirais, de modo que os vírus que eles carregavam não deveriam estar sofrendo nenhuma pressão que favorecesse o surgimento de variantes de protease resistentes aos inibidores de escolha. Além disso, estas mutações foram observadas tanto em vírus do subtipo B quanto em vírus do subtipo C. Outras mutações mais comuns, nestas mesmas posições, já haviam sido descritas como sendo responsáveis pela resistência ao Nelfinavir (D30N) e a múltiplos fármacos (V32I). A questão que precisava ser respondida agora era se estas mutações "novas", identificadas nos pacientes gaúchos, também conferiam resistência ao Nelfinavir. A identificação precoce deste tipo de resistência poderia ser de grande auxílio à clínica, evitando que o tratamento fosse iniciado com um fármaco ineficiente, o que levaria a falha terapêutica. No entanto, a verificação in vitro desta resistência envolveria uma série de procedimentos caros e demorados, inviabilizando sua utilização como ferramenta de triagem.
       Em uma parceria estabelecida entre o CDCT e o Núcleo de Bioinformática do Laboratório de Imunogenética (NBLI/UFRGS), foi realizada uma avaliação in silico do impacto destas mutações sobre a resistência da protease do HIV-1 ao fármaco Nelfinavir. Os resultados deste estudo foram recentemente publicados na revista PLOs ONE (Antunes e cols., 2014).


Figura 2: Quadro apresentando as conformações observadas para quatro proteases distintas, complexadas ao Nelfinavir, em três momentos da simulação de dinâmica molecular.

Após a modelagem das proteínas com as sequências de interesse (por homologia) e a montagem dos complexos com o Nelfinavir (por ancoramento molecular), foram realizadas simulações de dinâmica molecular de 50 nanosegundos (ns). Em todos os casos partiu-se de uma conformação fechada da enzima, uma vez que o molde para a modelagem foi o cristal da protease de HIV-1 complexada ao Nelfinavir (1OHR). A Figura 2 resume alguns dos resultados obtidos. A protease selvagem do subtipo B (sB-WT, representada em preto na figura acima), que é suscetível ao efeito do Nelfinavir, permaneceu na conformação fechada em todas as simulações realizadas. A enzima selvagem do subtipo C, sC-WT, também apresentou o mesmo comportamento. Por outro lado, ambas as mutações estudadas (D30V e V32E) induziram modificações importantes no comportamento dinâmico da enzima na presença do fármaco, efeito que de acordo com os controles utilizados é indicativo de resistência ao Nelfinavir.
A mutação V32E parece ter um efeito mais dramático na dinâmica dos flaps da enzima, induzindo a troca para uma conformação aberta da protease nos dois subtipos estudados. A rede de interações estabelecida entre a droga e a enzima, no entanto, não foi a mesma nos dois casos, nem o padrão de abertura. A V32E do subtipo B (sB-V32E) evoluiu para uma conformação com abertura completa dos flaps de ambas as cadeias, permanecendo neste estado até o final da simulação. Por outro lado, a protease sC-V32E ficou alternando entre a conformação fechada e a conformação aberta, mantendo uma interação mais próxima do fármaco com a cadeia B da enzima (interação também observada na sB-WT). Outras três simulações independentes foram realizadas a partir da mesma estrutura inicial da sB-V32E, apresentando sempre o mesmo resultado final. Além disso, cabe salientar que a protease sB-V32E não difere da sB-WT apenas pela mutação na posição 32. Por terem sido modeladas a partir de sequências reais, obtidas de pacientes, a sB-V32E possui também outras mutações acessórias. Para confirmar o efeito específico da mutação V32E, foi gerado um novo modelo diferindo da selvagem por apenas um aminoácido em cada cadeia (sB-WT-V32E), o qual apresentou o mesmo comportamento de abertura completa dos flaps. Estes resultados sugerem que a mutação V32E tenha um efeito direto sobre a dinâmica de movimentação dos flaps, apresentando resistência específica ao Nelfinavir. Embora não testado neste estudo, os autores discutem que um efeito semelhante poderia ser responsável pela resistência a múltiplos fármacos descrita para a mutação V32I.
A substituição D30N é descrita como sendo a mutação primária de resistência ao Nelfinavir (Santos e Soares, 2011). Nas simulações realizadas por Antunes e cols., 2014 ela não apresentou um efeito de abertura completa dos flaps. Mas ela também afetou a dinâmica deste movimento, em um menor grau. Na Figura 2, compare o posicionamento dos flaps para a sB-WT e para a sB-D30N, em 50 ns. Observe que os flaps da sB-D30N se mantêm “desalinhados” enquanto que os da sB-WT se mantêm completamente fechados. Controlando pela distância ASP25-ILE50, foi possível observar que a sB-WT retorna a conformação fechada após 32 ns de simulação, enquanto a sB-D30N e a sB-D30V evoluem para a conformação semiaberta após 8 ns e 20 ns, respectivamente. Este resultado indica uma interação ineficiente com o Nelfinavir para a protease sB-D30V, equivalente ao efeito observado para a sB-D30N. Os autores discutem os eventos que direcionam estas alterações conformacionais na protease, salientando o papel das ligações de hidrogênio estabelecidas entre o Nelfinavir e o resíduo 30 da enzima selvagem.
Outro ponto interessante do estudo diz respeito a variação conformacional do próprio Nelfinavir. Durante a simulação da sB-WT foi possível observar que o fármaco ocupou dois mínimos de energia, os quais correspondiam a conformações distintas daquela observada no cristal (PDB: 1OHR). Os autores realizaram uma simulação adicional de 100 ns do fármaco livre em solução, partindo da conformação do cristal (PDB: 1OHR), tendo observado três conformações preferenciais: NF-i1, NF-i2 e NF-i3.

Figura 3: Variabilidade conformacional do Nelfinavir em uma simulação de 100 ns. Três mínimos de energia foram observados (NF-i1, NF-i2 e NF-i3), os quais diferiam da estrutura cristalográfica (1OHR) em mais de 2 angstrons. 

As conformações NF-i1 e NF-i2 correspondiam aos dois mínimos de energia observados na simulação da sB-WT, tendo também sido observadas na simulação da protease selvagem do subtipo C. Por outro lado, a conformação mais frequente nas proteases com mutação na posição 30 corresponde a estrutura NF-i3. Apesar de os cristais disponíveis concordarem quanto à conformação do Nelfinavir no sitio da protease de HIV-1, estes resultados de dinâmica molecular nos mostram uma grande variabilidade conformacional do fármaco. O Nelfinavir pode estabelecer distintas redes de interação com a protease do HIV-1, dependendo de quais resíduos estiverem presentes no sítio catalítico. Algumas destas formas serão mais eficientes que outras na manutenção da conformação fechada do complexo e, portanto, na inibição da enzima. Por exemplo, as mutações na posição 30 parecem impedir que o Nelfinavir adote algumas conformações de menor energia (NF-i1 e NF-i2), levando a uma conformação alternativa (NF-i3). Esta estrutura, no entanto, apresenta uma interação reduzida com a enzima, induzindo uma conformação semiaberta dos flaps. Esta conformação semiaberta, observada em 50 ns de simulação, é um indicativo de instabilidade do complexo. In vivo, na presença de outras moléculas e do próprio substrato da enzima, deverá ocorrer a dissociação do fármaco (em escalas de tempo maiores).

Além de responder a pergunta inicial sobre a possível resistência conferida pelas mutações D30V e V32E, este estudo sugere que ferramentas de bioinformática estrutural poderão ser futuramente empregadas para a triagem de pacientes, auxiliando os profissionais da saúde na escolha do medicamento mais indicado para cada paciente. Tal procedimento, em conjunto com os demais testes utilizados na clínica, poderia garantir uma remissão prolongada do HIV, prevenindo a falha terapêutica, reduzindo custos e melhorando a qualidade de vida dos pacientes.

Post de Dinler Amaral Antunes
NBLI - Núcleo de Bioinformática do Laboratório de Imunogenética.
Aluno de Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Genética e Biologia Molecular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGBM/UFRGS).





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