ATÉ QUE A MORTE OS SEPARE: Junções comunicantes e hepatotoxicidade
Nos
últimos anos, um grande esforço tem sido feito por vários grupos de pesquisa para
compreender fatores e mecanismos envolvidos na lesão hepática. Esse grande
interesse deve-se, principalmente, ao fato do fígado constituir um órgão
essencial à vida do organismo por desempenhar funções como controle metabólico,
síntese de proteínas plasmáticas e detoxificação de substâncias endógenas e
exógenas. Os fatores que causam lesão no fígado podem ser divididos, de maneira
geral, em duas grandes classes: i) agentes infecciosos, como vírus, bactérias,
dentre outros, e ii) químicos, como diversas drogas.
Nesse
sentido, a causa mais frequente de lesão hepática induzida por drogas é a
overdose acidental ou intencional (suicida) com o paracetamol (APAP), um analgésico e
antipirético de fácil acesso. A patogênese da lesão hepática causada pelo APAP
resulta na morte massiva de hepatócitos por necrose, culminando
consequentemente em falência hepática aguda. É interessante ressaltar que os
danos causados ao fígado pelo APAP continuam se propagando mesmo quando as
concentrações plasmáticas dessa droga atingem níveis próximos ao limiar de
detecção. Isso sugere que outros fatores estão associados com a progressão da
lesão. Um desses fatores é a inflamação local em resposta à morte dos
hepatócitos por necrose, caracterizada pela presença abundante de neutrófilos,
que pode amplificar a morte celular do parênquima hepático. No entanto, existe
outro modo importante de progressão da lesão: via interação
célula-célula no próprio parênquima.
Um
componente importante da manutenção da homeostase do fígado é a comunicação
direta entre os hepatócitos, mediada pelas junções comunicantes (gap junctions). As junções comunicantes
são formadas por proteínas conhecidas como conexinas, sendo que no fígado, a
conexina mais amplamente expressa nos hepatócitos é a Cx32. Já é descrito na
literatura que diversos fatores que promovem tanto sobrevivência quanto morte
celular são compartilhados entre os hepatócitos através de canais formados por
Cx32 (Fig. 1) (Vinken, 2011). Essa via também está associada à propagação da
inflamação hepática (Patel et al., 2009).
Recentemente,
Patel e colaboradores (2012) publicaram um estudo no periódico Nature Biotechnology relacionando a
influência de Cx32 e a lesão hepática induzida por drogas. Os autores
demonstraram que camundongos knockout
para Cx32 (Cx32-/-) são resistentes à lesão hepática induzida por
diferentes tipos de drogas (paracetamol e tioacetamida). Análises
histopatológicas de animais selvagens revelaram regiões extensas de necrose,
com abundante infiltrado de células inflamatórias, que não estava presente nos animais que não expressavam
a Cx32. Posteriormente, os autores realizaram experimentos em
animais selvagens com o objetivo de estudar o potencial terapêutico da inibição
farmacológica das junções comunicantes formadas por Cx32 na prevenção da
hepatotoxicidade induzida por drogas. Para essa finalidade, foi utilizado o
2APB (2-aminoetoxi-difenil-borato) para bloquear seletivamente os canais
formados por Cx32. Nesse sentido, foi observado que o pré-tratamento com 2APB
resultou em proteção à hepatotoxicidade causada por tioacetamida e paracetamol,
semelhante ao que já havia sido encontrado em camundongos Cx32-/-.
Surpreendentemente, os efeitos protetores do bloqueio de Cx32 não se restringem
apenas ao período antes do desafio dos animais com as referidas drogas. Foi
demonstrado que tanto a co-administração das drogas com 2APB quanto a
administração de 2APB após 6 horas de overdose são estratégias eficazes para proteger
os animais da falência hepática aguda. Ainda, essas estratégias reduziram a
mortalidade dos animais expostos ao APAP de 80% para 30%, e de 100% para 0% no
grupo exposto a tioacetamida, mostrando que de fato a comunicação entre as
células (por exemplo, via junções comunicantes) pode distribuir inclusive
mensagens relacionadas à morte celular, sendo portanto um mecanismo de
amplificação de lesões em órgãos.
Entretanto,
o estudo apresenta uma limitação técnica importante. Embora a relação entre
canais de Cx32 e lesão hepática induzida por drogas, descrita no trabalho, seja
inquestionável nos camundongos deficientes para Cx32, os efeitos do bloqueio dessas
conexinas e a proteção contra lesão direta das drogas precisam ser
interpretados com cuidado. A droga utilizada como bloqueador de Cx32, o 2APB, é
também um bloqueador da via de sinalização de cálcio mediada por IP3 (inositol
trifosfato). Sendo assim, o desenho experimental utilizado no presente estudo
não nos permite concluir quais efeitos são devidos ao bloqueio das junções
comunicantes e quais são influenciados por possíveis alterações na sinalização
de cálcio (estas que são muito relevantes para diversos processos celulares).
Dessa forma, estudos que continuem a investigar a contribuição das conexinas
tanto em condições normais quanto patológicas, ainda são extremamente
necessários.
Autores: André
Gustavo Oliveira, Pedro Elias Marques e Gustavo Batista
de Menezes
Laboratório de Imunobiofotônica, Instituto
de Ciências Biológicas - UFMG
Referências Selecionadas:
Suraj J Patel, Jack M Milwid, Kevin R King, Stefan Bohr,
Arvin Iracheta-Velle, Matthew Li, Antonia Vitalo, Biju Parekkadan, Rohit Jindal,
Martin L Yarmush (2012). Gap
junction inhibition prevents drug-induced liver toxicity and fulminant hepatic
failure. Nature Biotechnology, 30:179-185.
Mathieu Vinken
(2011). Role of connexin-related signalling in hepatic homeostasis and its
relevance for liver-based in vitro modeling. World Journal of Gastrointestinal
Pathophysiology, 15:82-87.
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