Nelson Vaz
Na língua portuguesa, palavras como restabelecer (restabelecimento) ou regenerar (regeneração) adquiriram significados próprios que se afastam da ideia de “estabelecer novamente” (re-estabelecer) ou “gerar de novo” (“re-gerar”). Em linguagem coloquial, a ideia da construção (geração) ou estabelecimento do organismo como uma entidade pode nos iludir duplamente.
Em primeiro lugar, não é evidente de imediato que o carácter dinâmico da construção de um organismo adulto é incessante; pareceria que o organismo é estabelecido, construído (gerado), como um processo que tem começo, meio e fim, e que se completa com o surgimento deste organismo adulto. Na realidade, o organismo nunca está pronto no sentido de atingir um estágio final. Um organismo multicelular nunca interrompe sua re-construção (re-geração) sob pena de se desintegrar e desaparecer. Esta re-construção (re-geração) é um processo altamente conservador que continua a construir recursivamente uma entidade à qual podemos atribuir uma identidade. O processo de construção de um organismo multicelular a partir de uma única célula - o desenvolvimento - é um dos mistérios mais espetaculares na natureza, mas sua manutenção prolongada (sua epigênese) é também um imenso mistério, porque a mudança é uma condição constitutiva do viver. Jorge Mpodozis se refere de forma magistral a aquilo muda e aquilo que se conserva no viver:
“Há plasticidade nos modos de desenvolver. Os caminhos do desenvolvimento têm plasticidade em todos os momentos, e isso é o que permite essa maravilhosa diversidade de linhagens de seres vivos. Mas o problema não é o que é plástico, e sim o que se conserva. Se a mudança é uma condição constitutiva do viver, então, como se conserva aquilo que se conserva?” (Mpodozis, 2011)
Eis aqui uma pergunta formidável e raramente ouvida:
A vida está
dentro da vida
em si mesmo circunscrita
sem saída
Nenhum riso
nenhum soluço
rompe
a barreira de barulhos.
A vasão
é para o nada.
Por conseguinte
não vasa.
Em segundo lugar, a linguagem coloquial sobre a construção (geração) ou estabelecimento do organismo é uma ideia centrada no organismo adulto, que omite a necessidade de estruturas viáveis capazes de atravessar as múltiplas etapas que vão de uma única célula ao embrião e deste ao organismo jovem e ao adulto. Na introdução de um livro recente sobre evo-devo, a área de biologia que investiga relações entre a evolução e o desenvolvimento biológico, Walace Arthur (2004) fala de um cavalo microscópico:
“O cavalo é um animal microscópico que é incapaz de se mover. Consiste de um número bem reduzido de células (umas poucas centenas, comparadas aos trilhões achadas em um ser humano). Estas células não estão organizadas em sistemas sofisticados de órgãos. O cavalo é um parasita de outro animal, e adquire desta forma seus recursos de seu hospedeiro. Ele é inteiramente incapaz de obter energia de qualquer outro modo.”
e logo depois,
“ Minha descrição está correta. Ela apenas se refere a um momento no ciclo da vida do cavalo que é diferente do momento em que usualmente pensamos à menção da palavra “cavalo”. Pensamos usualmente em um cavalo adulto, ou então em um lindo potro ainda instável em suas pernas. O que descervi é um cavalo quando ainda é um embrião precoce, invisível aos nossos olhos porque está implantado profundamente nos tecidos maternos.”
Enfim, o problema do “gerar de novo”, do “re-gerar” incessante dos seres vivos; a capacidade mudar e, ao mesmo tempo, conservar sua identidade, é um problema raramente tratado na Biologia e nunca mencionado na Imunologia, que é minha área de atuação.
A Imunologia
Aparentemente, a Imunologia se enquadra perfeitamente em um cenário que enfatize aspectos da construção/ manutenção do viver. Tradicionalmente, a missão do sistema imune é enfrentar agentes patogênicos e outros materiais externos que invadam o corpo, ou seja, conservar a identidade saudável do organismo. Esta detecção e eliminação de invasores deve estar finamente regulada para evitar excessos, como nas reações alérgicas, e desvios de alvo que levem a auto-agressões imunológicas, como nas chamadas doenças autoimunes. Evitar a reação a produtos do próprio organismo - a chamada “tolerância” imunológica - é considerada um aspecto essencial da atividade imunológica.
A solução proposta na teoria de Seleção Clonal (Burnet, 1959) é neo-Darwinista, propõe algo similar à seleção natural, um processo importante na explicação do processo evolutivo segundo Darwin (1857). Este processo requer uma fonte de variantes gerados ao acaso e, uma segunda etapa, na qual estes variantes competem entre si, quando ocorre a seleção dos elementos mais aptos. Na Origem das Espécies, a variação ao acaso seria devida à reprodução sexual e outros processos aleatórios de variação dos genes, como mutações e a competição de daria no próprio viver.
Arthur, W. (2004). Biased embryos and evolution Cambridge: Cambridge University press. p.1
Ferreira Gullar (1987) In Barulhos,José Olympio, Editora Rio de Janeiro
Hodgkin, P. (2008). The golden anniversary of Burnet's clonal selection theory. Immunol Cell Biol 86, 15.
Maturana, H. (2002). Autopoiesis, structural coupling and cognition: a history of these and other notions in the biology of cognition. Cybernetics & Human Knowing 9, 5-34.
Mpodozis, J. (2011) Epígrafe, In Vaz , N.M., Mpodozis, J.M., Botelho, J.F., and Ramos, G.C. (2011). Onde está o organismo? - Derivas e outras histórias na Biologia e na Imunologia (Florianópolis: editora-UFSC).
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