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quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Sistemas Imunes I: O MHC dos Baskervilles


"So, the naturalists observe, the flea,

Hath smaller fleas that on him prey;

And these have smaller still to bite 'em;

And so proceed, ad infinitum”

Jonathan Swift

Com o post de hoje vamos inaugurar no blog da SBI uma coluna mensal dedicada a examinar a imunologia a luz da evolução. Não tem erro no título, vamos mesmo falar de sistemas imunes, no plural. Passearemos pelas diversas células e estruturas que participam de respostas imunes nos 34 (dependendo de quem está contando) filos do reino animal, e mais o ocasional fait divers do mundo das plantas, protozoários e outras criaturas esquisitas. Alguns destes componentes serão homólogos dos nossos velhos conhecidos do sistema imune dos vertebrados com mandíbula, outros serão análogos facilmente reconhecíveis, soluções convergentes para problemas comuns, e ocasionalmente veremos ainda moléculas e mecanismos completamente únicos.

Para começar, vamos ficar no nosso pequeno raminho da árvore da vida, o sub-filo Vertebrata, filo Chordata, ali no graveto dos peixes ósseos. Mais especificamente começaremos com Gadus morhua, também conhecido (e consumido) como bacalhau.

Kjetill Jakobsen, da Universidade de Oslo, e vários colegas (como o paper é de genômica, põe et al nisso) decidiram sequenciar o genoma do bacalhau com objetivos principalmente comerciais. Até ai, tudo bem, a Noruega vive em grande parte da pesca do Gadus morhua, e enfrenta vários desafios importantes, desde o declínio acentuado dos estoques naturais (sim, este declínio tem muito a ver com o fato da Noruega e outros dependerem da pesca do bacalhau, mas adiante…), até uma difícil transição para a piscicultura. Estes dois pontos já obrigariam a equipe a prestar uma atenção especial às sequências ligadas ao sistema imune do bicho no seu genoma. Mas a esta altura, genomas sequenciados já não são novidade. Por que então encontramos Kjetill e seus colegas nas páginas da Nature*, com destaque em várias outras revistas, depois de passar meros 830 milhões de pares de base pela plataforma 454 da Roche?

O genoma do bacalhau revelou muitas das idiossincrasias esperadas de sistemas biológicos, adaptações interessantes as suas condições peculiares de vida. Lá esta por exemplo, uma modificação curiosa da hemoglobina, talvez uma solução para problemas decorrentes das baixas temperaturas que enfrenta este peixe. Mas a grande surpresa veio por conta do que não estava lá.

Nosso amigo da mesa Natalina (era a especialidade da minha avó) vive muito bem obrigado tendo perdido todos os genes do MHC classe II, bem como a cadeia invariante. Provavelmente como consequência disto, o gene CD4 também não é funcional no bacalhau, embora neste caso pelo menos encontramos o seu fóssil, na forma de um pseudogene truncado. Ou seja, o bacalhau perdeu completamente a resposta T helper tradicional- o que explica uma observação que intriga a (pequena, e muito escandinava) comunidade dos imunobacalhólogos desde pelo menos 2005: o bacalhau faz uma resposta clássica de anticorpos muito fraca a seguir a imunização. Não sabemos ainda como funciona o sistema imune do bacalhau, mas estão no genoma muitas pistas interessantes: genes da família toll extremamente diversificados, expansões de algumas famílias de citocinas, e uma muito intrigante diversificação dos genes do MHC classe I. Os autores falam em 100 locos (não alelos, isso seria banal para o MHC, locos) identificados de MHC I, o que os leva a propor uma hipertrofiada via de cross-presentation como possível alternativa. O que os autores não discutem é que pela teoria clássica de evolução da diversidade do MHC (que prevê muitos alelos e poucos, muito poucos, locos), este arranjo levaria normalmente à deleção de quase todos os linfócitos CD8 durante o desenvolvimento no timo. Perceber a seleção de células T no timo do bacalhau de repente tornou-se um problema fascinante.

Vale aqui adicionar alguns detalhes sobre o bacalhau. No mar ele atinge até 2 metros de comprimento e pode pesar 96 quilos ou mais. A maturidade sexual chega entre os 2 e 4 anos de idade, e ele vive 13 anos ou mais. Se adicionamos a isto uma dieta omnívora, e muitos (e muito diversos) parasitas (Perdiguero-Alonso et al, Parasites & Vectors, 2008, 1:23), temos a receita para um vertebrado com bons incentivos para ter uma imunidade eficiente. Além da resposta de anticorpos fraca que mencionamos acima, o bacalhau também apresenta um elevado número de neutrófilos em circulação, e uma alta concentração de IgM no soro.

Um modesto projeto ligado a piscicultura nos trouxe então a um ponto muito interessante, que remete a uma das motivações iniciais do estudo da evolução do sistema imune: a de que alargando o número de espécies sobre as quais conhecíamos algo a respeito do sistema imune, cedo ou tarde conseguiríamos deduzir a sequência evolutiva mais lógica para o surgimento do sistema imune dos vertebrados. As hipóteses foram se sucedendo ao longo dos anos 70 e 80. A immunoglobulina seria mais próxima da molécula primitiva, por se ligar diretamente aos antígenos. Não, seria o receptor de célula T, por ter apenas uma forma, presa a membrana. O proto-linfócito e seu receptor seriam parecidos com as células gama delta modernas (este argumento ia frequentemente buscar apoio em Haeckel). Enfim, eram hipóteses a gosto do freguês.

E ai veio a descoberta do Big Bang: era tudo ou nada. Na evolução do sistema imune dos vertebrados, apareciam juntos, nos peixes cartilaginosos, todos os seus principais componentes. Lá estavam, no tubarão, perfeitamente reconhecíveis, as imunoglobulinas, os receptores T (alfa beta e gama delta), CD4, CD8, MHC I e II. A sequência que nos interessava no melhor dos casos sumiu com a extinção dos placodermes, os assustadores peixes com armadura que dominavam os mares do Siluriano. Agora, pela via da perda de um ramo crucial do sistema imune, podemos investigar como se vive sem um componente fundamental da nossa imunidade.

Thiago Carvalho

*Star et al, “The genome sequence of Atlantic cod reveals a unique immune system”, Nature 2011, AOP.

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4 comentários:

  1. Muito bom Thiago!
    Parabéns pelo post.
    Espero pelo próximo capítulo...
    Abraços, Tiago.

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  2. Bom dia Thiago, muito legal o material e a idéia, parabéns...como posso participar? Abs. Álvaro

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  3. Ótima ideia, estudar biologia e medicina a luz da evolução é muito mais fácil. Continue postando sobre o assunto

    Obrigado

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  4. Post de estreia de Thiago Carvalho, que escreve para o blog diretamente do Instituto Gulbenkian de Ciência, em Portugal. Bem-vindo, Thiago!

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