BLOG DA SOCIEDADE
BRASILEIRA DE IMUNOLOGIA
Acompanhe-nos:

Translate

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Antonio Coutinho por Nelson Vaz

Fala de Nelson Vaz em recepção a Antonio Coutinho como convidado do Instituto de Estudos Avançados e Transdisciplinares (IEAT) da UFMG, Belo Horizonte, em 01/09/2011

“A ciência produz conhecimento e compreensão
tais que seu produto mais nobre é a tolerância”
(Coutinho, 2001, discurso para
estudantes do IGC, Oeiras)


Matheus Nachtergale filmava “Festa da menina morta”, no Amazonas, quando foi visitado pelo ator Paulo José, já velho e doente, que se encantou com o filme e pediu para participar, dizendo: “Eu posso fazer um padre, um bêbado, um louco..” E Matheus respondeu: “Faça um padre bêbado louco!”

Este enorme poder denotativo das classificações me ocorre agora quando me cabe a honra e o prazer de apresentar Antonio Coutinho, “o cientista português”, como eu o apresentava na SBPC de 1982 - e as pessoas riam. Porque Antonio agora é muito mais português do que era naquela época, pois abriu mão de uma das carreiras mais brilhantes que conheço na Biologia Experimental, para se dedicar a Portugal, abandonar sua posição como Diretor da Unité d’Immunobiologie no Institute Pasteur, em Paris, para chefiar o Instituto Gulbenkian de Ciências, em Oeiras e mudar da água para o vinho a formação de pesquisadores portugueses em biomedicina.

Porque Antonio é mais que “um padre bêbado louco”. Além de português (de Lisboa), ele é sueco (de Estocolmo), depois suíço (de Basel), depois novamente sueco (Umeä), depois francês (de Paris) e novamente português (de Oeiras). Em cada um destes lugares em que ficou, Antonio deixou muitas marcas, principalmente nas vidas das pessoas que conviveram com ele. E elas foram também deixando suas marcas em sua vida.

Por felicidade minha e de muitos brasileiros, tive a inspiração de trazer Antonio ao Brasil para uma reunião que organizei na SBPC, em Campinas, em 1982, para um simpósio sobre “a natureza do conhecer”. Minha carreira havia descarrilhado (ou encontrado novos trilhos) poucos anos antes, em Denver, quando eu encontrei Francisco Varela e o convidei para meu laboratório. Seis meses de convívio com Varela e meu encontro com as contradições da “tolerância” imunológica a alimentos haviam me convencido de que tudo o que eu pensara até então, estava errado E eu abandonei a ideia de trabalhar como um cientista norteamericano bem sucedido e voltei ao Brasil.

Poucos anos depois, decidi chamar Varela, então no Chile, e seu mentor, Humberto Maturana, para um simpósio no Brasil e tomei a feliz decisão de convidar também Antonio Coutinho, que me parecia uma das únicas pessoas na imunologia que poderia entender as ideias destes dois chilenos revolucionários. Para contrabalançar, chamei também o Prof. Oswaldo Frota-Pessoa, famoso geneticista brasileiro, assim como “advogado do diabo”.

Muita coisa resultou desta reunião. Poucos anos depois, Varela estava em Paris e participou com Antonio, no Institute Pasteur, de uma fase brilhante da investigação em imunobiologia, à qual se agregou também John Stewart. Eu mesmo participei daquelas reuniões por alguns meses em 1986. Já nesta época, Antonio se preocupava com a possibilidade de voltar a Portugal.

Nesta época surgiu também a ideia dos “Cursos Yakult”, no Brasil. Com o auxílio de Susumu Tonegawa - colega de Antonio em Basel e ganhador do prêmio Nobel - foram organizados “cursos” de curta duração nos moldes de “cursos de verão” europeus, nos quais pequenos grupos de estudantes convivem com grupos de pesquisadores de vanguarda em algum lugar remoto e agradável. Creio que cerca de meia-dúzia destes “cursos” foram realizados em praias do litoral paulista com grupos seletos de imunologistas europeus e norteamericanos e estudantes brasileiros.

Muitos destes estudantes foram depois convidados para treinamento em laboratórios estrangeiros como resultado deste convívio e vários deles foram para o laboratório de Antonio, em Paris. Para citar apenas alguns: Paulo Araújo, Rita Vasconcellos, José Mengel, Luiz Antonio Andrade, Alberto Nóbrega, Regina d’Império Lima, todos figuras importantes no cenário da imunologia nacional, e, com destaque, seu anfitrião agora, na UFMG, o Prof. Tomaz Mota-Santos, que saindo da Reitoria da UFMG, voltou à bancada do laboratório em Paris, no laboratório de Antonio, onde fomos contemporâneos. Por estas e muitas outras realizações importantes para o Brasil e seus estudantes e cientistas, Antonio recebeu a Ordem do Cruzeiro do Sul, da Presidência da República.

A formação de muitos pesquisadores em Imunologia, incluindo vários brasileiros portanto, é um dos aspectos notáveis da carreira de Antonio Coutinho. Mas isto só mostra a importância que realmente tem quando compreendemos algo do trabalho de pioneiro Antonio em Imunologia - uma imunologia “sem antígenos” como ele costumava dizer.

Porque acredita-se que a imunização, como ocorre na prática da “vacinação”, é uma “lição” molecular que supostamente impomos ao organismo das crianças, por exemplo, com a gotinha contendo os vírus da poliomielite. Todas as crianças, à revelia de sua diversidade individual, são “imunizadas”, protegidas da poliomielite. Uma espécie de história de Pinochio ao avesso: não mais um boneco de pau transformado em humano, mas sim todas as crianças, com suas diferenças, que se transformam em uma mesma coisa - a criança imunizada.

Na realidade, não pode ser isto o que se passa, porque o “ensino” é impossível, embora a “aprendizagem” seja inevitável. Os seres vivos são fluxos incessante de mudança e a “aprendizagem” é um aspecto dessas mudanças que nos interessa de alguma forma particular. O que a “vacinação” faz é favorecer certos trajetos nestas mudanças. Mas o organismo não “obedece” cegamente a lições moleculares. Ninguém gosta de obedecer, e o organismo também não obedece ao que se passa com ele.

Médico em início de carreira em Lisboa, Antonio saiu de Portugal para não obedecer aos militares em sua guerra em Angola e foi aceito para um doutorado em um importante laboratório de imunologia na Suécia. Desde seus experimentos iniciais de doutorado no laboratório de Goran Möller, em Estocolmo, Antonio se preocupou com a ativação espontânea (“natural”) de linfócitos, que é assim como a “aprendizagem” incessante dos linfócitos sobre o organismo do qual fazem parte.

Quando tudo já tinha “dado certo” em um início brilhante de carreira na Suécia, Antonio frustrou as esperanças de Goran Möller, abandonou tudo e foi para o Instituto Basel de Imunologia, trabalhar com Niels Jerne - o verdadeiro criador da Imunologia moderna. A passagem de Jerne como Diretor do Instituto Basel de Imunologia é um dos capítulos mais relevantes da Imunologia moderna, em vários aspectos, não apenas pelos prêmios Nobel concedidos a Tonegawa, a Kohler e Milstein, e ao próprio Jerne. O próprio Jerne passou a considerar Antonio como uma das melhores mentes da imunologia.

De Basel, Antonio se muda para uma pequena cidade sueca, perto do círculo ártico (Umeä) onde forma uma coleção de jovens imunologistas suecos. Poucos anos depois, alguns destes jovens suecos, e também portugueses e bascos, se mudam com ele para Paris onde fundam a Unité d’Immunologie no Instituto Pateur, uma equipe que produziu uma imensa massa de resultados contrários à linha geral de pensamento em imunologia, que ainda acredita que o organismo “obedece” (responde) a estímulos antigênicos.

É esta outra empreitada tão bem sucedida em Paris, que Antonio abandona para criar o que finalmente resultou no atual Instituto Gulbenkian de Ciência, em Portugal. A Fundação Gulbenkian é uma das grandes Fundações internacionais, secundada em recursos apenas pela Rockefeller, e pela Fundação Ford, mas que até recentemente vinha empregando seus recursos quase exclusivamente em arte e cultura. Sob a Direção de Antonio Coutinho, o Instituto Gulbenkian de Ciência haveria de alterar este rumo.

Antonio tem realizado algo formidável pela ciência biomédica portuguesa, pela formação de seus cientistas biomédicos, que após seu trenamento em Oeiras, têm liberdade para completar seu doutorado em laboratórios à sua escolha em qualquer lugar do planeta.

Hoje, mais uma vez, Antonio volta ao Brasil para nos ajudar, em um esforço do IEAT para a melhoria de nossas condições de ensino e pesquisa. Estou certo de que estaremos gratos e bem convencidos da sabedoria desta decisão quando ouvirmos o que Antonio tem a nos dizer.

Com vocês, Antonio Coutinho.

Comente com o Facebook :

Nenhum comentário:

Postar um comentário

©SBI Sociedade Brasileira de Imunologia. Desenvolvido por: