Não é raro
escutarmos nas conversas entre os colegas da nossa área - no momento de cafezinho,
reuniões e outros eventos dos departamentos - o tema: ensino. E aí a confusão
sobre esse tema está instalada. Pior, as concepções sobre o tema ficam
cristalizadas em formas de verdades que vão sendo passadas de geração em
geração nos laboratórios. A principal delas, e uma das mais importantes em
termos da estrutura do tema, é: qual a diferença entre Ensino e Pesquisa em
Ensino?
Na grande
área das humanidades do conhecimento a questão do ensino e pesquisa em ensino estão
estruturadas claramente como entidades distintas. O que são de toda verdade e
que apresentam algumas interfaces entre elas que são pertinentes e de direito.
Entretanto, nas grandes áreas das ciências experimentais, às quais estamos
inseridos, as vertentes de ensino e pesquisa em ensino assumem a marginalidade
na face do saber como:
i) tema de
pesquisa para ser feita quando você estiver as vésperas da aposentadoria;
ii)
preocupação que só devemos ter depois de uma colossal publicação nas grandes
revistas de imunologia e afins;
iii) destinada
à preocupação apenas para os programas de extensão; e ainda pior:
iii)
estigmatizada e delegada àqueles que não sabem fazer bancada ou ‘ruins de
bancada’ ou o fulano(a) ‘mão-podre’ do laboratório.
A
consequência de todas essas definições cristalizadas nos nossos discursos
cotidianos é o atraso no avanço da reflexão sobre ensino e ainda mais sobre pesquisa
em ensino nas áreas de ciências biológicas e médicas dos cursos de graduação
brasileiros. Refletindo intrinsecamente na formação de recursos humanos
liberados às centenas por ano com títulos de mestres e doutores que vão assumir
posições nevrálgicas na universidade (ensino/pesquisa/extensão) para formar
mais profissionais. Mas afinal, o que é ensino? E o que é pesquisa em ensino?
Aqui
divido meu texto em três grandes partes na tentativa de faiscar a discussão. A
primeira parte, a seguir, na dialética do que é ensino e pesquisa em ensino; na
segunda parte, exemplifico a importância de uma boa pesquisa realizada em
ensino de imunologia por pesquisadores brasileiros; a terceira são algumas propostas
alicerçais para a pesquisa em ensino de imunologia.
1) Os dois caminhos: diferentes e não um mais curto ou fácil que o outro.
Nas consultas de qualquer dicionário da nossa
língua encontramos definições que fazem uníssono para os termos de Ensino e
Pesquisa em Ensino. Numa definição desses conceitos todos podemos dizer que Ensino
é qualquer forma sistematizada de transmitir algum conhecimento para outrem em
ambientes ditos como escolares (nosso caso aqui é a universidade). Pesquisa
é um processo sistemático, utilizando metodologias específicas, para construção
do conhecimento humano. Dessa forma, a Pesquisa em Ensino significa processo
sistêmico, com metodologias e fundamentos teóricos próprios, sobre qualquer
forma sistematizada de transmitir algum conhecimento a outrem. A pesquisa
em ensino de ciências, no Brasil, obedece essa estrutura desde meados da década
de 60 do século XX. E as metodologias usadas nessa grande nova área podem ser
emprestados, sem grandes conflitos, à pesquisa para ensino das ciências
biológicas e médicas do ensino superior.
Assim, a
forma confusa e petrificada de associar ‘se ensino faço ensino, lógico trabalho com
pesquisa em ensino’ pode ser rompida e abrir para mais outro ponto de
grande confusão: a prática docente. Sim, a prática docente exige pesquisa,
porém pesquisa para sua prática docente e não como geradora de conhecimento
acadêmico. E como fazemos esse exercício da prática docente na atualidade? A
grande única forma de contato que o pós-graduando se depara no seu processo de
formação são com os ‘estágios de docência’ que na sua grande maioria constituem,
de grande parte cronológica, de observação de algum docente experiente e uma
aula de regência no meio disso tudo. Na grande maioria das vezes, o estudante
passa por esse estágio, sem uma reflexão, com uma base teórica especializada,
ou seja, sem ler um único texto sobre ensino e estágios supervisionados em
ensino, e refletindo sobre a prática do
docente supervisor e ainda sobre sua prática docente na ocasião. O estágio fica
relegado ao cumprimento de créditos.
A pesquisa
em ensino não soluciona – nem de perto e nem tem essa intenção – de resolver os
problemas e desafios da prática docente. Ela fornece bases de conhecimento de
metodologias, como importância do experimento, do ensino por investigação, de
ensino em espaços não formais e etc, que podem ser refletidos na prática
docente. A pesquisa em ensino ainda gera conhecimento, propõe metodologias para
a investigação, refuta práticas, abre perspectivas de metodologias para o
ensino, testa hipóteses, valida sequências didáticas. Ou seja, ela é sim uma
linha de pesquisa de extrema importância no campo de geração de conhecimento
novo, inovador, com publicações de importância e produtos para o mercado, como
exemplo de programas de didáticos para computador. Fazer pesquisa em ensino nas
áreas de ciências biológicas e médicas não é estar na zona marginal da ciência,
mas ela ocupa um dos pilares de sustentação para qualquer atividade investigativa
experimental.
2) Um exemplo dos mais importantes: o conceito.
Um
dos assuntos mais espinhosos para qualquer professor de imunologia – seja ele
iniciante ou emérito – é discutir com os alunos da graduação (que chegam
impregnados das marteladas midiáticas e dos livros básicos do ensino médio)
sobre o conceito básico: o que faz a imunologia? Ou, o qual a função do sistema
imunológico? As primeiras respostas são sempre as mesmas: que a função do
sistema imunológico está fixada na díade ataque-defesa, ou seja, da relação de
microrganismos com o organismo. Porém esse drama não acaba por aí. Ele se
espalha de forma natural e insolúvel no livros didáticos de imunologia, esses
que usamos nas nossas aulas para a graduação. E ai não há professor, milagreiro
que possa dissolver.
Esse
resultado foi interessantemente estudado e concluído (em um precioso e raro artigo
de ensino de imunologia no Brasil) por Siqueira-Batista e colaboradores (2009).
Nesse artigo, Siqueira-Batista se utiliza de uma metodologia simples e precisa
na área de ensino que é a investigação, busca textual, sobre o tema nos livros
didáticos, fazendo uma:
(a)
revisão crítica da literatura, com textos obtidos nos livros e nos capítulos de
livros de Imunologia;
(b)
leitura crítica dos textos;
(c)
elaboração de síntese reflexiva sobre o tema.
Esse estudo concluiu que os livros didáticos de imunologia, em sua
quase totalidade, definem o sistema imunológico como ‘arsenal’, ‘militar’, não
abrindo possibilidades de apresentação das funções do sistema imunológico, como
por exemplo, na face da homeostasia.
Esse trabalho mudou os rumos do
ensino de imunologia? Não. E não por diversos motivos, dentre eles, a ausência
da discussão do tema de forma firme e vertical, ou até, mesmo pela
cristalização de como a história da imunologia foi construída ao longo desses
anos e contextos históricos envolvidos. Ou seja, um bom tema para pesquisa.
3)
as propostas
Ensino, a prática docente, Pesquisa em Ensino e geração de
conhecimento científico da área, apesar de terem suas diferenças claras,
apresentam interfaces como qualquer outra grande área, como por exemplo,
produtos gerados na pesquisa podem virar sequências didáticas e aplicadas no
ensino do cotidiano da disciplina e formação de pesquisadores no tema. Além de
gerar conhecimento básico para a temática: o que é ensinar imunologia?
Dessa forma, para maior amplitude da pesquisa em ensino de imunologia,
as propostas são simples e altamente executáveis:
a) reconhecimento de que pesquisa em ensino de imunologia é uma linha
produtiva e com perspectivas de integração com outras linhas do departamento e
na universidade;
b) contratação de docentes com essa linha de pesquisa nos
departamentos de imunologia;
c) financiamento de projetos para essa linha de pesquisa como auxílio
financeiro e bolsas de pós-graduação.
Post de Daniel Manzoni
Post de Daniel Manzoni
Referências bibliográficas:
SIQUEIRA-BATISTA,
R.; GOMES, AP.; ALBUQUERQUE, V.S.; MANDALON- FRAGA, R.; ALEKSANDROVIWZ, A.M.C.;
GELLER, M. Ensino de Imunologia na educação médica: lições de Akira Kurosawa.
Revista Brasileira de Educação Médica. 33, 186-190, 2009
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