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sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Malária aviária

A malária aviária foi motivo de grande interesse no período compreendido entre 1890 e 1940, pois os pesquisadores a viam como bom modelo de estudo para malária humana.  Provavelmente esse ímpeto tenha sido em parte alicerçado pelo próprio Laveran, que convocou médicos a avançarem na pesquisa com parasitos hemosporídeos de aves, terreno normalmente ocupado na época por naturalistas. De fato, muitas descobertas foram aplicadas, como a observação in vitro da fusão entre macro e microgametócito, formando o oocineto. Na época, se supôs que o mesmo poderia ocorrer com os agentes etiológicos da malária humana.  Em 1898, o médico britânico Ronald Ross descreveu a fase sexuada do ciclo do Plasmodium relictum no sistema digestivo do vetor Culex e consequente infecção da ave após sua picada. No ano seguinte, foi demonstrada a fase sexuada do ciclo em vetores também da malária humana.  Curiosamente, Aedes aegypti é um excelente vetor para um Plasmodium aviário altamente patogênico para galinhas e aves selvagens, Plasmodium gallinaceum, endêmico no Sudeste Asiático.
As malárias aviárias possuem patogênese multifatorial, estando relacionada com anemia, inflamação, coagulopatia e alterações neurológicas. Como resultado da infecção experimental, podemos observar 70% ou mais de parasitemia em aves infectadas por Plasmodium gallinaceum ou baixas parasitemias em infecção por P. juxtanucleare, ambos em galinhas.  A hemólise durante a fase eritrocítica não é somente intravascular, mas também extravascular, uma vez que a inibição de i-NOS resulta em menor perda de hemácias. 
Mas se há similaridades em sua patogênese, há profundas diferenças em seus ciclos de vida quando comparadas com as malárias dos primatas. Existe um ciclo exoeritrocítico, embora este não ocorra nos  hepatócitos, mas nos macrófagos. Após a inoculação dos esporozoitos pela picada do vetor, estes podem infectar macrófagos dermais e converterem-se em criptozoitos e posteriormente em metacriptozoitos em outros tecidos, inclusive macrófagos alveolares. Pode haver conversão em fanerozoitos e continuar o ciclo exoeritrocítico ou em merozoitos e finalmente começar o ciclo eritrocítico. Entretanto, merozoitos podem novamente converterem-se em fanerozoitos e haver continuação do ciclo exoeritrocítico, inclusive em endotélios cerebrais.

Atualmente, há preocupação de introdução de patógenos em áreas não endêmicas. Verdadeiros catástrofes ambientais foram seguidos pela introdução de Plasmodium relictum e seu vetor Culex quinquefasciatus no Havaí, com a extinção de várias espécies de pássaros.  Recentemente, em estudos em área de mata seca no estado de Minas Gerais pelo grupo da professora Érika Braga, foram identificadas 89 linhagens de Plasmodium em aves, sendo a grande maioria completamente desconhecida da ciência no que diz respeito aos aspectos imunobiológicos. Vale ressaltar que a maioria dos animais capturados em redes em estudos de campo, normalmente não apresentam alteração clínica, estando provavelmente na fase crônica da doença.  Essas análises não levam em conta, obviamente, a fase aguda da doença, quando a morbidade prejudica o vôo e consequentemente a captura. Desta forma, estudos experimentais são extremamente importantes ao conhecimento das relações parasito-hospedeiro destes parasitos, principalmente na fase aguda da doença.  Portanto, parece ainda haver um amplo campo de estudo a ser explorado no que diz respeito a malária aviária, especialmente no Brasil. 


Post de Farlen Jose Bebber Miranda
Pós-doutorando do Laboratório de Imunopatologia
CPqRR/ Fiocruz

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

A grande maioria de células T CD4+ naïve patógeno-específicas são capazes de produzir células de memória durante uma infecção



Recrutamento de células T de memória: Células T auxiliares de memória induzidas durante imunização reconhecem o antígeno apresentado. Fonte: http://www.historyofvaccines.org/m/how-vaccines-work© 2016 The College of Physicians of Philadelphia.

Quando células T respondem à um determinado patógeno, elas proliferam e uma fração de suas progênies dará origem às células de memória de longa duração. Infecções em vertebrados elicitam linfócitos T CD4+ de memória que participam da imunidade protetora. O processo inicia-se quando peptídeos microbianos ligados ao complexo principal de histocompatibilidade de classe II (MHC-II) são apresentados às células do hospedeiro e reconhecidos pelos receptores de células T (TCRs), a partir de poucas células T CD4+ naïve de um vasto repertório. Essas células proliferam, diferenciando-se em tipos celulares distintos de células efetoras que auxiliam células B e macrófagos a eliminarem a infecção. Cerca de 90% dessas células desaparecem e o restante constituem as denominadas células de memória de longa duração. Estudos prévios indicam que algumas células T CD4+ naïve podem terminalmente se diferenciarem em células efetoras, enquanto outras, com maior avidez de ligação aos TCRs, transformam-se em células de memória. Por outro lado, outros estudos propõem que a partir de uma célula única poderiam ser formadas ambas subpopulações, células efetoras e de memória. Assim, a contribuição de todas as células naïve no repertório policlonal para o pool de células T de memória ainda não estava bem definido.

No intuito de esclarecer essa questão, o grupo liderado pelo Dr. Marc K. Jenkins do Department of Microbiology and Immunology, Center for Immunology, University of Minnesota Medical School, Minneapolis, nos EUA publicou recentemente um trabalho na Revista Science, onde propôs um modelo murino de transferência adotiva de células para responder a essa questão. Eles abordaram o tema por determinação do destino de várias células únicas provenientes do repertório de células T CD4+ naïve de camundongos C57BL/6 específicas para um peptídeo (LLOp) da proteína listeriolisina O de Listeria monocytogenes ligado ao MHC-II (-Ab), após a infecção dos camundongos com uma cepa atenuada da bactéria.  

Os investigadores demonstraram que praticamente todas as células naïve patógeno-específicas produziram células de memória durante a infecção. A observação de que uma população de célula de memória clonal provavelmente tem a mesma razão de subpopulações de células auxiliares do que a população predecessora é consistente com cada célula efetora na população tendo a mesma chance de tornar-se uma célula de memória, ou seja, cada célula T CD4+ naïve patógeno-específica produz uma razão correspondente de tipos celulares efetores iniciais na resposta imune que é mantida na população clonal de células T de memória.

Referência
Tubo NJ, Fife BT, Pagan AJ, Kotov DI, Goldberg MF, Jenkins MK. Most microbe-specific naïve CD4⁺ T cells produce memory cells during infection. Science. 2016 Jan 29;351(6272):511-4. doi: 10.1126/science.aad0483.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Vetor da dengue, zika, chykungunya e febre amarela: Aedes aegypti - fatos curiosos

Reproduzo aqui entrevista do colega biomédico Jhonathan Rocha, Primeiro Secretário na Associação dos Biomédicos do Estado de Goiás (ABEGO) e Professor na Pontifícia Universidade Católica de Goiás, publicado no blog Boa Vida (aqui) da jornalista Aurélia Gulherme, sobre o Aedes aegypti, um assunto de relevância para todos nós, biomédicos, imunologistas e outros profissionais, de saúde ou não saúde, além de leigos.

Sinal vermelho para Goiás. Segundo o Ministério da Saúde, no Brasil, nosso Estado foi o que registrou a maior incidência de casos de Dengue, a cada 100 mil habitantes. Infelizmente, índices como esse, já eram esperados, afinal, 80% dos focos do Aedes aegypti são encontrados nas residências. Além da dengue, o mosquito também pode transmitir a Chikungunya, a Febre Amarela e o Zika Vírus, doença suspeita de ter relação com o surto de microcefalia. Apesar de toda mobilização contra o mosquito, existem muitas informações curiosas sobre o Aedes Aegypti. Três perguntas sobre o famigerado inseto para o Biomédico, Jhonathan Rocha, CRBM/3 4833:
Jhonathan Rocha
Jhonathan Rocha, Biomédico, Professor da Escola de Ciências Médicas, Farmacêuticas e Biomédicas 
da PUC Goiás e Mestre em Biologia da Relação Parasito-Hospedeiro (IPTSP/UFG), CRBM/3 4833.

Boa Vida – Quanto tempo vive o mosquito Aedes aegypti?
Jhonathan Rocha – A fêmea do Aedes aegypti vive cerca de 30 a 45 dias. Para um inseto, é um tempo de vida relativamente longo. Nesse período, caso torne-se infectada (sugando o sangue de alguém doente) e infectiva (mantendo e multiplicando os micro-organismos (vírus) em seu interior), podem potencialmente infectar um incontável número de pessoas. É importante lembrar que nem todos os mosquitos irão se infectar, pois para isso é necessário haver indivíduos doentes nas proximidades. Na prática, um percentual muito pequeno de Aedes aegypti está infectado com o vírus da dengue, por exemplo. Em primeiro lugar porque nem todas as fêmeas picam uma pessoa infectada; em segundo lugar, porque nem todos os mosquitos que picam alguém com o vírus conseguem sobreviver até o momento em que se tornam infectivos e possam, então, começar a transmitir a doença.
Boa Vida – Por que apenas as fêmeas picam as pessoas e qual o horário de atuação do mosquito?
Jhonathan Rocha – Tanto o macho quanto a fêmea possuem sua base alimentar em substâncias que contêm açúcar, como o néctar.  Como o macho não produz ovos, ele não necessita do suplemento sanguíneo, uma vez que a fêmea precisa de sangue para que a maturação dos ovos no ovário aconteça adequadamente, mais especificamente da proteína albumina, principal proteína presente no sangue humano. Assim, diz-se que são mosquitos hematófagos, ou seja, que se alimentam de sangue. Embora possam se alimentar de sangue antes da cópula, as fêmeas tendem a intensificar a hematofagia após a fecundação. O Aedes aegypti tem hábitos matutino e diurno, assim, as primeiras horas da manhã e as últimas da tarde são as horas de maior atividade dos mosquitos. Entretanto, mesmo em outros horários, eles podem atacar à sombra, dentro ou fora de casa.

Boa Vida – Por que os idosos são os mais susceptíveis às complicações?
Jhonathan Rocha – Todas as doenças infectoparasitárias apresentam-se com certa particularidade no que se refere à agressividade dos sintomas nos pacientes geriátricos. Isso se deve, antes de tudo, à relação parasito-hospedeiro que é estabelecida, visto que, muitas vezes, a fragilidade orgânica e do sistema imune nos pacientes deste grupo tendem a favorecer a instalação da doença. Em relação às doenças em que o Aedes aegypti atua como vetor, até o momento, têm-se descrito mais detalhes sobre a Dengue, onde, segundo o Ministério da Saúde, pessoas acima dos 60 anos apresentam uma probabilidade cerca de 12 vezes maior do que outra faixa etária, de morrer por causa da doença. Assim, a desidratação e o quadro de astenia (fraqueza geral) são considerados importantes fatores que dão suporte a outras morbidades e complicações.
Boa Vida – É verdade que o Aedes aegypti não consegue voar em alturas maiores do que 1,5 metro e também não é capaz de fazer voos mais longos que cerca de 200 metros?
Jhonathan Rocha – Sim. A literatura relata que estes mosquitos, assim como a maioria, não conseguem ganhar grandes alturas no vôo. Com relação à distância, existem algumas contradições, mas acredita-se que não consigam também ultrapassar a faixa de 1 ou 2 km em seu deslocamento. É válido ressaltar que, mesmo indivíduos que residem em altos andares devem ter a preocupação em eliminar os criadouros do mosquito, pois, mesmo não alcançando grandes alturas, podem ser levados por outras vias.
Boa Vida – Quantos ovos uma fêmea bota por vez e durante quanto tempo as larvas do Aedes aegypti conseguem sobreviver sem contato com a água? Além de esvaziar, é preciso limpar os recipientes?
Jhonathan Rocha – Estudos apontam que até 100 ovos podem ser eliminados de uma só vez pela fêmea do mosquito. Um ovo pode ser viável por até um ano sem eclodir, daí a importância da
eliminação dos criadouros, que além da remoção da água parada deve contar também com a limpeza dos recipientes com instrumentos rígidos, como, por exemplo, escovas e palhas de aço, pois isso garantirá que os ovos não permanecerão grudados nas paredes dos recipientes.

Boa Vida – Apenas humanos são infectados com o vírus?
Jhonathan Rocha  – Alguns primatas também podem funcionar como hospedeiros, mas as manifestações clínicas são descritas apenas nos humanos. É importante lembrar também que o Aedes aegypti é um mosquito antropofílico, ou seja, vive perto do homem e apresenta como característica ecológica uma boa adaptação ao ambiente urbano e doméstico.

Boa Vida – Repelentes e aparelhos repelentes são eficazes no combate?
Jhonathan Rocha – Sim. Os repelentes e aparelhos repelentes possuem em sua composição substâncias químicas que tendem a afastar os mosquitos. Entretanto, é importante reforçar que estes itens devem ser utilizados com moderação, principalmente os repelentes de uso tópico, uma vez que, não raro, são observadas reações alérgicas e até tóxicas, principalmente em crianças, quando aplicados em regiões anatômicas que podem ser levadas à boca. Outra preocupação recente é com relação ao uso de alguns repelentes por gestantes, como possíveis causadores de má formação fetal, porém, até o momento não foram observados problemas na avaliação realizada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA).
#boavida #boavidaonline #colunaboavida #aureliaguilherme #Aedesaegypti #jhonathanrocha

Aurélia Guilherme
Por Aurélia Guilherme
Jornalista

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

A microbiota em risco

Grandes modificações da vida humana – o controle do fogo (± 350 mil anos antes do presente); a invenção da agricultura (5-10 mil anos) e o uso de desinfetantes e antibióticos (desde ±1930) - modificaram o conjunto de micróbios que vive sobre a nossa pele e mucosas, os micróbios ditos comensais, nativos, a chamada a microbiota humana nativa  (Gillings et al., 2015). 

Nas últimas décadas, agravou-se uma “extinção de micróbios” e, ao mesmo tempo, houve um grande aumento de doenças alérgicas (como a asma) e autoimunes (como a diabetes tipo-1, o lúpus e a artrite reumatoide), além de um conjunto de outras doenças de origem e natureza obscuras, de um aumento da frequência da obesidade e de modificações emocionais como a depressão. Este aumento da imunopatologia humana tem sido explicado pela “hipótese da higiene” (Okada, H., et al., 2010), que responsabiliza, por exemplo, a diminuição das infecções na infância como um fator causal decisivo.

A extinção maciça de linhagens bacterianas por antibióticos oferece uma explicação mais abrangente. Além de suas vantagens, o viver moderno pode incluir sérias desvantagens em relação aos habitantes do paleolítico, um “paleo-deficit” (Logan et al., 2015 a,b). 

As doenças infecciosas já foram vistas como castigos divinos. Pasteur e Koch propuseram que elas podem ser causadas por micróbios e passamos a ter inimigos invisíveis. Depois, nos demos conta de que este é um planeta repleto de micróbios, que estamos imersos em uma verdadeira sopa de micróbios; que para cada célula do corpo, há 10 células microbianas vivendo sobre o nosso corpo e em nosso intestino. Além de muito abundantes, estes micróbios são muito diversos e interferir com sua biodiversidade tem consequências sobre a nossa saúde.

Segundo Gillings et al. (2015), no último meio século a generalização do uso de antibióticos na medicina e na pecuária, reduziu muito  (talvez à metade) a diversidade da microbiota humana. Este empobrecimento da microbiota, e, portanto, de sua versatilidade, mais que o simples aumento da higiene, estaria na raiz dos graves distúrbios na imunopatologia humana. Há comprovações experimentais de que populações indígenas na África e no Brasil abrigam uma microbiota diferente e muito mais diversificada e começa a ser aplicada a transferência de fezes humanas como recurso terapêutico (Brandt, 2015). O uso indiscriminado de antibióticos pela medicina humana, principalmente em pediatria requer uma reavaliação urgente. As informações disponíveis no momento sugerem que, geração após geração humana, espécies bacterianas estão sendo extintas para sempre. Ironicamente, resta-nos a esperança das fezes dos desvalidos!

Brandt, L. J. (2015). "Fecal Microbiota Transplant: Respice, Adspice, Prospice." J Clin Gastroenterol 49 Suppl 1: S65-68.

Gillings, M. R., et al. (2015). "Ecology and Evolution of the Human Microbiota: Fire, Farming and Antibiotics." Genes (Basel) 6(3): 841-857.

Logan, A. C., et al. (2015). "Natural environments, ancestral diets, andmicrobial ecology: is there    a modern “paleo-deficit disorder”? Part I." Journal of Physiological Anthropology (2015)       34: 1 

DOI 10.1186/s40101-015-0041-y

Logan, A. C., et al. (2015). "Natural environments, ancestral diets, andmicrobial ecology: is there    a modern “paleo-deficit disorder”? Part II." Journal of Physiological Anthropology 34:9
DOI 10.1186/s40101-014-0040-4


Okada, H., et al. (2010). "The ‘hygiene hypothesis’ for autoimmune and allergic diseases: an             update." Clinical and Experimental Immunology 160: 1–9.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Vírus Zika: Atualização sobre a epidemia, andamento das pesquisas e esclarecimentos sobre boatos

Autor: Dinler Amaral Antunes, Bacharel em Biomedicina pela UFRGS, Mestrado e Doutorado pelo PPGBM/UFRGS e pós-doutorado pela Rice University (Texas/EUA).

Na última sexta-feira (5/02/2016) a Organização Mundial da Saúde liberou um relatório sobre a situação da epidemia do virus Zika. O documento apresenta dados atualizados e recomendações reunidas por um comitê de especialistas, que em 1º de Fevereiro recomendou que o atual agrupamento de casos de microcefalia e de outras disfunções neurológicas reportados no Brasil, seguido de um agrupamento similar na Polinésia Francesa em 2014, constituem uma Emergência de Saúde Pública de Interesse Internacional (Fontes: OMS, BBC Brasil).
Os pontos principais do relatório incluem:
  • Existe uma forte suspeita de relação causal entre a infecção pelo vírus Zika durante a gestação e os casos de microcefalia, embora tal relação ainda não tenha sido comprovada (comentários abaixo). Existe um acordo entre os especialistas acerca da necessidade urgente de se coordenar esforços internacionais para investigar e entender esta relação.
  • Entre Janeiro de 2014 e 5 de Fevereiro de 2016, 33 países reportaram circulação autóctone do vírus Zika. Existe também evidencia indireta de transmissão local em outros 6 países.
  • A distribuição geográfica do vírus Zika tem expandido de forma constante desde sua primeira detecção nas Américas em 2015. É bastante provável que esta distribuição aumente, incluindo outras regiões onde existe circulação do vetor (o mosquito Aedes aegypti).
  • Sete países relataram um aumento na incidência de casos de microcefalia e/ou Síndrome de Guillain-Barré concomitantemente com o surto do vírus Zika.

    Veja o relatório completo da OMS: Zika situation report (Feb 2016)
Mapa  da distribuição geográfica do vírus Zika, divulgado pela OMS (Zika situation report). Existe forte preocupação de que o vírus se espalhe para outras áreas onde existe circulação do mosquito vetor (Aedes), como a Flórida (EUA). Reportagens recentes também salientam a identificação do vírus em amostras de saliva e urina, bem como transmissão sexual, mas mais estudos precisam ser realizados para esclarecer os riscos de transmissão por diferentes vias (mais referências no editorial "Zika virus: Emergence and Emergency").
 
Estabelecer de forma definitiva a relação causal entre a infecção por um patógeno e uma dada manifestação clínica não é uma tarefa fácil, sobretudo quando a manifestação afeta apenas uma parcela pequena dos indivíduos infectados e apresenta um intervalo grande de tempo entre o momento da infecção e a manifestação do referido desfecho. No caso em debate, a situação é ainda mais complicada pois envolve a infecção da mãe e uma manifestação no bebê, sendo portanto impactada tanto pela resposta imunológica da mãe quanto pelo sistema imunológico (em desenvolvimento) do próprio bebê. Cabe lembrar que existe uma série de peculiaridades com relação  a imunorregulação durante a gestação. Além disso, não podemos testar diretamente esta associação em laboratório (infectar grávidas e acompanhar o desfecho), o que também dificulta a formulação de hipóteses e o esclarecimento de um possível mecanismo que permita explicar as observações. É preciso coletar dados à medida que novos casos são investigados.   

Por outro lado, é preciso deixar claro que a suspeita mencionada acima não é apenas fruto da forte correlação temporal e geográfica (que poderia ser coincidência). Conforme recentemente divulgado em reportagem da Frontline (associada à rede pública PBS), existem claras evidências de relação direta entre a infecção pelo Zika e os casos de microcefalia (veja CDC-MMWR). Análises preliminares realizadas por pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz indicaram a presença do vírus no líquido amniótico de duas mulheres cujos fetos apresentavam microcefalia (identificada por exame de ultrassom pré-natal) e o CDC americano detectou o vírus Zika no cérebro de dois bebês natimortos, bem como na placenta de duas mulheres que apresentaram aborto espontâneo. Outro estudo realizado no Brasil avaliou 35 bebês nascidos com microcefalia durante o período de Agosto a Outubro de 2015. Todas as mães visitaram (ou residiram em) áreas afetadas velo vírus Zika durante a gravidez, sendo que 26 delas (74%) apresentaram sintomas da infecção no primeiro ou segundo trimestre de gestação. Pelo menos 25 (71%) dos bebês estudados apresentavam microcefalia severa, sendo que todos os 35 bebês apresentaram resultados negativos para sífilis, toxoplasmose, rubéola, citomegalovírus e herpes. Amostras de líquor dos 35 bebês foram encaminhadas para um laboratório de referência para a detecção do vírus Zika, mas os resultados ainda não estão disponíveis (Fonte: CDC-MMWR).

Finalmente, em trabalho realizado em parceria pelo Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães e o CDC, um teste para detecção de anticorpos (IgM) específicos para o vírus Zika foi utilizado para testar amostras de líquor de 12 bebês com microcefalia (coletado logo após o nascimento). Todas as amostras foram positivas. Como a IgM é muito grande para passar a barreira placentária (molécula pentamérica), sua identificação no líquor dos bebês permite duas conclusões importantes. Em primeiro lugar, este anticorpo foi produzido pelo bebê (não pela mãe), o que implica que o bebê foi infectado pelo vírus antes do nascimento. Em segundo lugar, também indica que o vírus foi capaz de infectar o sistema nervoso do feto, conforme informa a autora do estudo Dra. Marli Tenório. Este teste já está sendo aplicado em pelo menos outros 28 casos de microcefalia (suspeitos ou confirmados) e os resultados deverão ser publicados em breve (Fonte: Frontline).

Em conjunto, estes trabalhos evidenciam a forte suspeita da comunidade científica sobre a relação entre os casos de microcefalia e a infecção pelo vírus Zika. No entanto, os dados ainda são limitados a amostras pequenas e não permitem extrapolação para os mais de 400 casos confirmados de microcefalia, até porque isso envolve testar e eliminar todas as outras possíveis causas. Além disso, foram reportados quase 5 mil casos suspeitos de microcefalia nos últimos 6 ou 7 meses no Brasil, muitos dos quais não serão confirmados. Isso representa uma barreira adicional, uma vez que diagnósticos imprecisos podem atrasar os estudos e dificultar as conclusões sobre a relação causal que se deseja investigar (Fonte: Lancet). 

Estes são os motivos pelos quais ainda não se divulgou uma resposta definitiva sobre a relação entre a infecção pelo vírus Zika e os casos de microcefalia. É preciso aguardar que mais casos sejam investigados e novos dados sejam publicados. Infelizmente esta demora e o posicionamento aparentemente "vago" dos pesquisadores envolvidos, apesar de correto, transmite uma certa incerteza para o público leigo e estimula sentimentos de frustração e de revolta, sobretudo entre aqueles que não estão familiarizados com a pesquisa biomédica. Esta situação abre caminho para boatos, os quais ganham ainda mais força quando refletem a opinião de pesquisadores. Este é o caso da denúncia junto ao MPF realizada por um Físico Pernambucano e amplamente divulgada nas redes sociais. Segundo o pesquisador, os casos de microcefalia no Brasil (particularmente em Pernambuco) seriam secundários à vacinação durante a gravidez. Visando esclarecer os fatos, a Dra. Lavinia Schuler-Faccini, professora da UFRGS e presidente da Sociedade Brasileira de Genética Médica, publicou recentemente uma carta aberta, a qual transcrevo abaixo (com autorização da autora).
Prezado Dr. Plínio Bezerra
Vejo que está cometendo um equívoco sobre o risco de vacinas. Se quiser discutir a situação estamos disponíveis. Penso que não revisou adequadamente a literatura. O vírus da rubéola atenuado não causa síndrome da rubéola fetal. Vejo também que o senhor não tem experiência com desenvolvimento embrio-fetal.
Temos seguido os casos de microcefalia no Brasil e o padrão de imagem cerebral é muito diferente do da rubéola e esta acontecendo em mulheres que com certeza NÃO se vacinaram no inicio da gravidez.
Veja bem: se fosse o vírus da rubéola o STORCH (teste de anticorpos) teria que ser positivo para IgM (infecção recente) para rubéola e /ou sarampo. Nos nossos casos estudados, o STORCH foi NEGATIVO.
Veja nossas publicações sobre estes casos e sobre a vacina da rubéola, publicadas em revistas com peer-review. Também pode acessar meu CV Lattes.
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/26820244, doi:10.15585/mmwr.mm6503e2
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/17977696, doi:10.1016/j.reprotox.2007.09.002
Cordialmente,
Profa. Dra. Lavinia Schuler-Faccini
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Presidente - Sociedade Brasileira de Genética Medica
Resumindo, apesar de ainda não podermos afirmar de forma definitiva a relação causal entre o Zika e os casos de microcefalia, esta continua sendo a hipótese mais provável e vem sendo gradualmente reforçada pelos dados. Assim, continuam valendo as recomendaçoes para controle do mosquito e os cuidados com as possiveis fontes de transmissao do vírus Zika, sobretudo para mulheres grávidas (Fonte: CDC, Ministério da Saúde). Agradeço a Dra. Lavínia Schuler-Faccini pelo compartilhamento da carta-aberta e pela revisão do post.
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