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quinta-feira, 30 de junho de 2011

Um mundo só


Uma das melhores coisas do mundo é uma conversa em torno da mesa com amigos queridos. Hoje passei a tarde preparando um jantar pros meus amigos Juan e Maria Lafaille, e Adriana, filha deles. Uma costela de porco (baby back ribs), um arroz basmati com fava e endro (dill) e um purê de batata doce. Juan certamente trará umas mil garrafas de Malbec e conversaremos até de madrugada. Isso é um ritual que temos há algum tempo e espero que continuemos o resto da vida.


Quando cheguei na California não sabia cozinhar nada. Fui criado no nordeste do Brasil, onde quando não era a empregada era minha mãe quem tomava conta da estória. Minha companheira na época também não cozinhava nada. Comíamos ravioli enlatado. Sério. Até que um dia conheci um postdoc escocês que nos convidou pra jantar em sua casa. Pra nossa surpresa fez um jantar maravilhoso. Comida indiana. Rapaz, fiquei muito intrigado. Sempre achei que o prato nacional escocês fosse o Johnnie Walker.


E como é então que de repente me vinha esse sujeito cozinhando aquele arroz do outro mundo, com uns temperos das outras esferas? Muito simples: ele tinha um livro. Então era simples assim… Comprava o livro, comprava os ingredientes na lojas indianas e seguia-se a receita... Feito no laboratório. Eu tambem nunca tinha cortado DNA antes, não sabia crescer um plasmídeo. Mas tinha o livro, o Maniatis. Comecei a me aplicar na matéria e comecei a gostar do resultado. De repente vi que além de fazer Southern blot, podia também cozinhar. Depois de uma ou outra tentativa errada o negócio engrenava, e depois de um certo tempo já podia improvisar.


Nessa época comecei a pensar sobre como são parecidos o mundo da ciência e o mundo da cozinha. Tanto um bom jantar como um bom experimento exigem planejamento, bons ingredientes. Uma boa noção de timing. No começo você segue o protocolo, e com o tempo voce optimiza. Hoje suspeito que um sujeito que é bom na cozinha é bom na bancada, e vice-versa. Pensei até em entrevistar candidato a postdoc na beira do fogão. E sempre pergunto nas entrevistas se o candidato se interessa por cozinha.


Existem, claro, muitas exceções a regra… Tem gente que é boa no lab mas não se interessa por cozinha. E vice-versa. Existe gente que se interessa pelo produto da cozinha, não pelo feitio. E existe gente como meu postdoc Gerold Bongers, que é bom no lab, é bom na cozinha, mas não dá muita bola pra comida… Mas benzodeus, não é culpa dele não. Ele é holandês. A melhor comida da Holanda vem da Indonésia. Falar em holandês, a Holanda hoje em dia é centro avançado de estudos para geração de carne em laboratório. Isso mesmo, produção de carne via células tronco. Quem sabe dentro de um futuro bem próximo estaremos comendo uma boa picanha produzida no laboratório.


A primeira vez que ouvi falar em comida no ambiente acadêmico foi na escola de medicina. Tive um professor de patologia pra lá de heterodoxo chamado Aluizio Bezerra Coutinho. Essa inesquecível figura gostava de dar aula de qualquer assunto inclusive patologia. Um dia, depois de falar dos yahoos das Aventuras de Gulliver, embrenhou por uma receita de cuscuz marroquino e falou longamente depois de um carneiro com menta. Mas parecia ser mais uma aventura intelectual, não conseguia ver Aluizio cozinhando… Médico ou cientista com interesse por cozinha tem no mundo todo. Tenho muitos amigos com esses interesses. Por exemplo, sou amigo de um bruxo mineiro chamado Mauro Teixeira, que me fez rodar por New Jersey atrás de um mercado asiático para comprar um polvilho vietnamita, essencial pra fazer um pão de queijo das arabias (digo das Valadares). E conheço imunologista que cozinha de fato dentro do laboratório. Já falei sobre o meu amigo querido, o professor Bozza, que improvisou um pasta com camarão e um ensopadinho de língua ao bico de Bunsen numa defesa de tese. Isso sim é o que eu chamo de gastronomia molecular… Mas eu não estou brincando não.


Gastronomia molecular é um termo que se pôs numa série de experimentações feitas por grandes cozinheiros modernos, entre eles Ferran Adriá, um espanhol. O termo hoje entrou em desuso, porque afinal de contas toda gastronomia envolve moléculas. Hoje esse conjunto de experimentações é conhecido como cozinha modernista. E o que diabo vem ser isso afinal? Esse pessoal descobriu que existe mais coisas entre o quiabo e sua boca do que supõe a vã filosofia. E como é que eles descobriram? Experimentando... Por exemplo, eles estão o tempo todo experimentando novas texturas, novas combinações de sabores. Fazendo experimentos, como nós fazemos. Eles tem laboratórios, usam princípios da física e da química, da bioquímica. Sacam de microbiologia. Na bíblia da cozinha modernista, que acaba de ser lancada aqui, tem um capítulo inteiro dedicado aos micróbios. Isso porque como todos já sabemos, os micróbios são o tal. Na história da comida temos uma relação muito proxima com os micróbios … Pensem em yogurt, cerveja, queijos, etc. E tem também o fato de que micróbio do mal deixar você muito enfermo. Está aí a nova E. coli que não me deixa mentir… Esses (os do mal) causam preocupação grande do pessoal modernista, uma vez que uma das grandes técnicas deles consiste em cozinhar “sous vide”, ou seja, no vácuo, por longos periodos de tempo. Mais ou menos assim: põe-se a parte predileta do bicho X em uma bolsa, extrai-se o ar e põe-se a tal num banho-maria. Numa temperatura bem baixa por várias horas. A temperatura é rigorosamente controlada. Cientificamente. Isso ajuda a produção dos manjares eternos. Aliás, isso faz muito sentido. O nosso termômetro, quando aplicado a cozinha evita o bife-sola e os unidos venceremos (nesse ponto confio mais no termômetro do que no instinto…). Tudo tem sua técnica… Por exemplo, as baby ribs lá de cima, que faço a 175ºC por 6 horas, na mão deles cozinha por três dias, é imersa em nitrogênio líquido e deep-fried. Diz que fica muito bom. Se você quiser saber mais sobre esse novo e fascinante mundo dê uma olhada aqui. As fotografias são incriveis.


Outra coisa que nos une - cozinheiros cientistas e cientistas cozinheiros - é a apresentação dos resultados. Pense nisso. O idealizado depois de refogado vai ser posto a prova da platéia e vai ter de enfrentar os diferentes pontos de vista. Vai ter o entusiasta, o desconfiado (maioria que se disfarça com um sorriso polido), e o sujeito que pode ter até uma reação anafilática.


E, pra terminar, uma observação… O mais simples dá melhor resultado. Verdade também no lab… Muita coisa boa se faz com ingredientes simples, e dá resultados memoráveis... Exemplo: o cabrito assado com feijão verde da minha mãe. Ou então uma moqueca de peixe na beira da praia em Picinguaba. Uma vez, Pepe, Regina, Glaucia e eu, estávamos voltando de um meeting de imunologia e eu tinha que pegar o avião. Bateu a fome. Resolvemos parar em Picinguaba. Pepe disse que tinha um restaurante. Tava fechado. Batemos na porta, choramos, e a dona disse que ia fazer um prato pra gente sim. Mandou a gente tomar um banho de mar, pegou o peixe mais fresco e mandou ver. Rapaz, aquilo foi um negócio memorável…. Muito chef bambamban aqui jamais vai fazer um “Nature” paper igual aquele…. O recibo tá aqui de prova.



quarta-feira, 29 de junho de 2011

Golgi: Um gigante da Medicina do século XIX



A biografia de um acadêmico de medicina é uma obra que parece florescer apenas esporadicamente. Houve um período em que essas biografias estavam fora de moda, mas recentemente parece ter havido um renascimento com o sucesso da revista Journal of Medical Biography, que demonstra um particular interesse neste campo.

As edições do JMB são trimestrais e focalizam a vida de pessoas relacionadas à medicina, aquelas consideradas lendárias, bem como de outras menos conhecidas. A revista inclui pesquisas originais sobre figuras da história e suas aflições, proporcionando assim, uma perspectiva interessante, o que pode levar a uma maior compreensão sobre cada indivíduo. Foi nesse cenário inspirante que Ruth Richardson publicou um comentário na LANCET sobre a biografia de Golgi, escrita pelo italiano Paulo Mazzarello.

Camillo Golgi (1843-1926) foi um dos gigantes da medicina do século XIX e é curioso que tenha levado tanto tempo para uma biografia autorizada ser escrita. No livro Golgi: A Biography of the Founder of Modern Neuroscience, Paulo Mazzarello revela o caráter do homem desde seus primeiros dias como um estudante de medicina, o inebriante dia da descoberta, a fama crescente, até o apogeu da sua carreira profissional, o qual foi celebrado como uma figura internacional científica e o Prêmio Nobel.

Embora exista um grande interesse em investigar a vida extraodinária de Golgi, sua fama reside nas explorações em neuroanatomia, como Mazzarello descreve: “Ele desenvolveu a mancha de Golgi (a reação negra que permitiu aos cientistas visualizarem os neurônios individualmente), caracterizou vários tipos de neurônios, analisou em detalhe diversas regiões do sistema nervoso e destes fez belas ilustrações. O laboratório de Golgi tornou-se um centro de referência em pesquisa, era um local onde cientistas estrangeiros estagiavam e onde alguns de seus alunos passaram a fazer importantes descobertas. Suas investigações alavancaram nosso conhecimento sobre a organização estrutural do sistema nervoso e desempenhou um papel essencial na fundação da neurociência moderna. Para nós, imunologistas, ficaram outras grandes contribuições, como a descoberta e o funcionamento do aparelho (complexo) de Golgi, as primeiras transfusões de sangue e a relação do parasita da malária com a febre.

Golgi seguiu seu pai em medicina e logo foi cativado pela tradição da escola médica que, historicamente, era focada em anatomia de observação detalhada. Posteriormente, os dias de Golgi como aluno foram divididos entre seu descontentamento com as aulas práticas e teóricas em anatomia e com o campo da microbiologia. Seu descontentamento estava intimimamente ligado a uma curiosidade muito grande em ver uma estrutura do que simplesmente acreditar na sua existência. Foi isso, mais do que qualquer outra característica, que lhe causou sofrimento mais tarde, quando o mais insistente dos cientistas, o espanhol Ramon Cajal postulou que nada podia ser visto com a reação negra de Golgi, muito menos distinguir células nervosas. Mas esta visão certamente foi um equívoco. Houve uma grande quantidade de experimentação na segunda metade do século XIX para visualizar tecidos e microorganismos não descobertos através de misturas meticulosas entre produtos químicos e corantes.

Em seu livro, Mazzarello reproduz uma fotografia de Golgi olhando seu trabalho no final da vida. Ele está em seu habitat natural: sentado em sua mesa de trabalho, mão no microscópio, cercado por uma floresta de garrafas com rolhas. Golgi estava bem ciente do significado da sua descoberta: a mancha revelou a complexa morfologia das estruturas nervosas pela primeira vez.
Mesmo com uma vida bem sucedida, na medida em que começa o otimismo inebriante da juventude, o pico da realização e a consolidação de um projeto de vida, geralmente aparecem as tristezas e, enfim, vem o declínio e a morte. Mas em sua morte, Golgi sabia que havia se realizado na vida por ter feito algo de que se orgulhar!

Richardson, R. Lancet, Vol 377 February 12, 2011

Post de Vanessa Carregaro (Pós-doutoranda FMRP-USP)

terça-feira, 28 de junho de 2011

Investigador português identifica proteínas que podem combater o HIV

Originalmente publicado no site lusitano Ciência Hoje


André Raposo desenvolveu importante estudo na Universidade de Oxford

2011-06-11
Por Luísa Marinho
André Raposo trabalha actualmente em S. Francisco
André Raposo trabalha actualmente em S. Francisco
Uma importante descoberta do investigador português André Raposo, durante o seu pós-doutoramento na Universidade de Oxford, pode abrir portas ao desenvolvimento de novos tratamentos contra o HIV.

Em conversa com o «Ciência Hoje», o investigador explica que foram identificadas "potenciais proteínas antivirais que poderão vir a ser incluídas no desenvolvimento de vacinas/antiretrovirais contra o HIV".
O estudo, a ser publicado na edição de Julho do «Journal of Immunology», debruça-se sobre a capacidade imuno-reguladora que os linfócitos T4 (glóbulos brancos) têm em suprimir infecção por HIV em macrófagos. André Raposo explica: "Acreditamos que os macrófagos são as primeiras células do sistema imunitário a serem infectadas pelo vírus. No entanto, este não induz a morte destas células, residindo dentro delas durante largos períodos de tempo".

E é durante esse tempo que os macrófagos transmitem o vírus a outras células, nomeadamente aos linfócitos T, que acabam por não resistir ao vírus e morrem, levando à SIDA. Nas experiências em laboratório, André Raposo descobriu que os linfócitos T, antes de serem infectados pelo HIV, "segregam proteínas de grande massa molecular para o meio extracelular, que uma vez em captadas pelos macrófagos induzem a diminuição dos níveis de receptores CD4 (nos macrófagos), essenciais para o vírus entrar nas células". Sem estas moléculas "não se estabelece infecção".

Usando novas técnicas de isolamento e enriquecimento de proteínas a equipa de investigadores, em colaboração com o Centro de Espectrometria de Massa da Universidade de Oxford, conseguiu identificar as proteínas segregadas pelos linfócitos T que induzem a diminuição dos níveis de moléculas CD4 nos macrófagos.

"Uma cura efectiva para a infecção por HIV ainda esta longe de ser encontrada"
"As proteínas identificadas não só induzem essa diminuição mas também alteram o fenótipo destas células tornando-as menos susceptíveis de serem infectadas".
 O trabalho descreve também os mecanismos moleculares que levam a diminuição dos níveis de CD4, e estes envolvem a actividade da proteína quinase C e do factor de transcripcao NF-kB, para além dos organelos especializados na degradação de proteínas chamados os proteasomes.

Embora possa abrir portas para o desenvolvimento de novos tratamentos, "uma cura efectiva para a infecção por HIV ainda está longe de ser encontrada", diz o investigador. Contudo, "são estes pequenos passos que fazem grandes descobertas e as contribuições da ciência básica em laboratórios são essenciais para o desenvolvimento de vacinas efectivas contra o HIV".

Artigo: "Protein Kinase C and NF-KB-dependent CD4 downregulation in macrophages induced by T cell-derived soluble factors: consequences for HIV-1 infection"
(http://www.jimmunol.org/content/future/187/2)

Actualmente a trabalhar como Postdoctoral Scholar na Universidade da Califórnia em São Francisco (EUA), na Divisão de Medicina Experimental no Hospital General de São Francisco, o investigador português começou o seu percurso em Coimbra. Licenciou-se em Bioquímica na Universidade de Coimbra.

Como parte da licenciatura, no estágio científico, desenvolveu um projecto de investigação em virologia em Montpellier (França) no Instituto de Genética Molecular. Fez, depois, parte do programa doutoral do GABBA no Porto (2005) e escolheu o laboratório de imunologia retroviral do HIV na Universidade de Oxford (Reino Unido) para desenvolver o projecto de doutoramento, do qual saiu este estudo. No fim do doutoramento, escolheu, São Francisco (laboratório do Professor Doutor Douglas Nixon) para para desenvolver um projecto como postdoc.

"Esta cidade é um excelente sítio para se viver; há bastante sol (ao contrário de  Inglaterra) e a investigação na área do HIV é das melhores a nível internacional"
. O cientista pretende continuar por São Francisco uns quatro ou cinco anos.

segunda-feira, 27 de junho de 2011

A idéia mais importante da Imunologia

Post por Nelson Vaz <nvaznvaz@gmail.com>

    De acordo com a Biologia do Conhecer e da Linguagem (Maturana, 2002; Maturana and Poerksen, 2004), “intervenções instrutivas são impossíveis”, porque sistemas mudam apenas de acordo com sua estrutura interna: sistemas são determinados em sua estrutura. Supostamente, os imunologistas sabem disso desde os anos 1950, quando finalmente rejeitaram as teorias “instrutivas”, segundo as quais os anticorpos seriam formados sobre moléculas de antígeno que representariam “moldes” (ou fôrmas) (Mazumdar, 1996). Os anticorpos não adquirem sua forma desta maneira. E em 1955, Jerne apresentou a idéia mais importante de toda a imunologia ao afirmar que a produção de imunoglobulinas (globulinas que podem servir como anticorpos) é um processo espontâneoI (natural), uma parte do que o organismo faz ao construir e manter-se a si mesmo. Não é algo que o organismo faça em obediência ao contato com materiais estranhos à sua própria composição (Jerne, 1955). O organismo não obedece ao meio: segue sua própria organização. Jerne poderia ter chamado sua teoria de “O surgimento autônomo das imunoglobulinas”, mas preferiu intitula-la Teoria da Seleção Natural da Formação dos Anticorpos (Jerne, 1955).
     A escolha deste título pode ter sido um grave equívoco. “Seleção Natural” é um termo derivado da Teoria da Evolução, proposta por Darwin, mais tarde transformada  na Teoria Sintética da Evolução, ou neo-Darwinismo, por uma fusão da idéia de pressões seletivas e de adaptação, usadas por Darwin, com noções de determinismo genético e com a genética de populações. A história da imunologia, assim como das demais áreas da Biologia e da Medicina, foi muito afetada pelo neo-Darwinismo, que se tornou o paradigma dominante nestas áreas e também na imunologia, que só agora começa a ser seriamente questionado (Maturana and Mpodozis, 2000; Conway Morris, 2008; Pigliucci and Müller, 2011).
     Inadvertidamente, ao enfatizar o aspecto seletivo de sua teoria de Seleção Natural dos anticorpos, Jerne obscureceu o aspecto espontâneo da produção de globulinas. Com esta eclipse, embora os imunologistas “saibam” que não há processos “instrutivos” na formação dos anticorpos, o aspecto seletivo esconde o que se passa antes do encontro com antígenos[1]. O aspecto instrutivo entra novamente em cena, pela porta dos fundos, disfarçado de processo seletivo [2]. Colocada em termos clonais, a seleção (escolha) de quais anticorpos produzir, volta a ser um processo determinado (guidado, orientado) pelo encontro com antígenos. Deixa de ser um processo determinado (guidado, orientado) pela atividade espontânea do próprio organismo. Desaparece a espontaneidade, surge a obediência.
     Em uma extensa biografia (Soderqvist, 2003), Jerne afirma que não se inspirou nas idéias de Darwin [3], nem na teoria das Cadeias Laterais, de Ehrlich (1900), que guarda alguma semelhança com a sua, mas sim na enorme diversidade da afinidade de ligação dos anticorpos. Disse que a diferença entre as globulinas naturais e os anticorpos existe apenas “na mente dos imunologistas “ (Soiderqvist, 2003; pp.150). A despeito disso, seu trabalho foi percebido como uma hipótese seletiva, logo depois mofificada por Burnet (1957) com sua teoria de Seleção Clonal, que se tornou a pedra angular do pensamento em imunologia desde então (Hodgkin, 2008).
     A teoria de Seleção Clonal tirou definitivamente de cena a idéia de processos espontâneos que Jerne sugeria. À primeira vista, isto não se passa porque Burnet parece aperfeiçoar a idéia de Jerne. Em acordo com uma idéia de Talmage (1957), Burnet sugere uma fonte celular para a formação espontânea de imunoglobulinas (os anticorpos “naturais”). Haveria a geração igualmente espontânea de uma imensa diversidade de clones linfocitários, que permaneceriam à espera do antígeno correspondente para serem ativados e se multiplicarem em clones. E aqui desaparece a espontaneidade, pois estes linfócitos gerados espontaneamente, não fazem nada: permanecem quiescentes até que sejam selecionados para a ação; é como se fossem, então, e apenas então, instruídos pelo antígeno a funcionar. Não importa que seus receptores sejam gerados por um processo espontâneo, que precede o encontro com o antígeno, pois eles só se tornam funcionais após o encontro com o antígeno. Tudo isto foi contradito depois pelo estudo subsequente da atividade imunológica que, em vários aspectos (embora não todos) prossegue inalterada em animais mantidos desde o nascimento em ambientes isentos de antígenos (Bos et al., 1986; Pereira et al., 1986; Haury et al., 1997). Mas a idéia de seleção clonal estava já estabelecida. Veio para ficar.
    Burnet criou um obstáculo ainda maior para processos espontâneos, ao sugerir que a geração/ativação dos clones linfocitários é um processo aleatório. A geração ao acaso criaria muitos clones auto-reativos, e estes teriam que ser proibidos  de funcionar (forbidden clones) para não lesar o organismo com lesões autoimunes. Logo foram descritos camundongos que desenvolvem uma anemia autoimmune (Burnet, 1963); a idéia de doenças autoimunes foi bem recebida pela comunidade médica, que abandonou então o estudo da inflamação crônica como sua hipótese principal (Parnes, 2003). Somente agora o estudo da inflamação regressa à imunologia, sob o rótulo de “imunidade inata”.
     Em seu status privilegiado, a teoria de Seleção Clonal permanece inviabilizando a sugestão de qualquer hipótese “sistêmica” que substitua a idéia de “clones” que atuam isoladamente uns dos outros e estão fisiologicamente proibidos de interagir com o próprio organismo do qual fazem parte. Os clones estariam voltados para materiais externos (estranhos) e não reagiriam entre si, nem com o organismo - condições sine qua non para qualquer teoria sistêmica. E também não teriam nenhuma atividade verdadeiramente espontânea e fisiológica, voltada para o próprio organismo. Esta, em linhas gerais, ainda é a situação da imunologia atual, meio século após as idéias de Burnet (Hodgkin, 2008). Como algo que se dá sem nenhuma espontaneidade e requer mecanismos “reguladores”... Mas “regulação” de quê?

Bibliografia
Bos NA, Benner R, Wostmann BS, Pleasants JR (1986) 'Background' Ig-secreting cells in pregnant germfree mice fed a chemically defined ultrafiltered diet. Journal of Reproductive Immunology 9, 237-46.
Burnet FM (1963) An experimental model of autoimmune haemolytic anaemia. Australas Annual of Medicine 12, 3-5.  
Burnet FM (1965) The Darwinian approach to immunity. In: J. Sterzl (Ed) Molecular and Cellular Basis of Antibody Formation. Academic Press, New York, p. 17-.
Haury M, Sundblad A, Grandien A, Barreau C, Coutinho A, Nobrega A (1997) The repertoire of serum IgM in normal mice is largely independent of external antigenic contact. European Journal of Immunology 27, 1557-63. 
Hodgkin P (2008) The golden anniversary of Burnet's clonal selection theory.
            Immunology and Cell Biology 86, 15.  
Maturana H (2002) Autopoiesis, structural coupling and cognition: a history of these and other notions in the biology of cognition. Cybernetics & Human Knowing 9, 5-34. 
Mazumdar P (1996) Species and specificity. An interpretation of the history of Immunology. Cambrige University Press, New York.
Pigliucci M and Müller G (2010) Evolution, the Extended Synthesis.
            MIT Press, Cambridge Mass.
Poerksen . (2004) From Being to Doing. The Origins of Biology of Cognition.
            Carl-Auer, Heilderberg.
Pereira P, Forni L, Larsson EL, Cooper M, Heuser C, Coutinho A. (1986) Autonomous activation of B and T lymphocytes in antigen-free mice. European Journal of Immunology 16, 685-688.
Soderqvist T (2003) Science as autobiography. The troubled life of Niels Jerne.
            Yale University Press, New York.
Talmage DW (1957) Allergy and immunology.
            Annual Review of Medicine 8, 239-256.  



[1] Mais tarde, Jerne insistiu em perguntar  “What precedes clonal selection” (Jerne, 1972)
[2] Selection may be seen as a result of what goes on (Maturana and Mpodozis, 2000)
[3] ao contrário de Burnet que explicitamente invocava princípios darwinistas (Burnet, 1965)
 

domingo, 26 de junho de 2011

Journal Club - IBA: Apresentação antigênica via Cross-dressing

A apresentação de antígeno via cross-dressing já foi tema de um post neste blog em abril passado. Voltamos hoje a abordar este tema pois o artigo publicado na Nature de março deste ano foi tema do Journal Club do nosso departamento esta semana.

Como já mencionado no post de abril, o cross-dressing é um terceiro mecanismo de apresentação de antígeno, no qual a APC adquire o complexo MHC:peptídeo expresso em uma célula infectada, via transferência desse complexo entre as membranas celulares, e então passa a ativar linfócitos T. O que difere a apresentação de antígeno via cross-dressing da apresentação cruzada (cross-presentation) é o fato que a primeira não necessita de qualquer processamento do complexo adquirido para sua exibição na membrana da APC, enquanto que na apresentação cruzada a APC captura componentes celulares da célula infectada, processa intracelularmente esses componentes para gerar peptídeos e os apresenta posteriormente via MHC de classe I em sua membrana, ou seja, a APC acopla os peptídeos na molécula de MHC que ela própria sintetizou.

Em 2008 Smyth, L. A. e colaboradores publicaram um trabalho que teve como objetivo testar se a transferência de complexos MHC classe I:peptídeo entre células é importante na estimulação de respostas por células T CD8+ e comparar este mecanismo com a via de apresentação-cruzada.

Foi observado que Células Dendríticas diferenciadas da medula óssea (BMDCs) e maturadas por Poli I:C (um agonista de TLR3), foram capazes de adquirir complexos MHC:peptídeo provenientes de BMDCs alogenêicas previamente pulsadas com um peptídeo de OVA257–264, OVA solúvel ou infectadas com um adenovírus recombinante expressando OVA. Estes complexos MHC:peptídeo adquiridos foram reconhecidos por células T CD8+ específicas, as quais proliferaram e produziram IL-2 em resposta a esta interação. Comparando a eficiência da apresentação de antígenos via transferência de complexos MHC:peptídeo e apresentação-cruzada, foi possível verificar que Células Dendríticas (DC) esplênicas CD8+, tem maior eficiência na estimulação de células T quando adquirem o antígeno via apresentação cruzada. Quando foram analisadas as eficiências de apresentação de antígeno de BMDCs e DCs esplênicas CD8-, foram observados resultados contrastantes, em que estes dois tipos de DCs foram mais eficientes na estimulação de células T CD8+ quando adquiriram os complexos MHC:peptídeo pré-formados. A partir destas observações, foi concluído que a eficiência relativa da transferência de MHC e apresentação-cruzada difere significativamente entre diferentes subtipos de DCs.

Na Letter, publicada na Nature, Walkim e Bevan, demonstraram a importância do fenômeno de cross-dressing in vivo na ativação de células CD8+ de memória. Recorrendo primeiramente a experimentos in vitro, os autores pulsaram com peptídeo BMDC de camundongos (doadoras) e as co-cultivaram com outras BMDCs que não haviam tido contato anterior com o peptídeo (receptoras). Após a separação dessas duas populações de DCs o grupo verificou que apesar de só uma população de BMDCs ter sido pulsada com o peptídeo, ambas foram capazes de induzir a proliferação de células T CD8+. Ao utilizarem como receptoras DCs derivadas de MO de animais Tap1 KO, a capacidade de induzir a proliferação de células T CD8+ após o co-cultivo com as DCs doadoras permaneceu inalterada, comprovando que nesse caso a indução da proliferação de linfócitos não acontecia via mecanismos de processamento e apresentação de antígenos convencionais.

Após a confirmação in vitro da ocorrência do cross-dressing entre DCs, os autores recorreram a modelos experimentais onde animais F1 (H-2b / H-2d) letalmente irradiados receberam transplantes de MO derivadas de animais B6 GFP+ (H-2d) e posteriormente foram submetidos à infecção com o vírus da LCMV. Dias após a infecção, células CD11c GFP+ foram isoladas do baço dos animais F1 e colocadas em cultivo com hibridomas de células T específicos para H-2b. Mesmo portando MHC diferente do hibridoma, a ativação da célula T CD8+ ocorreu, sugerindo que as CD11c GFP+ adquiriram complexos peptídeo-MHC pré-formados provenientes de DCs específicas para H-2Ld do parênquima dos animais F1.

Em um experimento elegante o grupo transferiu MO de animais Balb/c CD11cDTR nos camundongos F1 e em seguida transferiu adotivamente tanto linfócitos naive (CD45.1) quanto de memória (GFP+). Em um momento seguinte as DCs CD11cDTR foram depletadas com toxina diftérica e os animais F1 foram infectados com o vírus da estomatite vesicular truncado com OVA. Sete dias após a infecção, os linfócitos CD45.1 e GFP+ foram recuperados do baço dos animais F1 e o grupo pôde observar que somente as células de memória haviam expandido. Entre outras coisas, o grupo sugere que o cross-dressing é especialmente importante para a expansão de células T CD8+ de memória devido à baixa necessidade de antígeno que as mesmas apresentam para serem ativadas.

Com este trabalho, a apresentação de peptídeos virais via cross-dressing de células dendríticas parece ter um papel biológico durante uma re-infecção viral, promovendo um boost na ativação de células T CD8+ de memória.


Post de Luis Gustavo Gardinassi, Gabriela Scortegagna e Carolina Oliveira.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

O que confere proteção de longa duração durante o processo de imunização?


Estudos comprovam que vacinas produzidas com microorganismos vivos ativam com mais eficácia os mecanismos do sistema imunológico que levam a proteção à infecção. A hipótese lógica para que isto aconteça é que a presença de microorganismos vivos permite que estes últimos se repliquem e infectem células do hospedeiro, tornando-se visíveis ao sistema imunológico. Sendo assim, como ficaria o papel dos padrões moleculares associados a patógenos (PAMPs)? Digo isto porque estes estão presentes tanto em vacinas compostas por microorganismos vivos quanto mortos.

E é exatamente isto que Leif E Sander e colaboradores abordam em um artigo publicado o mês passado na Nature. Mas especificamente, os pesquisadores questionam o que estaria presente na composição de uma vacina desenvolvida com a utilização de microorganismos vivos, mas não incorporado nas “vacinas mortas”, que induziria proteção imune efetora.

Para os pesquisadores, o nosso sistema imune reconhece microorganismos vivos através da detecção de uma classe especial de PAMPs denominada PAMPs associados a viabilidade (vita-PAMPs). Eles mostram que RNA mensageiro de procariotos, presente apenas em bactérias vivas, funciona como um vita-PAMP desencadeando respostas imunes inata e adaptativa efetoras. Desta maneira, o sistema imune conseguiria distinguir microorganismos com potencial infectivo e poupar suas energias das ameaças menos importantes.

Incrível, não é?

Bom, aí está mais um componente a ser testado nas nossas tão sonhadas vacinas.

Recomendo a leitura:

Sander LE, Davis MJ, Boekschoten MV, Amsen D, Dascher CC, Ryffel B, Swanson JA, Müller M, Blander JM. Detection of prokaryotic mRNA signifies microbial viability and promotes immunity. Nature. 2011 May 22;474(7351):385-9.

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Entenda a memória, desenhe melhores vacinas!!!

Este é o título do artigo de Michael Bevan da Universidade de Washington que abre uma série de ótimas revisões sobre a memória imunológica que a Nature Immunology trouxe nesse mês de Junho. Os artigos trazem atualidades sobre memória de linfócitos T e B, exaustão imunológica, fatores importantes na geração de memória, compartimentalização física da memória, desenvolvimento de novas vacinas, e o controverso e interessante tópico sobre a memória de células NK que eu já abordei aqui no Blog algum tempo atrás.

Muito já se sabe sobre os eventos que levam a geração de memória imunológica por linfócitos de memória TCD8+, contudo muitos acreditavam que talvez nem existisse linfócitos de memória TCD4+. Entretanto, Pepper & Jenkins (2011) mostraram fortes evidências de que subpopulações de linfócitos TCD4+ Th1, Th2 e Th17 podem se tornar estáveis linfócitos T de memória. Além disso, linfócitos TCD4+ e B dos centros germinativos poderiam interagir e gerar linfócitos B de memória e plasmócitos de longa duração, como mostrado por Nutt & Tarlinton (2011) que discutem se linfócitos B e TCD4+ seriam irmãos, primos ou apenas bons amigos!

Como as células de memória são mantidas por longos períodos é outro tema intrigante abordado por Sprent & Surh (2011) que mostraram que surpreendentemente células de memória podem existir antes mesmo do contato com o patógeno! Eles apontaram que citocinas com cadeia-g como, por exemplo IL-7, em conjunção com os sinais de baixa intensidade gerados através da ativação do TCR por antígenos próprios levariam a formação de células com fenótipo de memória.

Outro ponto bacana é como células de memória podem residir em tecidos não-linfóides, como por exemplo, a pele e a mucosa, agindo como a primeira linha de defesa contra a infecção microbial, mostrando que de fato a resposta imunológica pode ser compartimentalizada (Sheridan & Lefrançois 2011). Além disso, a resposta imune adaptativa precisa ser controlada, uma vez que uma falha nesse processo pode levar a exaustão de linfócitos T, ou seja, um estado de estimulação crônica de células T Wherry (2011). Estas células poderiam ainda estar associadas ao envelhecimento, e a presença deste tipo de linfócitos T deve ser um importante fator a se levar em consideração quando se pensa em vacinas para idosos.

Outro velho paradigma da Imunologia que está sendo quebrado é o de que o fenômeno da memória é apenas mediado por linfócitos T e B. Tem surgido cada vez mais evidências de que células natural killer (NK) tem propriedades de memória-like. Esse é particularmente um dos meus temas favoritos em se tratando de memória imunológica. Paust & Adrien (2011) discutem as propriedades de memória-like das células NK nas respostas de hipersensibilidade tardia e nas infecções virais. A Science deste ano, nos meses de Janeiro e Abril, também trouxe ótimos artigos sobre como células NK tem a capacidade de alterar o seu comportamento baseado em uma ativação prévia, uma característica análoga à memória imunológica adaptativa. Sim, o tema é controverso! Mas é super interessante e levanta questionamentos e boas discussões sobre os paradigmas do que se acredita hoje na Imunologia.


Figura de Michael J Bevan – Nature Immunology (2011) 12: 463–465


Os artigos citados aqui podem ser encontrados na Nature Immunology, June 2011, Volume 12, No 6, pag 461-575.


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