A protease do HIV-1 é uma
proteína amplamente estudada por diversos grupos de pesquisa no Brasil e no
exterior. Ela é responsável pela clivagem das poliproteínas precursoras,
liberando as proteínas virais em sua forma nativa. Este é um passo fundamental
no ciclo de replicação do vírus e a inibição desta enzima impede a maturação
dos novos vírions. Esta pequena proteína possui duas cadeias idênticas, cada
uma com 99 aminoácidos, de modo que o sítio catalítico se localiza no centro
deste dímero. O tamanho reduzido da enzima propiciou uma descrição detalhada de
sua estrutura, sobretudo por cristalografia de raios-X, havendo hoje mais de
400 estruturas de protease depositadas no Protein Data Bank (PDB). Sabe-se que a protease do HIV-1 possui duas regiões flexíveis,
referidas como flaps (representadas em vermelho na figura
acima), as quais se abrem permitindo o acesso do substrato ao centro
catalítico. A conformação dos flaps
varia e os cristais disponíveis nos mostram que a enzima pode estar em uma
conformação fechada, semiaberta ou aberta. A distância entre o aspartato 25
(resíduo catalítico) e a isoleucina 50 (linha tracejada em azul, na Figura 1) é
normalmente utilizada para monitorar e categorizar estes estados transitórios (Perryman e
cols., 2004).
Já foram identificados diversos
fármacos com capacidade de inibir a protease, tendo sido este um dos principais
avanços da medicina no controle do HIV-1. São normalmente pequenas moléculas
capazes de se posicionar no sítio catalítico da enzima, estabelecendo uma série
de interações que em conjunto conseguem impedir (ou retardar) a abertura
completa dos flaps. O Nelfinavir é
uma das principais drogas inibidoras da protease. O sucesso destes fármacos, no
entanto, é frequentemente limitado pelo surgimento de mutações de resistência
nas sequências virais (Johnson e cols. 2013).
Em
um estudo de 2011, o Centro de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CDCT/FEPPS - RS) identificou mutações incomuns – D30V
e V32E – em sequências de proteases obtidas de pacientes gaúchos infectados com
o vírus HIV-1 (de Medeiros e cols., 2011). Estes pacientes não estavam
sob tratamento com antirretrovirais, de modo que os vírus que eles carregavam
não deveriam estar sofrendo nenhuma pressão que favorecesse o surgimento de
variantes de protease resistentes aos inibidores de escolha. Além disso, estas
mutações foram observadas tanto em vírus do subtipo B quanto em vírus do
subtipo C. Outras mutações mais comuns, nestas mesmas posições, já haviam sido
descritas como sendo responsáveis pela resistência ao Nelfinavir (D30N) e a
múltiplos fármacos (V32I). A questão que precisava ser respondida agora era se
estas mutações "novas", identificadas nos pacientes gaúchos, também
conferiam resistência ao Nelfinavir. A identificação precoce deste tipo de
resistência poderia ser de grande auxílio à clínica, evitando que o tratamento
fosse iniciado com um fármaco ineficiente, o que levaria a falha terapêutica.
No entanto, a verificação in vitro
desta resistência envolveria uma série de procedimentos caros e demorados,
inviabilizando sua utilização como ferramenta de triagem.
Em uma parceria estabelecida entre o
CDCT e o Núcleo de Bioinformática do Laboratório de Imunogenética (NBLI/UFRGS), foi realizada uma avaliação in silico do impacto destas mutações sobre a resistência da
protease do HIV-1 ao fármaco Nelfinavir. Os resultados deste estudo foram
recentemente publicados na revista PLOs ONE (Antunes e cols., 2014).
Figura 2: Quadro apresentando as conformações observadas para quatro
proteases distintas, complexadas ao Nelfinavir, em três momentos da simulação
de dinâmica molecular.
Após a modelagem das proteínas
com as sequências de interesse (por homologia) e a montagem dos complexos com o
Nelfinavir (por ancoramento molecular), foram realizadas simulações de dinâmica
molecular de 50 nanosegundos (ns). Em todos os casos partiu-se de uma conformação
fechada da enzima, uma vez que o molde para a modelagem foi o cristal da
protease de HIV-1 complexada ao Nelfinavir (1OHR). A Figura 2 resume alguns dos resultados obtidos. A protease selvagem
do subtipo B (sB-WT, representada em preto na figura acima), que é suscetível
ao efeito do Nelfinavir, permaneceu na conformação fechada em todas as
simulações realizadas. A enzima selvagem do subtipo C, sC-WT, também apresentou
o mesmo comportamento. Por outro lado, ambas as mutações estudadas (D30V e
V32E) induziram modificações importantes no comportamento dinâmico da enzima na
presença do fármaco, efeito que de acordo com os controles utilizados é
indicativo de resistência ao Nelfinavir.
A mutação V32E parece ter um
efeito mais dramático na dinâmica dos flaps da enzima,
induzindo a troca para uma conformação aberta da protease nos dois subtipos estudados.
A rede de interações estabelecida entre a droga e a enzima, no entanto, não foi
a mesma nos dois casos, nem o padrão de abertura. A V32E do subtipo B (sB-V32E)
evoluiu para uma conformação com abertura completa dos flaps de ambas as
cadeias, permanecendo neste estado até o final da simulação. Por outro lado, a
protease sC-V32E ficou alternando entre a conformação fechada e a conformação
aberta, mantendo uma interação mais próxima do fármaco com a cadeia B da enzima
(interação também observada na sB-WT). Outras três simulações independentes
foram realizadas a partir da mesma estrutura inicial da sB-V32E, apresentando
sempre o mesmo resultado final. Além disso, cabe salientar que a protease
sB-V32E não difere da sB-WT apenas pela mutação na posição 32. Por terem sido
modeladas a partir de sequências reais, obtidas de pacientes, a sB-V32E possui
também outras mutações acessórias. Para confirmar o efeito específico da
mutação V32E, foi gerado um novo modelo diferindo da selvagem por apenas um
aminoácido em cada cadeia (sB-WT-V32E), o qual apresentou o mesmo comportamento
de abertura completa dos flaps. Estes
resultados sugerem que a mutação V32E tenha um efeito direto sobre a dinâmica
de movimentação dos flaps,
apresentando resistência específica ao Nelfinavir. Embora não testado neste
estudo, os autores discutem que um efeito semelhante poderia ser responsável
pela resistência a múltiplos fármacos descrita para a mutação V32I.
A substituição D30N é descrita
como sendo a mutação primária de resistência ao Nelfinavir (Santos e Soares, 2011). Nas simulações realizadas por Antunes e cols., 2014 ela não apresentou um efeito de
abertura completa dos flaps. Mas ela
também afetou a dinâmica deste movimento, em um menor grau. Na Figura 2,
compare o posicionamento dos flaps
para a sB-WT e para a sB-D30N, em 50 ns. Observe que os flaps da sB-D30N se mantêm “desalinhados” enquanto que os da sB-WT
se mantêm completamente fechados. Controlando pela distância ASP25-ILE50, foi
possível observar que a sB-WT retorna a conformação fechada após 32 ns de
simulação, enquanto a sB-D30N e a sB-D30V evoluem para a conformação semiaberta
após 8 ns e 20 ns, respectivamente. Este resultado indica uma interação
ineficiente com o Nelfinavir para a protease sB-D30V, equivalente ao efeito
observado para a sB-D30N. Os autores discutem os eventos que direcionam estas
alterações conformacionais na protease, salientando o papel das ligações de
hidrogênio estabelecidas entre o Nelfinavir e o resíduo 30 da enzima selvagem.
Outro ponto interessante do
estudo diz respeito a variação conformacional do próprio Nelfinavir. Durante a
simulação da sB-WT foi possível observar que o fármaco ocupou dois mínimos de
energia, os quais correspondiam a conformações distintas daquela observada no
cristal (PDB: 1OHR). Os autores realizaram uma simulação adicional de 100 ns do fármaco livre
em solução, partindo da conformação do cristal (PDB: 1OHR), tendo observado três conformações preferenciais: NF-i1, NF-i2 e NF-i3.
Figura 3: Variabilidade conformacional do Nelfinavir em uma simulação de
100 ns. Três mínimos de energia foram observados (NF-i1, NF-i2 e NF-i3), os
quais diferiam da estrutura cristalográfica (1OHR) em mais de 2 angstrons.
As conformações NF-i1 e NF-i2
correspondiam aos dois mínimos de energia observados na simulação da sB-WT,
tendo também sido observadas na simulação da protease selvagem do subtipo C.
Por outro lado, a conformação mais frequente nas proteases com mutação na
posição 30 corresponde a estrutura NF-i3. Apesar de os cristais disponíveis concordarem
quanto à conformação do Nelfinavir no sitio da protease de HIV-1, estes resultados
de dinâmica molecular nos mostram uma grande variabilidade conformacional do
fármaco. O Nelfinavir pode estabelecer distintas redes de interação com a
protease do HIV-1, dependendo de quais resíduos estiverem presentes no sítio
catalítico. Algumas destas formas serão mais eficientes que outras na
manutenção da conformação fechada do complexo e, portanto, na inibição da
enzima. Por exemplo, as mutações na posição 30 parecem impedir que o Nelfinavir
adote algumas conformações de menor energia (NF-i1 e NF-i2), levando a uma
conformação alternativa (NF-i3). Esta estrutura, no entanto, apresenta uma
interação reduzida com a enzima, induzindo uma conformação semiaberta dos flaps. Esta conformação semiaberta,
observada em 50 ns de simulação, é um indicativo de instabilidade do complexo. In vivo, na presença de outras moléculas
e do próprio substrato da enzima, deverá ocorrer a dissociação do fármaco (em
escalas de tempo maiores).
Além de responder a pergunta
inicial sobre a possível resistência conferida pelas mutações D30V e V32E, este
estudo sugere que ferramentas de bioinformática estrutural poderão ser
futuramente empregadas para a triagem de pacientes, auxiliando os profissionais
da saúde na escolha do medicamento mais indicado para cada paciente. Tal procedimento,
em conjunto com os demais testes utilizados na clínica, poderia garantir uma
remissão prolongada do HIV, prevenindo a falha terapêutica, reduzindo custos e
melhorando a qualidade de vida dos pacientes.
Post de Dinler Amaral Antunes
NBLI - Núcleo de Bioinformática
do Laboratório de Imunogenética.
Aluno de Doutorado do Programa de Pós-Graduação em
Genética e Biologia Molecular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGBM/UFRGS).