Para
o público e também para a maioria dos especialistas: (a) vivemos em um mundo
perigoso, repleto de micróbios vírus e parasitas potencialmente patogênicos dos
quais precisamos nos defender; (b) parte
importante desta defesa consiste na formação de anticorpos; e, ainda (c) a
formação de anticorpos específicos e o reforço desta defesa podem ser conseguidos
pelo uso de vacinas.
A
imunologia é um ramo das ciências biomédicas surgido no século XIX, que
investiga estas ideias surgido: (a) junto com a bacteriologia medica e a ideia
de doenças infecciosas e a generalização do conceito vacinas, por Pasteur (a teoria do germes) (Pasteur, 1878); (b) a
demonstração de que substâncias conhecidas como anticorpos participam deste
processo de defesa (Behring e Kitasato, 1890); e (c) a utilização de anticorpos
como reagentes bioquímicos específicos no laboratório clínico no diagnóstico de
doenças infecto-infecciosas e outras aplicações (os testes sorológicos).
Os
“anticorpos” são vistos como antídotos específicos produzidos pelo corpo sob
medida contra germes e outros materiais externos que o invadem, quando isto se
torna necessário. Supostamente, as vacinas anti-infecciosas ampliam esta
proteção natural do organismo por intensificar e acelerar a formação de
anticorpos. Neste modo de ver, os anticorpos surgem quando o organismo é
invadido por materiais estranhos (antígenos) e não antes disso. A produção de
anticorpos para componentes do próprio organismo seria sem sentido. Além disso,
os anticorpos ativam mecanismos destrutivos contra seus alvos e isto geraria
doenças de auto-agressão (doenças “autoimunes”).
Estas
crenças fundamentais são incompletas e equivocadas. Temos hoje outra visão do
mundo microbiano, do papel dos vírus nos fenômenos biológicos e da natureza do
parasitismo. Esta visão não mostra um mundo perigoso mas sim um mundo repleto
de relações simbióticas (Gilbert, Sapp and Tauber, 2012). Há claras
demonstrações de que a defesa anti-infecciosa envolve muito mais que a formação
de anticorpos e pode ser estabelecida sem que eles se formem. Por outro lado,
que não está claro que a proteção conferida pelo uso de vacinas dependa
diretamente da formação de anticorpos específicos. Além disso, o reconhecimento
da invasão por materiais estranhos coloca no corpo, ou em seu “sistema imune”,
uma entidade cognitiva, que toma decisões e mobiliza mecanismos, frequentemente
comparada ao sistema nervoso, que já foi chamada de “um segundo cérebro”
(Capra, 20xx).
Anticorpos
são proteínas conhecidas como imunoglobulinas (símbolo Ig), que existem em
vários tipos (IgG, IgM, IgA, IgD, IgE). As IgM podem ser formadas por animais
isolados do contato com antígenos desde o nascimento (Bos et al., 1987) na
mesma quantidade e variedade que as formadas por animais mantidos em biotérios
limpos (Haury et al. 1997). Ad imunoglobulinas, portanto, são produzidas
naturalmente como parte da construção e manutenção do organismo vertebrado.
A
pesquisa básica em imunologia cresceu extraordinariamente a partir da segunda
metade do século XX, após a caracterização da chamada “tolerância” imunológica
(Billingham , Brent and Medawar, 1953), a proposta das chamadas teorias
“seletivas” sobre a formação dos anticorpos (Jerne, 1955; Talmage, 1957;
Burnet, 1959) e se identificou o linfócito como a célula central na atividade
imunológica (Gowans, 1996).
Os
antígenos (materiais imunogênicos) são ou contêm proteínas produzidas por
outros organismos, micróbios ou vírus. A grande maioria dos antígenos com os
quais o corpo está continuamente em contato são proteínas da dieta e produtos
de sua microbiota comensal. Há claras evidências de que o organismo reage
imunologicamente a estes materiais, mas o faz de uma maneira dinamicamente
estável, ou seja, mantém um baixo nível de reação a estes materiais, embora os
encontre repetidamente. Não exibe uma reatividade progressiva, dependente de
uma “memória” imunológica, como ocorre na reação a vacinas anti-infecciosas.
Existe
também uma atividade imunológica dinamicamente estável que envolve componentes
do próprio organismo, que inclui a produção de imunoglobulinas auto-reativas
(anticorpos naturais), que inclui inclusive a produção de anti-anticorpos
(anticorpos anti-idiotípicos). Esta atividade imunológica pode gerar estados
patogênicos (doenças auto-imunes) quando esta estabilidade é quebrada e adquire
a reatividade progressiva similar a observada na vacinação anti-infecciosa.
Portanto, a visão original de um organismo que se defende de agentes
infecciosos através de respostas imunes específicas e de uma “memória”
imunológica que condiciona respostas progressivas precisa ser substituída por
outra que inclua esta estabilidade dinâmica. A
“memória” imunológica, que explica episódios de reatividade progressiva,
não explica a atividade imunológica fisiológica, cotidiana, que envolve o
convívio harmônico com proteínas antigênicas da dieta e produtos de uma vasta
microbiota comensal, além de envolver reações com produtos do próprio
organismo.
Na realidade, esta atividade que inclui
produtos do próprio organismo é altamente organizada e revela uma hierarquia.
Há uma alta frequência de clones linfocitários reativos com componentes do
organismo ligados a fenômenos inflamatórios, como as Heat-Shock Proteins
(HSPs), e também de clones dirigidos a componentes própria atividade
imunológica, como produtos do Major Histocompatibility Complex (MHC), dirigios
da imunoglobulinas e outros receptores linfocitátrios (Nóbrega et al., 2002;
Cohen, 2013). Esta organização dinamicamente estável da atividade imunológica
fala contra uma origem aleatória (ao acaso) dos linfócitos, com proposto
originalmente pelas teorias ditas “seletivas” para explicar a formação de
anticorpos (Jerne, 1955; Talmage, 1957;
Burnet, 1959).
Na
imunologia, um grande obstáculo ao desenvolvimento de novas teorias biológicas
que substituam a noção obsoleta de seleção de variantes gerados ao acaso, é a
visão dominante no laboratório clínico, onde os anticorpos são efetivamente
utilizados como se fossem reagentes bioquímicos específicos. Na realidade, os anticorpos
(as imunoglobulinas) são componentes
naturais do organismo vertebrado que são formados espontaneamente
(naturalmente) e participam de sua construção e manutenção. Há uma evidente
conectividade interna no organismo que liga estas moléculas a outras
semelhantes e a diversos outros componentes do corpo. A ideia de que o corpo,
ou uma entidade cognitiva dentro do corpo, que atua como um fantasma na máquina
imunológica (Vaz, 2010) e dirige a formação de anticorpos especificamente contra
materiais estranhos (antígenos) esta fundamentalmente equivocada. O fato de que
imunoglobulinas possam ser utilzadas como reagentes bioquímicos (anticorpos) é
incapaz de explicar a formação das imunoglobulinas e a ativação de linfócitos.
Há
um hiato entre a pesquisa em imunologia e a utilização de fenômenos
imunológicos na medicina e na própria pesquisa biológica de base. Violinos
podem ser precariamente usados como raquetes de ping-pong, mas este não é seu
uso mais inteligente. Imunoglobulinas podem ser usadas como se fossem
anticorpos específicos e linfócitos podem ser vistos como se reconhecessem
materiais estranhos ao corpo, mas não é isso o que se passa no operar
fisiológico do organismo.
Os
materiais mais capazes de perturbar intensamente o operar fisiológico de linfócitos
não são os materiais mais estranhos ao corpo. Muito ao contrário, os materiais
mais perturbadores da atividade de linfócitos de ratos são linfócitos de outro
rato; eles são muito menos perturbados, são menos ativados, pelo contato com
linfócitos de seres humanos, ou de porquinhos da Índia (Wilson and Fox, 1971).
Quando fragmentos ósseos de galinha e de pombo são colocados sobre a mebrana
corioalantóide de embriões de galinha, eles não são rejeitados porque o embrião
ainda não organizou seus linfócitos. Mas se linfócitos de galinhas adultas são
transferidos para o embrião, o fragmento ósse de galinha é rejeitadol se
oslinfócitos transferidos são de um ponbio adulto, o fragmento rejeitado é o de
ponto (Lafferty and Jones, 1969).
A
atividade imunológica não está voltada para o reconhecimento de materiais
estranhos ao corpo, embora seja esta a ideia guia na imunologia desde suas
origens. Ela está voltada para si mesma. Em 150 anos de pesquisa, a imunologia
não consegiu entender como inventar novas vacinas; como currar as doenças
alérgicas; como diagnosticar doenças autoimunes; como fazer transplantes
seguros de órgãos e tecidos e assegurar uma gravidez normal. Um novo
entendimento é urgentemente necessário na pesquisa e no ensino da imunologia.
Ele não surgirá enquanto acreditarmos em fantasmas (Vaz, 2010).
Nelson Vaz
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