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quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

E voce está interessado em que?

Depois da aventura com o timbu contada aqui no blog, bati na porta do meu professor de Fisiologia, professor Ladosky, e disse que queria ter uma experiencia num laboratório fora do Recife. A medicina que eu estudava era um troço muito atrasado. Com exceção das doenças endócrinas, pouca coisa era entendida ao nível molecular. O doente entrava na sala e frequentemente saía informado que a medicina ainda não entendia a doença. O diagnóstico era feito sem muita ajuda da tecnologia. CT não existia, MRI não existia, ultrassom não existia. Em 78 a gente não sabia de HIV, pensava que úlcera de estomago era causada por um problema de bomba de hidrogenio, e a conexão de vírus com cancer ainda era uma coisa tenue. A gente vivia num oceano de idiopatia. Por isso naquele momento eu queria entender melhor as doencas. E entender melhor as doenças passava por entender os processos básicos, dependia da ciencia básica. Ciencia que para mim tinha estacionado na adrenal do timbu. Eu precisava sair dali. 
Ladosky me perguntou se eu queria ir pra Argentina. A Argentina dava de dez a zero na gente em ciencia. Naquela época eles ja tinham tido dois premios Nobel, um, para Luis Leloir, em química (1970), e outro para Bernardo Houssay, em medicina (1947). Houssay era um endocrinologista que escreveu um livro de fisiologia, usado na escola de medicina na minha época. Houssay treinou muita gente, inclusive Leloir, e endocrinologista bom lá tinha de penca. Ladosky telefonou pra Daniel Cardinali, que estudava melatonina e pineal, em Buenos Aires. Perguntou se eu poderia passar 3 meses no lab dele. Ele não pode me aceitar, estava saindo de ferias, mas sugeriu que ligasse para Alfredo Donoso, em Mendoza.  Ladosky telefonou a seguir pra Donoso, que disse que sim, que aceitaria.
Beleza, só que tinha um pequeno problema. Naquele tempo não tinha bolsa-sanduíche, nem outras iguarias hoje disponíveis. Meu chefe não tinha dinheiro pra me mandar. Eu tinha que arranjar um jeito. Fui pro meu pai e pedi que vendesse o garrote que ele tinha me dado. Eu não tinha carro, nada. Esse garrote era meu único bem. Pensando bem, só um sujeito dismilinguido de idéia, com 20 anos de idade, tem esses impulsos. Peguei esse dinheiro e juntei com uma bolsa sub-merrecal que eu ganhava e parti de onibus para São Paulo. De la, de avião para Buenos Aires, onde um taxista me cobrou a perna esquerda do garrote pra me levar de Ezeiza para o Aeroparque …
Mas cheguei. E a primeira lembranca que tenho de Mendoza é da pre-cordilheira ao descer na pista do aeroporto (nada de fingers naquela época).  Puta impacto. Ar seco. Depois, de ouvir um espanhol cantado, com palavras indecifráveis feito durazno. Eu, como todo brasileiro, pensava que falava espanhol... Ali mesmo fiz o proposito de aprender espanhol e ao final de 3 meses já embromava bem. Meu espanhol melhorou muito quando arranjei uma namorada alemã alguns anos depois, mas isso é assunto pra outro capítulo. 
Fui bater na porta de Donoso, que era o chefe do laboratório de neuroendocrinologia. Me recebeu muito bem e me explicou o que fazia. Não era nada do outro mundo, era o trivial da época:  fazia lesoes em núcleos hipotalamicos e media hormonio em circulação por radioimunoensaio (inventado por Rosalyn Yalow, que trabalhava aqui no Mount Sinai, ganhou o premio Nobel, e partiu no dia que comecei a escrever esse post, de manhazinha, certamente pro purgatório, sem direito a milhagem). 
Outra linha que tinha no lab era desenvolvida por uma psicóloga, que estudava, claro, comportamento e endocrinologia. Essa alma piedosa e seu marido alergologista (eu não sabia direito o que era isso, mas achava inferior) me hospedaram em casa, uma vez que quedou óbvio que o belo aqui não tinha onde cair morto.  E na sua casa  fui introduzido a uma dieta que consistia em um chá preto de manha, um sanduíche de pão com uma folha de alface na hora do almoço, e um dilúvio de vaca no jantar, devidamente acompanhado de tomates grandes e suculentos, e vinho com água carbonada (heresia suprema). Aquela carne era demais. Aquela carne converteria Gandhi.  
Bom fiquei por ali no lab, aprendi a injetar rato iv, aprendi a fazer estereotaxia para injetar drogas no terceiro ventriculo, li os papers deles. No natal Donoso saiu de férias com a família e me perguntou se eu queria ficar na casa dele. Topei, claro. Conheci os vizinhos deles e fiquei amigo dos filhos que estudavam medicina.  Eles queriam saber como era o Brasil. Eu queria saber mais da Argentina, pedia pra eles me ensinarem expressões, tentava imitá-los (quer aprender uma lingua? imite).  Eles eram fascinados pela montanha e me falavam dela o tempo todo. Eu queria ir ao Chile, mas não dava. Na época a ditadura argentina estava batendo bombo alto, criou uma Guerra com o Chile por umas ilhas desoladas no cóccix da América do Sul: Picton, Lennox e Nueva. Resultado: fronteira fechada…Em janeiro de 79 dei sorte, a fronteira abriu gracas a um acordo mediado pelo Vaticano, e ali fui eu pela Cordilheira num onibus cacareco. A paisagem era linda na precordilheira: muitos vinhedos e um céu de um azul intenso, um trailer da California que conheceria 4 anos depois. No topo a paisagem era lunar. Vi neve pela primeira vez.
Aprendi muita coisa nessa viagem tão curta. Primeiro descobri que a Argentina (e o Chile) são países muito bonitos. Segundo, conheci muita gente boa, que me ajudou, que abriu meus olhos pra uma cultura fascinante, pra uma musica fantastica. Terceiro, vi que grande parte da ciencia espetacular que tinham, tinha sido  destruida pela ditadura, muita gente tinha ido embora. Por fim, vi pela primeira vez um laboratório produzindo. No meu lab no Recife a gente tentava, mas não saía nada. Em Mendoza o lab fazia pouco, mas tinha experimento todo dia. Donoso tinha na parede os papers que o lab publicava, os posters que mostrava nos meetings que ia.  Foi lá que pela vi primeira vez como funcionava um laboratório. 
Mas o que mais me marcou nessa  viagem foi uma pergunta que Donoso me fez assim um dia, na lata: e voce, voce está interessado em que?  
Eu disse que estava interessado em entender como os hormonios agiam no cérebro e como o cérebro controlava a produção de hormonios. Mais especificamente sobre como esse processo era integrado ao nível do hipotálamo e hipófise. Essa, claro, era a resposta que meu chefe teria dado a ele. Não refletia o que eu realmente estava interessado. Eu estava interessado em literatura, medicina, música, cinema, meninas, e em biologia, não necessariamente nessa ordem. Não tinha uma pergunta, não tinha “a” pergunta. 

Acho que o que eu estava interessado, interessado mesmo, era em ser surpreendido por algo que mudasse minha maneira de entender e sentir as coisas.  Algo que aparecesse, de repente; com grande clareza, num resultado, numa lamina, num filme, num poema.
Estava interessado na descoberta. Nela, sorrindo, descendo a ladeira.
Bom carnaval pra voces!

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6 comentários:

  1. Simplesmente sensacional...

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  2. Acho muito legal vc contar essa trajetoria, Sergio. Tambem conheço Mendoza e partilho do seu entusiasmo pelas pessoas e a comida de lá. Principalmente, curti o que vc falou da descoberta. Isso pra mim é o que faz a pessoa ficar ou não nesta carreira, que não é fácil. bjo!

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  3. Eu me divirto bastante. Eu acho que dá pra juntar todos os posts depois e fazer um belo livro sobre ciencia na vida ou vida na ciencia, acho que não importa muito a ordem. Admiro muito, Dr Lira =)

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  4. pessoal,que diabo vcs estao fazendo aqui nesse blog? eu pensei que tava todo mundo no frevo...aproveitem...beijos

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