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terça-feira, 1 de março de 2011

Tomadas de decisão do sistema imune: o tecido tem um papel importante?

Caros companheiros do Blog da SBI,
Andei um pouco sumida do nosso Blog por várias turbulências da vida, mas, agora, estou de volta, firme e quase forte...
Fico contente de ver que o nosso Blog anda bem animado, inclusive com ótimos novos blogueiros. Viva!

Hoje, quero levantar a discussão sobre os diferentes caminhos para as tomadas de decisão no sistema imune. Vamos ver se dá samba (ou frevo)!
O trabalho que trago para discutir com vocês envolve a discussão sobre como múltiplos fatores influenciam as células do sistema imune na tomada de decisão sobre que caminhos seguir: Regula ou Inflama? Que tipo de resposta Regula ou Inflama, ou mesmo como o sistema imune, fora do contexto de doença, também lança mão de múltiplos caminhos nos processos de reparação de tecidos, contribuindo para a manutenção da homeostase. Certamente, eu não sou a única interessada nessas questões e a ideia é, justamente, provocar o debate e estimular o surgimento de novas visões.
Acredito que, se conseguirmos compreender melhor os mecanismos - fatores e contextos - determinantes nas tomadas de decisão pelo sistema imune, teremos novos elementos para desenvolver estratégias terapêuticas visando direcionar a resposta para um determinado desfecho.

No artigo de revisão, publicado neste mês de março na Nature Reviews in Immunology (“Tissue-based class control: the other side of tolerance”), Polly Matzinger e Tirumalai Kamala trazem uma reflexão sobre o papel do tecido, como integrante ativo das tomadas de decisão pelo sistema imune. Vale muita a pena ler, pensar, discutir.

Para os alunos mais novos que não tiveram a oportunidade de conhecer a Polly Matzinger, pessoalmente, quero contar uma história engraçada que vivi, há vários anos, em um congresso de imunologia básica de transplante (Basic Science Symposium of the Transplantation Society). Perdoem-me meus alunos que já ouviram esta história antes... Esses simpósios são excelentes; pouca gente, favorecendo uma aproximação das pessoas, e muita discussão científica. Fomos eu e minha ex-aluna e amiga, Mônica Spadafora Ferreira - atualmente, pesquisadora no Instituto Butantan, em São Paulo - e nos divertimos muito. Para dar um pouco a ideia do contexto, a discussão sobre a teoria do perigo (Danger Theory) e sobre se o sistema imune discrimina o próprio e não-próprio, ou se ele, apenas discrimina situações adversas de perigo estava em evidência.

Era a sessão de apresentações orais de trabalhos selecionados, e Christian Larson apresentava dados interessantes (ainda não publicados, na ocasião) sobre como a rejeição ocorria mesmo após o desaparecimento do processo inflamatório. A pergunta era: a inflamação que ocorre no enxerto desencadeada, inicialmente, pelo ato cirúrgico é imprescindível para desencadear a rejeição do aloenxerto? Na teoria do perigo, a rejeição só ocorreria se o contexto fosse inflamatório. Pois bem. Os pesquisadores utilizaram modelos murinos de transplantes alogeneicos (de pele e de coração), em receptores RAG-1 KO (sem linfócitos T e B) e observaram que mesmo após o desaparecimento completo do processo inflamatório (50 dias após o transplante, avaliado pela expressão de diversas moléculas inflamatórias), os camundongos que recebiam linfócitos T rejeitavam o enxerto. Sim! O enxerto foi vigorosamente rejeitado mesmo depois do processo inflamatório ter desaparecido. Ou seja, a resposta inflamatória efetora e rejeição ocorrem mesmo na ausência de inflamação. Claro, pode-se argumentar que nem todos os parâmetros de inflamação foram avaliados e podia ainda haver alguma sinalização de “perigo”. É verdade, mas vale a pena pensar sobre as interpretações desses dados.
Polly Matzinger estava sentada na última fila de cadeiras do auditório. Com seus cabelos pintados de verde, levanta-se e, numa postura bem teatral, caminha, solenemente, bem devagar, até a frente do auditório. Silêncio na sala. Inclinando um pouco a cabeça para um lado e para o outro, como se ainda estivesse refletindo, ela olha para os resultados apresentados na tela e, simplesmente diz: “interesting.....”. E volta para o seu lugar. Esta é uma imagem que guardo como especial. Aquele comentário e aquele silêncio traduziam um questionamento sobre se o microambiente inflamatório era, realmente, determinante no desencadeamento uma resposta imune inflamatória. Era um momento de refutar a hipótese? Importante, mas não determinante?

Polly Matzinger é, certamente, uma pessoa instigante no cenário científico da imunologia. É importante se deslocar daquele determinado olhar e examinar sob outra perspectiva. Voltemos ao trabalho de revisão. Matzinger e Kamala desenvolvem uma linha de argumentação sobre como o tecido onde a resposta imune ocorre participa, ativamente, no controle da classe efetora da resposta imune. Aqui, vale explicar que elas definem classe efetora imunológica, como o conjunto de componentes de uma determinada resposta imune, incluindo as células envolvidas naquela resposta. Assim, cada classe efetora inclui uma determinada combinação de células T auxiliares e os anticorpos e células efetoras que elas induzem.
Consideram, no momento, três principais tipos de classe efetora:
(i) Resposta do tipo Th1: células T que produzem IL-2, IFN-g, TNF, células B que produzem anticorpos IgG fixadores de complemento, CTLs, NK ativadas e macrófagos que produzem radicais livres de oxigênio;
(ii) Resposta do tipo Th2: células T que produzem IL-4, IL-5, IL-13 e IL-10, células B que produzem anticorpos IgE e IgG1, macrófagos que expressam arginase, e o influxo de eosinófilos;
(iii) Resposta do tipo Th17: células T que produzem IL-17 e o influxo de neutrófilos.

Em contraposição à visão de que o patógeno determina a classe efetora da resposta imune, elas defendem ser primariamente o tecido que direciona o tipo de resposta imune mais adequada ao seu microambiente, minimizando a possibilidade se seu próprio dano, sempre que possível. As bases dessas ideias foram publicadas previamente em outros trabalhos. Nesta revisão, elas desenvolvem a argumentação com exemplos de dados de outros grupos para sustentar suas ideias.

Para fundamentar sua argumentação, citam diversos dados de outros grupos mostrando que, em diferentes contextos, há participação de uma diversidade de componentes de classe efetora, de forma isolada ou em diferentes combinações. Em concordância com a visão do grupo da Anne Kelso, de que os padrões Th1 e Th2 são apenas extremos de um continuum multidimensional (com base nas análises com únicas células mostrando que clones não produzem citocinas Th1 e Th2 de forma estável), defendem que está na hora de paramos de “forçar” o enquadramento dos inúmeros tipos de respostas imunes dentro de poucas categorias. Isto tem limitado nossa capacidade de reconhecer a enorme diversidade de resposta imune.

Eis a principal hipótese de trabalho: cada célula efetora é controlada por um conjunto de sinais (de membrana e secretados) derivados de uma diversidade de fontes (das Th e outras fontes), e pode se associar com qualquer outra célula efetora, gerando uma variedade de respostas imunes.
Dada esta variedade de células efetoras e as Th que facilitam a sua ação, o que determinaria a ocorrência de uma ou de outra combinação efetora naquela resposta imune? As pesquisadoras acreditam que o tecido tenha esta função, tanto pelo contexto da tolerância oral como dos sítios imunoprivilegiados.

A discussão se estende, aprofundando a análise conceitual e funcional sobre esses dois fenômenos, e que tipo de resposta imune seria mais apropriada/adaptada àquele determinado tecido. Os tecidos parecem ter múltiplas formas de comunicação com o sistema imune: educando as APCs residentes, controlando respostas destrutivas. Elas discutem que talvez os sinais derivados dos tecidos funcionem como um terceiro sinal na ativação de linfócitos T. Olhando o tecido como componente ativo da sua própria proteção e considerando a sua importância na composição da resposta imune, as pesquisadoras propõem que talvez devamos redefinir o sistema imune para incluir todos os tecidos do organismo.

Há vários outros pontos analisados e discutidos, sobre o tempo, as células de memória e as Treg, mas não posso me prolongar mais. Recomendo a leitura e discussão com os alunos.
É uma discussão interessante e instigante que nos estimula a ampliar o olhar.
Ampliando o nosso olhar, é muito provável que consigamos ver outros fenômenos e mesmo interpretar velhos fenômenos de outras maneiras.

Para terminar, quero citar, textualmente, três frases que considero importantes e inspiradoras para o desafio de fazer ciência e participar da formação de novos cientistas.

1) Sobre as diferentes interpretação de resultados:
“There is, however, a world of difference between data and interpretations”.

2) Sobre as nossas escolhas de análise no delineamento experimental, e o direcionamento do que encontramos: “Because what we think influences what we do, we also geared our model systems to generate these responses.”

3) Enfrentando a complexidade:
“To fully understand these complex interactions we will need to step back, have another look, start using assays that measure a wider array of immune function, and to embrace the complexity that we find”. (provavelmente, não “fully”, mas, parece-me um caminho importante a ser experimentado!)

Boa leitura e boa discussão!

Referências
Tissue-based class control: the other side of tolerance. Matzinger P, Kamala T. Nat Rev Immunol. 2011 Mar;11(3):221-30.
http://www.nature.com/nri/journal/v11/n3/pdf/nri2940.pdf)

Friendly and dangerous signals: is the tissue in control?
Polly Matzinger. Nature Immunology 8, 11-13 (January 2007) doi:10.1038/ni0107-11 Commentary

Vigorous allograft rejection in the absence of danger. Bingaman AW, Ha J, Waitze SY, Durham MM, Cho HR, Tucker-Burden C, Hendrix R, Cowan SR, Pearson TC, Larsen CP. J Immunol. 2000 Mar 15;164(6):3065-71.

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2 comentários:

  1. Nossa, a história de vida da Polly Matzinger é muito interessante e essa discussão sobre a teoria do perigo talvez seja fruto desse modo de olhar as coisas de maneira "incomum". ótimo post.

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  2. Em relação à rejeição de transplante e inflamação no local do enxerto, etc. Eu gostaria de fazer a seguinte consideração: Aproximadamente 30% dos nos linfócitos se ativam quando há disparidade de MHC. Chamo a atenção que na reação alogênica ou alogeneica, não se tem adjuvantes microbianos ou outro tipo de estimulação de células dendríticas que explique esta ativação intensa dos linfócitos T. Eu acho que rejeição de transplante é um capítulo à parte da Imunologia e um fenômeno não natural e, portanto não pode ser visto como uma reatividade natural do sistema imune. Por outro lado a relação materno-fetal é uma atividade natural do sistema imune, mas que eu não me arrisco a dar palpites.

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