Busquei uma ponta de inspiração no último belo texto do Sergio para escrever o meu post de hoje. Lá, um dos personagens centrais era o timbu, que aqui na terra da garoa costumamos chamar de gambá. Assim, aqui, a expressão popular que faz referência ao gosto do bicho pela cachaça é "mais bêbado que um gambá". Aliás, bem frequente na boca do povo em época de carnaval. Gambá também vem do tupi, originalmente "guaambá", gua 'seio, ventre' + ambá = embá 'vazio, oco'. Obviamente em referência ao marsúpio do animal. Mas o texto de hoje é sobre outro marsupial, esse que está aí na foto, o diabo da tasmânia. Como o próprio nome diz, hoje em dia, o animal é encontrado quase que exclusivamente na ilha da Tasmânia, Austrália.
O bicho tem fama de feroz e voraz, quem sabe eternizada em parte por conta do personagem Taz (Looney Tunes). O animal, de fato, tem um porte físico robusto, com uma cabeça curta, larga e musculosa. Uma mandíbula poderosa e molares bem desenvolvidos que o fazem capaz de triturar ossos. É descrito como de hábito crepuscular e comportamento solitário, inclusive na caça. Apesar de caçar, a alimentação dos diabos da tasmânia parece ser mais frequente a partir da carcaça de animais já mortos. Nesta circunstância, a alimentação ocorre em grupos. Os encontros entre membros da espécie não costumam ser muito amistosos, isto para não dizer que são, na verdade, frequentemente caracterizados por muita agressividade. Os animais envolvem-se em lutas (pela disputa de comida e, entre os machos, também pelas fêmeas) que deixam marcas e provocam lesões sobretudo na região da face. Curiosamente, este hábito peculiar dos diabos da tasmânia tem contribuído para a disseminação de um tumor que vem exterminando a espécie. Trata-se do tumor facial do diabo da tasmânia. É uma neoplasia transmissível, muito agressiva e que não parece estar associada a vírus algum. O tumor é transmitido de um animal a outro durante as lutas e/ou ao compartilhar o mesmo alimento. Os tumores primários aparecem na face e na cavidade oral.
Eles limitam de tal modo a capacidade dos animais se alimentarem que em muitos casos acabam em si causando a morte. Metástases são comuns no pulmão mas também ocorrem no baço, coração e crânio. A neoplasia é tão agressiva que alguns estudos reportam 100% de mortalidade em um período de 6 meses após o aparecimento dos primeiras lesões. Estima-se que a partir de 1996, quando o primeiro caso foi descrito, houve um declínio de 70% na população de diabos da tasmânia. Por conta disso, o diabo da tasmânia está hoje em dia entre as espécies que correm sério risco de extinção. Alguns estimam que o animal, em vida livre, estaria extinto dentro de 25 anos.
Como explicar um fenômeno assim? Boa parte da resposta parece estar na imunologia. Por causa de estudos envolvendo análises genéticas de tumores retirados de vários animais excluiu-se a possibilidade de que o tumor se desenvolva de novo a partir das células de cada indivíduo acometido e, ao contrário, acredita-se que o tumor tenha origem em um único clone de célula tumoral proveniente de um único animal. Por isso considera-se que a neoplasia seja de fato transmitida de um animal a outro. Em princípio, a transmissão de uma célula de um indivíduo à outro deveria gerar uma resposta imune que acabaria por destruir tal célula, exatamente como acontece no caso de um aloenxerto. Como então este tumor tem se disseminado com tamanha facilidade entre os diabos da tasmânia? A pista parece ter partido de diferenças na incidência da neoplasia entre animais presentes em distintos locais da ilha. A incidência do tumor e o consequente declínio na população são muito maiores no lado leste da ilha, em especial no nordeste. Verificou-se que nesta população que habita a costa leste da ilha existe pouquíssima diversidade nos genes que codificam as moléculas do MHC de classe I. O sequenciamento que corresponde às regiões nas quais os peptídeos se ligam às moléculas de classe I mostrou que esses animais são praticamente idênticos quanto a isso. Ainda mais, os bichos compartilham os mesmos alelos com as células tumorais. Logo, são praticamente todos igualmente incapazes de montar uma resposta imune que rejeite o tumor. Há evidências de que animais habitando o outro lado da ilha apresentam diferenças genéticas em relação aos que estão no leste, inclusive quanto à diversidade nos genes do MHC. Há esperança de que estas diferenças sejam suficientes para que os animais resistam melhor ao tumor, tal qual a epidemiologia parece sugerir. Estudos que confirmem estas hipóteses parecem estar em curso e estratégias para preservar a espécie tem se baseado nessa premissa. De qualquer modo, parece um ótimo exemplo das eventuais consequências que podem advir da endogamia que leva a pouca diversidade em genes do MHC em uma população em particular. Para os que se interessaram, aí vão algumas referências.
Belov K. The role of the Major Histocompatibility Complex in the spread of contagious cancers. Mamm Genome. 2011. 22(1-2):83-90.
O'Neill ID. Tasmanian devil facial tumor disease: insights into reduced tumor surveillance from an unusual malignancy. Int. J. Cancer. 2010. 127(7):1637-42.
Siddle HV et. al. MHC gene copy number variation in Tasmanian devils: implications for the spread of a contagious cancer. Proc Biol Sci. 2010. 277(1690):2001-6.
E como explicar o tumor venereo transmissivel que acomete cães? Nos cães é a mesma situação do diabo da Tazmania, uma célula tumoral transmitida de um indivíduo para outro. Mas no caso dos cães, existe uma variabilidade genética enorme (basta comparar um pincher com um Mastiff!).
ResponderExcluirOlá Anônimo, a sua pergunta é muito boa. Mas na verdade, apesar de ambos serem tumores transmissíveis, há diferenças brutais entre essa neoplasia dos diabos da Tasmânia e o TVT em cães. A neoplasia facial dos diabos tem se mostrado muito agressiva e com grande capacidade de gerar metástases. Até agora parece não haver evidências claras de um único animal no lado leste da ilha que tenha sido capaz de gerar uma resposta imune contra o tumor ou mesmo que tenha sobrevivido ao tumor. No caso do TVT em cães o cenário é bem distinto. O tumor regride espontaneamente na maior parte dos cães saudáveis e raramente gera metástases. As metástases tendem a ocorrer apenas em animais com algum comprometimento do sistema imune. Além disso, o tumor desencadeia respostas imunes celular e humoral. É claro que em cães a diversidade genética é grande, incluindo os genes do MHC. No entanto, a ocorrência do TVT também parece estar relacionada (como provavelmente acontece em outros tumores não transmissíveis) com as moléculas do MHC. Mas nesse caso a questão é o nível de expressão de moléculas do MHC pelo tumor. Para o TVT isso parece variar entre a fase de progressão e remissão do tumor. O assunto é discutido na primeira referência mencionada no post. É claro que isso não parece suficiente para explicar o fato deste tumor (TVT) em específico ser transmissível. Acho que essa é uma questão que permanece mesmo em aberto. Por fim, o ponto importante a ser enfatizado é que para o tumor facial dos diabos da Tasmânia, a baixa diversidade dos genes do MHC trouxe consequências que vão muito além da neoplasia ser transmissível.
ResponderExcluirExiste alguma possibilidade de ocorrer um tumor com padrão semelhante de trasmissão em seres humanos? Será que células cancerosas que não foram infectadas por nenhum vírus mas são capazes de produzir tumores poderiam ser transmitidas em bancos de sangue ou por doação de órgãos?
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