A edição de julho da Nature Immunology traz, por ocasião do seu falecimento, uma pequena homenagem ao imunologista japonês Tomio Tada. Como diz a nota escrita por Masaru Taniguchi, Tada, na primeira metade dos anos 70, foi um dos responsáveis pelo surgimento do conceito de que células T podem atuar de modo a suprimir ou regular uma resposta imune, no caso, mais especificamente, produção de anticorpos1. Ao lado de Tada, outro nome que não pode deixar de ser citado é o de Richard Gershon, que em 1971 publicou com Kondo um artigo2 intitulado “Infectious immunological tolerance” no qual, de modo similar, delineava a participação de células T na manutenção da tolerância e na supressão de respostas imunes. Como também comentou Masaru, ao redor desta época, por meio de experimentos utilizando conjugados hapteno‐proteína e transferência de células T e B, havia se estabelecido e firmado o conceito da cooperação entre linfócitos T (auxiliares) e B na produção de anticorpos. Logo, a ideia de linfócitos T mediarem regulação ou supressão era inovadora e um tanto provocativa.
Hoje em dia, como sabemos, as celulas T reguladoras (e não mais supressoras, como naquele tempo) são aceitas por quase todos. Contudo, de lá até os dias de hoje muito se passou e o caminho percorrido neste período contou com trechos um tanto quanto difícies e tortuosos, para dizer o mínimo. Resolvi pegar o gancho da homenagem prestada a Tomio Tada para escrever um pouco sobre um desses trechos.
Parte da caracterização das células T supressoras ocorreu a partir de um soro que continha anticorpos específicos para determinantes antigênicos de moléculas do MHC de classe II. A princípio, não se esperaria que este soro reagisse com células T, já que estas (ao menos em camundongos) não deveriam expressar moléculas de classe II. No entanto, de maneira surpreendente, alguns pesquisadores observaram que este soro era capaz de bloquear a atividade supressora das tais células T. De modo ainda mais curioso, quando o soro era adsorvido por meio da incubação com células da linhagem de camundongo B10.A(5R) ele perdia a capacidade de bloquear a atividade supressora das células T. Isso não ocorria quando o soro era incubado com células de outra linhagem, a B10.A(3R). A enorme surpresa devia‐se ao fato de que supostamente as duas linhagens apresentavam MHCs exatamente iguais. Contudo, os dados indicavam que esse não era o caso, e que a B10.A(5R) havia herdado algo que não estava presente na B10.A(3R). A previsão era de que uma nova subregião deveria estar presente entre as subregiões que hoje conhecemos como I‐A e I‐E do MHC murino. Os autores3, 4 sugeriram então o gene I‐J e, assim, os determinantes antigênicos codificados por ele passaram a ser uma forma de reconhecer e mesmo explicar a função das células T supressoras.
Os problemas tiveram início quando um trecho do DNA de 200 kb englobando a região I do MHC murino foi clonado e caracterizado5. Para a surpresa dos imunologistas, a subregião I‐J não se encontrava onde deveria. Em seguida, mais evidências obtidas a partir de outras abordagens falharam em identificar genes localizados na região I do MHC que pudessem codificar determinantes I‐J6. A partir daí, passou‐se a questionar a existência do locus I‐J e portanto, a própria existência de células T supressoras. Um pequeno exemplo foi o editorial escrito por Goran Möller no Scand. J. Immunol em 1988. O título era “Do suppressor T cells exist?”7. Grandes nomes da imunologia tais como Charles Janeway8 e Antonio Coutinho9 escreveram cartas resposta a esse editorial fazendo um contra ponto, tentando abrir novas perspectivas ou, de algum modo, colocando panos quentes. O próprio Tomio Tada também escreveu a sua carta10 em resposta ao editorial de Goran Möller.
O fato é que passados alguns anos, mesmo com algumas alternativas e novas hipóteses que pudessem acomodar todos os achados e explicar a origem dos determinantes I‐J, o assunto parece ter ficado quase proibido.
O ressurgimento das células T reguladoras se deu muito tempo depois, no início dos anos 90 e, a princípio, de modo bastante tímido. Os experimentos envolviam timectomia neonatal e o consequente desenvolvimento de doenças autoimunes. Alguns desses experimentos tiveram a importante participação da brasileira Adriana Bonomo, trabalhando no laboratório de Ethan Shevach11. Em seguida veio a descoberta de Shimon Sakaguchi de que as células T CD4+ CD25+ eram importantes para a manutenção da tolerância imunológica12. E por fim, por volta de 2003, veio a descoberta de que o fator de transcrição foxp3 é essencial para a geração e função das células T reguladoras13. Acredito que só a partir daí, da descrição de foxp3, os imunologistas, de modo geral, se sentiram realmente a vontade para voltar a discutir esses conceitos de maneira mais aberta.
As células T reguladoras agora tão estudadas são as mesmas das descritas anteriormente? Que eu saiba, não há resposta definitiva para essa pergunta. Talvez não. E os tais determinantes I‐J? Desses acho que se fala cada vez menos. E confesso que nunca encontrei a descrição de nenhuma boa evidência que comprovasse qualquer das alternativas propostas para explicá‐lo. Parece mesmo ter sido o artefato mais famoso da imunologia. Ou ao menos, um dos. Caso alguém conheça melhor a história ou o final dela, está aí o gancho para escrever um novo post sobre o assunto.
Quanto ao conceito de regulação, apesar de todas as evidências acumuladas nos últimos tempos, ainda há quem discorde. E gente graúda, como já comentado pela Verônica Coelho anteriormente aqui no blog e também testemunhado por todos os que acompanharam a visita de Rolf Zinkernagel ao Brasil.
Referências:
1. Takemori T, Tada T. Properties of antigen‐specific suppressive T‐cell factor in the regulation of antibody response of the mouse. I. In vivo activity and immunochemical characterization. J Exp Med 1975; 142 (5):1241‐1253.
2. Gershon RK, Kondo K. Infectious immunological tolerance. Immunology 1971; 21 (6):903‐914.
3. Murphy DB, Herzenberg LA, Okumura K, McDevitt HO. A new I subregion (I‐J) marked by a locus (Ia‐4) controlling surface determinants on suppressor T lymphocytes. J Exp Med 1976; 144 (3):699‐712.
4. Tada T, Taniguchi M, David CS. Properties of the antigen‐specific suppressive T‐cell factor in the regulation of antibody response of the mouse. IV. Special subregion assignment of the gene(s) that codes for the suppressive T‐cell factor in the H‐2 histocompatibility complex. J Exp Med 1976; 144 (3):713‐725.
5. Steinmetz M, Minard K, Horvath S et al. A molecular map of the immune response region from the major histocompatibility complex of the mouse. Nature 1982; 300 (5887):35‐42.
6. Kronenberg M, Steinmetz M, Kobori J et al. RNA transcripts for I‐J polypeptides are apparently not encoded between the I‐A and I‐E subregions of the murine major histocompatibility complex. Proc Natl Acad Sci U S A 1983; 80 (18):5704‐5708.
7. Moller G. Do suppressor T cells exist? Scand J Immunol 1988; 27 (3):247‐250.
8. Janeway CA, Jr. Do suppressor T cells exist? A reply. Scand J Immunol 1988; 27 (6):621‐623.
9. Pereira P, Larsson‐Sciard EL, Coutinho A, Bandeira A. Suppressor versus cytolytic CD8+ T lymphocytes: where are the artefacts? Scand J Immunol 1988; 27 (6):625‐628.
10. Tada T. But still it moves! An answer to Professor Goran Moller. Scand J Immunol 1988; 27 (6):623‐624.
11. Bonomo A, Kehn PJ, Shevach EM. Post‐thymectomy autoimmunity: abnormal T‐cell homeostasis. Immunol Today 1995; 16 (2):61‐67.
12. Sakaguchi S, Sakaguchi N, Asano M, Itoh M, Toda M. Immunologic self‐tolerance maintained by activated T cells expressing IL‐2 receptor alpha‐chains (CD25). Breakdown of a single mechanism of self‐tolerance causes various autoimmune diseases. J Immunol 1995; 155 (3):1151‐1164.
13. Hori S, Nomura T, Sakaguchi S. Control of regulatory T cell development by the transcription factor Foxp3. Science 2003; 299 (5609):1057‐1061.
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