O termo plausível tem a mesma raiz latina
de aplauso. Algo lido ou ouvido ou assistido é considerado plausível quando faz
algum sentido, quando é passível de aceitação por quem assiste, ouve ou lê. É
um termo que se refere à cooperação, à coordenação de condutas entre seres
humanos. Qualquer ficção - literária, coloquial ou de outra natureza - precisa
ser plausível, mas a realidade, o que sucede, o que acontece não tem essa
restrição. Por isso, Gregory Bateson disse que a ciência nunca prova nada (“never
proves anything”) (1), que ela pode melhorar (“improve”) nosso entendimento,
rejeitar (“disprove”) um entendimento prévio, mas nunca prova nada. O que se
passa é em grande parte imprevisível, na realidade que nos é invisível; há
aquilo que se passa sem que nós notems e há muito mais que nos é irreconhecível.
Usualmente, a previsibilidade é vista como um atributo importante do pensamento
científico, mas Humberto Maturana não crê que a previsibilidade seja uma
característica fundamental da ciência, como são as explicações. Toda a ciência
está baseada em explicações aceitas segundo certos critérios de validação, que
as distingue de outros tipos de explicações – éticas, estéticas, mágicas ou
religiosas (2). Mas aquilo que vai se passar no momento seguinte pode ser
imprevisível e inexplicável.
A imunologia é um tema importante na
medicina e na biologia porque busca explicar mecanismos usados pelo organismo
para lidar com o imprevisível, para tornar plausível e assimilável aquilo que não
estava previsto no viver. Usualmente pensamos na atividade imunológica de
linfócitos como imunidade anti-infecciosa, como parte de uma defesa contra
doenças infecciosas, algo que nos protege de vírus, micróbios e parasitas, mas
a situação é bem mais complexa.
Para se dar conta de que foi invadido por
algo que não lhe pertence, o corpo precisaria manter sempre atualizado um
“inventário” detalhado de sua própria
composição cambiante a cada instante. O corpo é uma entidade dinâmica, em
contínua modificação, que troca continuamente suas partes celulares e
moleculares, e manter este inventário parece impossível; principalmente impossível
quanto a natureza da entidade que faria este reconhecimento minucioso e cambiante
– um fantasma na máquina molecular, uma entidade cognitiva. Esta vigilância
defensiva não poderia ser a de um sentinela, que vigia em silêncio, mas sim
algo que alguns chamam de tenacidade, aquilo que nos permite escutar algo que
um amigo nos sussurra em meio ao ruído de uma festa animada.
O corpo está em contato contínuo com
inúmeros materiais que não lhe pertencem, mas não o ameaçam diretamente, como as
macromoléculas presentes em seus alimentos e também inúmeros produtos de sua flora
microbiana comensal, hoje conhecida como a microbiota nativa. Absorvemos ainda
intactas ou parcialmente digeridas muitas macromoléculas dos alimentos e também
inúmeras coisas que nossa vasta microbiota nativa produz. Estes materiais
constituem a grande massa de materiais externos com os quais o corpo entra em
contato. Há um certo grau de previsibilidade nestas exposições, construídas
gradualmente na ontogênese mas, mesmo assim, dar conta do que se passa.
Identificar os materiais invasores, parece igualmente impossível. Não me parece plausível, portanto, que o corpo
faça um levantamento contínuo das diferenças entre a sua própria composição e
os diversos materiais biológicos com os quais está continuamente em contato; tornar
testes materiais conhecidos e assimiláveis é indissociável da própria maneira
do corpo construir e manter-se a si mesmo.
Precisamos de uma outra maneira de ver o
corpo, o organismo. Deste pensamento criamos o título de um pequeno livro que
escrevemos sobre tais problemas: “Onde está o organismo. Derivas e outras
histórias na biologia e na imunologia” (3). Na capa traseira deste pequeno
livro, colocamos uma das frases mais profundas sobre a Biologia que já ouvi, da
autoria de nosso coautor Jorge Mpodozis, neurobiólogo da Universidade do Chile:
"Há plasticidade nos modos de desenvolver. Os
caminhos do desenvolvimento teem plasticidade em todos os momentos, é isso o
que permite essa maravilhosa diversidade de linhagens de seres vivos. Mas o
problema não é o que é plástico, e sim o que se conserva. Se a mudança é uma
condição constitutiva do viver, então, como se conserva aquilo que se
conserva?"
Na
imunologia, apenas recentemente começamos a atentar para aquilo que se conserva
em meio a tudo quilo que varia, ou seja, a nos preocuparmos com padrões, perfis
estáveis de atividade. Um camundongo troca todos os seus linfócitos várias
vezes em um ano, no entanto, as imunoglobulinas que produz – seus “anticorpos
naturais” – principalmente as IgM, são de uma constância extraordinária (4).
Esta possibilidade de caracterizar padrões de reatividade tem sido a tônica do
trabalho de Cohen e associados nos últimos anos (5). Como se conservam estes
padrões? São eles que nos permitem, finalmente, nos referirmos a um “sistema
imune” de maneira genuína. Mais recentemente, observações similares foram
estendidas às células T (6).
Cpmeça a
ser plausível que existam, afinal, conexões entre as células T do organismo.
Bibliografia
(1)
Bateson, G. (1980) Science
never proves anything. In “Mind and Nature. A necessary Unity” London, Fontana,
pp.24-36.
(2)
Maturana, H (1998) Biologia da
autoconsciência. In “Ontologia da Realidade” Belo Horizonte, Editora UFMG.,
pp.211-241
(3) Vaz , N.M., J.M.
Mpodozis, J.F Botelho and G.C. Ramos. Onde Está O Organismo? - Derivas E
Outras Histórias Na Biologia E Na Imunologia. Florianópolis: editora-UFSC,
2011.
(4) Haury, M., et al.
(1997). "The repertoire of serum IgM in normal mice is largely independent
of external antigenic contact." Eur J Immunol 27(6):
1557-1563.
(5) Cohen, I. R. (2013).
"Autoantibody repertoires, natural biomarkers, and system
controllers." Trends Immunol. 10.1016/j.it.2013.05.003
(6)
Madi, A., et al. (2014). "T-cell receptor repertoires share a
restricted set of public and abundant CDR3 sequences that are associated with
self-related immunity." Genome Research.
doi 10.1101/gr.170753.113.
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