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sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Sobre a educação

 Este texto é parte do Discurso de Posse de Cláudio Tadeu Daniel-Ribeiro, editor associado de Neurociências, como Membro Titular (Cadeira 87, Patrono João Baptista de Lacerda) na Academia Nacional de Medicina, 31 de agosto de 2010.



"... É antiga usança acadêmica que o recipiendário também aborde, em sua fala, um assunto de interesse da Academia, como a Saúde Pública, a prática clínica, a ética médica ou a investigação científica. Envolvido na vida Acadêmico-Científica desde o meu primeiro ano de formado, há 33 anos, poderia optar por discorrer sobre algum dos temas que afligem Cientistas e Líderes de Instituições Públicas de Pesquisa: políticas de avaliação do desempenho acadêmico-científico baseadas no impacto dos periódicos científicos em que publicamos, organização das Instituições de Pesquisa, estruturação do processo de produção de conhecimento moderno, a hiperespecialização e a formação de jovens pesquisadores...

Tenho a sorte de pertencer a uma Instituição que, mesmo não estando imune aos problemas ligados a essas questões, é um Oásis na realidade Nacional, Sul-Americana e do Hemisfério Sul. Uma história singela, entretanto, vivida durante a travessia da temporada de minha candidatura, me impressionou de maneira tão marcante, que fez nascer em mim o desejo de tratar do tema que acho que esteja por trás dela.
Optei, assim por falar sobre a Educação fundamental e do respeito às regras em nosso País. Explico como tomei tal decisão. Passei o fim de semana que precedeu o prazo final para entrega do currículo e da monografia trabalhando com minha leal secretária Cláudia Castro em meu Laboratório de Pesquisas no campus da Fiocruz.
Na manhã de sábado, entrei apressado no Prédio, e não vi cair do bolso do paletó dobrado em meus braços, minha carteira de dinheiro e documentos. Instantes depois, batia à porta do Laboratório o zelador do prédio acompanhado de um funcionário da jardinagem, para a devolverem a mim. Antes de retomar meu trabalho, ditei uma carta ao Chefe de Serviço dos protagonistas do episódio fazendo comentários elogiosos sobre a, esperada e natural embora progressivamente rara, idoneidade deles.

Dias depois, encontraria um dos funcionários na entrada do prédio. Saudou-me e disse que havia sido chamado pelo seu superior que lhe havia mostrado a minha carta e o elogiado. Confessou-me que, apesar de ter trabalhado com o mesmo afinco e dedicação na Fiocruz todos os dias dos últimos muitos anos, nunca havia recebido uma carta de elogio, e que aquele era, sem dúvidas, o dia mais feliz da vida dele. Assim que fui eleito e experimentei uma emoção sem precedentes pensei em nossas felicidades, a minha e a de meu colega Luciano Faceiro, competente e dedicado funcionário dos jardins, vivenciadas em um dos dias (para dizer o mínimo) mais felizes de nossas vidas.
Não tenho a menor idéia de se a amplitude e a intensidade de nossos sentimentos eram comparáveis (se é que é assim que se mede felicidade), mas pensei que fossem possivelmente de natureza muito distintas. Se escolho falar da educação e se começo este tópico do meu discurso vos narrando este acontecimento é porque considero que ela teria mudado a dimensão da expectativa e mesmo da natureza do dia mais feliz da vida de meu colega.
Vimos, nas últimas semanas, notícias assustadoras estampadas nas seções policiais dos principais jornais. Opto por me fixar em uma delas e vos apresentar uma série de acontecimentos lamentáveis e surpreendentes, no limite do crível, que correspondem a diferentes facetas de um mesmo triste evento. Terão que me perdoar pelos sentimentos de indignação que causarei aos senhores. Dois jovens amigos, um deles filho de uma famosa atriz de televisão, brincam, tarde da noite, andando de skate em um túnel temporariamente interditado em uma auto-estrada na cidade do Rio de Janeiro; um grupo de jovens, que faz no mesmo horário um pega de carros desrespeitando a sinalização e a própria interdição de tráfico naquele ponto, atropela um dos jovens, abandonando o local sem prestar socorro à vítima que vem a falecer; um grupo de policiais pára o carro seriamente avariado pelo atropelamento e exige uma propina para liberá-lo, mas, ao saber do acidente, aumenta o valor da propina solicitada; o pai do motorista do carro envolvido no crime se prepara para pagá-la, mas volta atrás; o capitão da Polícia Militar que julgava dias depois os policiais militares envolvidos na corrupção é autuado nove horas após, por furto e formação de quadrilha por ter sido preso com mais 10 pessoas roubando fios de uma operadora telefônica.

Penso que esta sucessão inimaginável de acontecimentos que, como dezenas de outros que ocorrem a cada dia em nosso entorno, pode ser tomada como exemplo, revela de forma caricatural a ausência de limites por parte dos diferentes protagonistas do episódio, a falta de respeito mais basal às regras de conduta e civilidade, o desprezo pela vida, e as deficiências graves na estrutura de uma Instituição que deveria ser o baluarte da disciplina, da ética e da moralidade.
Durante a campanha que realizei na fase que precedeu minha eleição, entregava nas visitas que fiz aos Senhores Acadêmicos, um artigo sobre a formação e utilização de imagens nos processos cognitivos. Durante sua redação, sentimos a necessidade de melhor formular as bases de uma idéia que batizaríamos de “a pré-história da imaginação”. Como transitávamos em uma área em que não éramos especialistas, acabamos estudando alguns aspectos da paleoantropologia.
Pois bem, quero evocar aqui algumas informações antes de vos apresentar uma conclusão que, para tornar curta uma longa história, foi uma muito grande surpresa para nós! Talvez o mais importante marcador exclusivo de nossa linhagem evolucionária seja a marcha bipedálica. Nenhuma outra característica isolada é tão marcante de nossa ancestralidade hominídea quanto o fato de nos deslocarmos em duas pernas. Tal característica do Homo sapiens está presente em nossos ancestrais mais antigos, como o Australopithecus afarensis (a Lucy) que tem de 3,2 a 3,7 milhões de anos de idade; o mais recentemente descoberto Ardipithecus ramidus (o Ardi), que recoloca nosso ancestral comum com os chimpanzés a 4,4 milhões de anos; e mesmo no Sahelanthropus tchadensis, que tem cerca de sete milhões de anos e sobre o qual há evidências de que, embora conservasse a capacidade de subir em árvores, tornou-se apto a caminhar por distâncias cada vez maiores.

Refiro-me agora a um outro aspecto da antropologia, na qual dizer que “o homem é o único animal inteiramente dependente de sua cultura” é um lugar comum. Aludo ao capítulo que se convencionou chamar de “as crianças selvagens” que, abandonadas, acabaram vivendo privadas do convívio com adultos da nossa espécie, às vezes com animais. Surpreendeu-me sobremaneira concluir que nem o caráter ou comportamento bipedal, para o qual desenvolvemos, por cerca de sete milhões de anos, uma estrutura óssea adequada, é instintivo o bastante para prescindir do componente educativo do convívio com adultos da espécie organizado em sociedade. As irmãs Amala e Kamala, perdidas em muito tenra idade na Índia do início do século passado e encontradas vivendo com cães selvagens, se deslocavam de quatro!

Os Senhores já sabem onde quero chegar: o homem precisa aprender até para ser humano, ao contrário das abelhas, ou dos lobos, que nascem sabendo praticamente o que tem que fazer, mas não farão mais do que isso. Podem até aprender pela observação, mas não ensinam o que aprendem. Só o homem transmite a cultura. Nada é, portanto, mais importante e vital para ele do que o que chamamos de sua educação. Assim, costumo dizer que “organizarmo-nos em sociedade é nosso maior atributo e também nosso maior requisito”. A educação transforma o animal Homo sapiens no homem, é a interface entre nossa animalidade e nossa humanidade,

Quando o visitei, o Acadêmico Pedro Sampaio perguntou-me: - “Você acha, como Rousseau, que o homem é bom e a Sociedade o corrompe ou, como Kant, que ele é mau ou rude e a Sociedade o detém?” Acho, Acadêmico Sampaio, que o homem é, em seu estado primitivo inicial, um animal que carece do contato com indivíduos adultos de sua espécie para desenvolver sua humanidade. Tanto Victor, o menino selvagem, na França, Kaspar Hauser, o da Alemanha, as meninas lobas Kamala e Amala, da Índia e até a mocinha encontrada recentemente em uma floresta na Tailândia, mesmo recolocados em um ambiente social e familiar revelaram-se incapazes de desenvolver pensamento abstrato e expressar sentimentos.
Então educar é começar cedo. Priorizemos de forma sem precedente o reforço às Escolas Municipais e o Ensino Básico no nosso País. Como cientista e Professor Orientador de cursos de Doutorado em uma Instituição de Pesquisa do porte da Fiocruz aprecio o Sistema Francês que trata da Educação em dois Ministérios: o da Educação, para os Ensinos Básico e Fundamental, e o do Ensino Superior e da Pesquisa para o Ensino Universitário e a Pesquisa.
É lugar comum a comparação que começou a ser feita entre Brasil e Coréia do Sul nos anos 60 em um estudo do Banco mundial. Para mim deixou de ser um chavão depois que estive lá, aliás, junto com o Acadêmico José Rodrigues Coura, e constatamos cidades limpas, ricas, com gente educada e vestida convenientemente, carros bonitos na rua e um shopping como não vi em nenhum outro lugar do mundo no aeroporto de Seul.
Um Coreano médio passa hoje mais tempo na Escola do que um Europeu. Colocada junto com Brasil e Gana no estudo dos anos 1960, a Coréia do Sul superou o Brasil, apontado na época como País do futuro, em vários indicadores incluindo a renda per capta e número de patentes. O Brasil liderava o grupo e tinha o dobro da renda per capta da Coréia (US$ 350 nossos versus US$ 170 deles). Hoje os números se inverteram e a deles é três vezes a nossa (US$ 24.000 deles vs. menos de US$ 7.000 nossos).
As razões são simples: um brutal investimento em educação. O que nem todos sabem é que na Coréia há cinco universidades nacionais de educação que formam professores para o ensino fundamental. Elas têm um vestibular extremamente disputado e recrutam seus estudantes entre os 5% melhores... do secundário. Esses vão ser professores no ensino fundamental. O número de vagas abertas nelas corresponde ao planejamento para o número de professores necessários para quatro ou cinco anos depois, por isso quem consegue entrar nessas universidades tem emprego praticamente assegurado e também a garantia de bom salário. O ordenado inicial de professores de ensino fundamental lá é, em média, maior do que os salários iniciais de outras profissões graduadas. Não parece muito com a nossa realidade..."

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Publicação aqui no blog foi sugerida por Mauricio Martins Rodrigues, Professor Associado e Livre Docente da UNIFESP.

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2 comentários:

  1. Bom dia...sou neto de professora (cidade pequena, poucos recursos) e filho de professora (ensino fundamental), vou comentar o último parágrafo do discurso (muito bom em sua totalidade)...investimento em educação...minha conclusão, depois vivenciar o quanto um professor aqui em Minas Gerais é massacrado...mesmo que se eleja um professor governador e mesmo que ele nomeie um professor secretário de educação...todo ano, dão a impressão de que eles trabalham para sufocar a classe da qual vieram...contraditório...acho que é por isso que a mendicância na educação continua, com as greves ocorrendo todos os anos...busque em seu circulo familiar se há um professor do ensino fundamental de escola pública...está sobrando dinheiro para pagar as contas? Parabéns... Ainda bem que a minha mãe tem os filhos para dar uma "mãozinha"...como diria o professor Raimundo (personagem de Chico Anísio) o salário...oh!! Abs, Álvaro...

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  2. Concordo plenamente com o texto, somente com educação que conseguimos ser verdadeiramente livres. Aliás a racionalidade não é muito promovida nas escolas, onde o sistema entrega exercícios quase prontos e torna a ciencia chata
    Uma criança tem perfeitas condições de entender os metodos básicos da ciências, só que para isso precisa de um professor com método de socrates

    Obrigado pelo texto !

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