Aqui vai a estória de como eu conheci Metchnikoff e o que eu aprendi com ele.
Quando terminei meu postdoc em 92, consegui um emprego na industria farmaceutica, naquela epoca jorrando dinheiro por tudo quanto era de lado. Consegui um emprego na Bristol-Myers Squibb, em Princeton, no departamento de biologia molecular, que era dirigido por Mariano Barbacid. A BMS tinha resolvido que ia dar um salto de qualidade e deu carta branca pra Mariano estabelecer um departamento onde pudesse implementar os métodos mais avancados, tecnologias de ponta. Mariano era um biólogo molecular que tinha co-descoberto Ras e avançado o conceito de oncogens. A BMS, como de resto toda farma, estava em transe com o projeto genoma, e queria se preparar para colher os frutos desse projeto. Deram 100 pessoas a Mariano e disseram: manda brasa. Ele contratou dois outros investigadores: Joe Bolen, que trabalhava com kinases do sistema imune (lck, fyn, syk, etc) e Rodrigo Bravo, que foi um dos pioneiros na identificacao de immediate early genes e que na epoca trabalhava com NF-kB. Mariano precisava de uma pessoa pra fazer bicho. Fui, entrevistei e consegui a posição que consistia num pequeno laboratorio, um técnico e um postdoc.
Entre uma coisa e outra, tive uma conversa com Rodrigo, que me falou sobre gens que tinha descoberto depois de estimulação de células em cultura com soro, ou PDGF. Ele tinha clonado dois deles N51 e JE. Chuck Stiles em Harvard também, e chamava N51 de KC (hoje em dia conhecido como CXCL1). Esses gens codificavam pequenas proteínas que eram secretadas e que tinham propriedades quimiotáticas in vitro. Pareciam pertencer a uma família de proteínas que incluia IL-8 (hoje CXCL8), e que estava sendo chamada na época de intercrinas, e logo a seguir, quimiocinas.
Eu sempre detestei imunologia. Imunologia e embriologia. Sempre. Na escola de medicina fui péssimo aluno. No doutorado tive aula com Dick Dutton e jurei que nunca na vida ia trabalhar com aquilo. Eu era um endocrinologista, queria casar fisiologia com biologia molecular. Só que ali, na minha frente estava um negócio interessante. E dizia que atraia leucócito. E leucócito tinha a ver com inflamação. E inflamação era o troço que tinha em muita doenca. E eu trabalhava na indústria farmaceutica. E sabia que um dia a mamata ia acabar.
Como acabou. Acabou chorare.
Então, resolvi que ia fazer um bicho expressando aquelas moléculas. Fazer um bicho era melhor que injetar proteína, a agulhada por si só já causava inflamação, e as proteínas ainda tinham muitas impurezas...Pensei: se essas moléculas tiverem a capacidade de regular a migração de leucócitos in vivo elas serão importantíssimas em inflamação. E se funcionarem como tal, talvez tenha em mãos um modelo experimental no qual possa testar drogas.
Bom, o resultado saiu melhor que a encomenda. Fiz dois bichos expressando N51/KC. O primeiro no timo, o segundo na pele. Porque nesses tecidos? Porque pensei que se expressasse no coração, ou no fígado, o bicho ia morrer. Neutrófilo tinha uma fama terrivel, recrutou matou. Bicho sem timo vivia perfeitamente bem.
Levei os primeiros cortes de timo dos transgenicos pro microscópio e vi, em fila indiana nos vasos, e distribuidos no parenquima do cortex, neutrófilos, células as quais me afeiçoei como pai se afeiçoa ao filho que acaba de nascer. Aquele foi um momento muito importante para mim. Aprendi várias coisas. Primeiro que a molécula tinha a capacidade de atrair para aquele órgão, e só para aquele órgão, um grupo específico de células alvo. Segundo, que as células cruzavam a vasculatura, e migravam para a área onde N51/KC estava sendo produzida. Terceiro, que a expressao da quimiocina e a presenca dos neutrofilos não causava necessariamente a destruição do tecido alvo. Em suma, os resultados demonstravam que aquela quimiocina podia coordenar um complexo sistema de recruitamento celular, num bicho vivo, e sugeriam que outras quimiocinas pudessem ter atividades semelhantes. Era a imunologia das quimiocinas dando seus primeiros passos.
E aí entra Metchnikoff na estória...Um dia olhando laminas de timo de animais transgenicos mais velhos descobri a presenca de umas células grandes com citoplasma eosinofílico. Fizemos EM e vi com espanto umas células com inclusoes citoplasmáticas muito interessantes. Como se tivessem engulido agulhas. Dei uma olhada rapida na literatura e descobri que esse tipo de inclusao era frequente em macrófagos de pacientes com eosinofilia. Pensei, essas células sao macrófagos que estão engolfando os neutrófilos....Os neutrófilos não estao ativados, chegam no tecido, morrem, e antes de morrer os macrófagos lhes fagocitam para evitar a liberacao de varias proteases que os neutrofilos carregam. Pensei que tinha descoberto um troço novo, ja imaginava outro paper, etc.
Por essa época, conversando com um colega sobre esses resultados, ele me perguntou se eu já tinha lido algo do velho russo. Disse que não, que nunca tinha lido nada...Ele me emprestou um livrinho (que nunca devolvi) sobre as palestras que Metchnikoff fez no Pasteur em 1891. Uma coisa histórica, comeco da imunologia...... Comeci folheando, e de repente, pumba, tava lá, uma figurinha de um fagócito comendo um fagócito. Isso mesmo, aquela interacao de macrófago c om neutrófilo que pensei que tinha descoberto, ja tinha sido descoberto pelo velho Metchnikoff, 100 anos atrás...Cem anos atrás. Ali descobri o que muitos de nós já descobrimos: que não somos donos dos fatos, que não somos donos da biologia. Mas, curiosamente, isso não diminuiu o que senti, pelo contrário, me deu vontade de aprender mais sobre Metchnikoff, de aprender mais nos livros, e de aprender mais, descobrir mais, nos bichos. E me fez pensar que em ciencia, muito pouco é seu de origem. Seu mesmo só a descoberta que voce faz. E mais, que essa tal descoberta muito provavelmente foi feita tambem por outras pessoas, algumas vendo a conexão e outras não.
Para descobrir a gente sofre e erra, mas quando acerta, quando vê, é paraíso. É inebriante. As vezes penso que nós cientistas estamos perpetuamente caminhando por um corredor infinito onde quase todas as janelas estão fechadas. As vezes uma janela esta aberta, mas a gente não ve porque está olhando pro outro lado, pros nossos botões, pros nossos pés, pra frente. Mas quando está aberta e a gente vê lá fora, é outro mundo. É essa coisa aí de cima, a descoberta.
Fotografei as laminas do timo, juntei com resultados que tinha com expressão de CXCL1 na pele, descrevi o macrófago fagocitando os neutrofilos, dei credito a quem crédito era devido, e submeti pro Cell. Um revisor gostou, outro não (o que não gostou foi uma vaca sagrada da imunologia. Como sei? Isso foi antes de submissão pela web, e a correspondencia dele veio por engano no pacote. Um dia ainda escrevo sobre essa a experiencia de escutar um “quem voce acha que voce é, para vir apitar no meu terreiro?”). Segui então o conselho que eu mesmo dei no meu post “os infortunios”, publicado aqui no blog. Tomei um uisque e mandei o paper pra outra revista, que o publicou em dezembros de 94. Aqui. Tenho muito carinho por esse paper, ele foi minha entrada na imunologia. Lembro que quando saiu um colega me me disse que a estória era interessante, mas que eu tinha escolhido a célula errada, neutrófilo não valia nada...Hoje dá vontade de rir...
E aqui uma consideração final. Apesar do corredor ser longo, e de muitos fatores conspirarem contra, as janelas existem. A vida nos dá o grande privilegio de descobrir. E de ao descobrir, compartilhar. Mas o compartilhar as vezes complica um pouco, porque inevitavelmente compartilhar envolve publicar, documentar o que voce achou. Ora, isso não seria um problema se o foco na publicação dos achados não fosse tão excessivo como é. E se não existisse um foco exagerado "onde" publicar “as estórias”.
Então vou dizer, correndo o risco de levar paulada, que gol da gente não deve ser paper na Nature ou Cell. Paper lá é bom, muito bom, ajuda no emprego, ajuda na promoção. É bom publicar lá, e a gente deve tentar sim. Mas digo que isso não deve ser o gol na vida. Primeiro que a gente não controla se sai lá ou não... a gente não controla a “onda du jour”; poucas pessoas conseguem publicar nestas revistas com frequencia. Segundo, que muita ciencia boa se publica em outras revistas, e que o seu achado não deixará de ser bom se não for publicado lá. Finalmente, que independente de onde se publique, o mundo esquece; rapidinho. Faça voce mesmo um teste.
Portanto, o gol não deve ser publicar em revista xis. Eu diria, até mais radicalmente, que o gol não deve ser publicar.
O gol deve ser descobrir.
E não importa se alguém descobriu o mesmo há cem anos atrás...
Muito bom Professor Sérgio. Fantástico!!!
ResponderExcluirJoao
O post é longo mas, ao mesmo tempo, impossível parar de ler. Essa combinação de ciência com autobiografia é sucesso! Professor Sergio Lira, um scientist-writer-extraordinaire.
ResponderExcluirProf. Lira, esse post é muito importante para nós estudantes. Eu penso que o grande barato além de fazer o gol é planejar a jogada e ver ela funcionar. Agradeço pelos ensinamentos e pela injeção de animo que esse post carrega.
ResponderExcluirProfessor Sérgio, foi uma aula fantástica...de onde veio essa não tem mais? Abs, Álvaro.
ResponderExcluirE as carnes assadas? Não tem mais receitas para compartilhar?
Como sempre o post muito bom, assim como o infortúnio e os outros.
ResponderExcluirConcordo plenamente que o valor da descoberta é o mais importante e que todo o resultado precisa ser compartilhado de alguma forma.
O júlio falou em "ânimo" eu digo que esse post é uma injeção arretada de ânimo para nós estudantes.
Joao, Anonimo, Julio, Alvaro, GK, muito obrigado pelos comentarios!
ResponderExcluirAlvaro,estou pesquisando, te mando uns links depois
PS. Esse negocio de "professor" me deixa mais velho que Metchnikoff. Por favor usem meu primeiro nome...
Abracos e ate a proxima!
Mais um excelente post do mítico prof Sérgio!
ResponderExcluirRemo, tirar sarro nao pode....abracos
ResponderExcluirSérgio, vou aguardar...Abraços
ResponderExcluirGente, que delícia de post...Queria mais.....
ResponderExcluirSaudades de vc e Glau Glau.....
Bjao
Karina