Comentário sobre o artigo: Structural and functional features of central nervous system lymphatic vessels. Louveau A, Smirnov I, Keyes TJ, et al. Nature Lett. 2015.
Texto adaptado para o português a
partir do site Brain
Immune
Por muito tempo se pensou que o sistema imune não
poderia se comunicar com o sistema nervoso central (SNC), exceto em condições
patológicas, elevando o encéfalo e a medula espinal a órgãos
“imunoprivilegiados”. Esse conceito surgiu a partir de duas de suas características
morfológicas mais marcantes: 1) Medula e encéfalo são cobertos pela barreira
hemato-encefálica (BHE), a qual impede a passagem de grande moléculas (tais
como anticorpos) e células; e 2) a ausência de um sistema linfático no SNC.
A existência de líquido dentro do SNC inicialmente
foi observada com ceticismo pelos primeiros anatomistas. Apesar de relatos
sobre a existência de fluidos nos ventrículos cerebrais serem defendidos por
grandes anatomistas, tais como Vesalius, Glisson, Haller, Vidus-Vidius, Valsava
e Varolius nos séculos XVII e XVIII, foi somente em 1770 quando Cotugno [1] demonstrou
pela primeira vez a existência de líquido (e não vapor) nos ventrículos
cerebrais de animais vivos. Mais tarde, em 1825, François Magendie, em três
memoráveis artigos publicados no Journal
de Physiologie Expérimentale et Pathologique, confirmou a existência de uma
conexão entre o espaço subaracnóide e os ventrículos cerebrais, cunhando o
termo “fluido cerebro-espinal” (FCE) [2]
Nos anos seguintes, Key e Retzius (1876) [3]
elegantemente mostraram que o FCE é absorvido essencialmente por meio de
granulações aracnóides (então chamadas de granulações Pacchionianas), drenando
para dentro dos seios venosos (Figura 1). Curiosamente os autores também
demonstraram a existência de um sistema de drenagem acessória do FCE, mais
lento e menos importante que a aracnóide. De fato, no final do século XIX e
começo do XX, muitos estudos corroboraram essas descobertas. O FCE é absorvido pelo
sistema venoso por meio das granulações aracnóides, mas também por meio de um
sistema de drenagem acessório, muito mais lento, localizada abaixo da placa
cribróide. E ambos sistemas drenavam para os linfonodos cervicais profundos
[4-7].
Figure
1. Formação das granulações aracnóides. Protrusões originadas na cavidade
subaracnóide contendo FCE drenam para o seio sagital superior (parte do seio
dural ou meníngeo), drenando finalmente para a circulação sistêmica.
Porém, algo não se encaixava. Como o FCE poderia
fluir para os linfonodos cervicais se o encéfalo não possuía vasos linfáticos? Estudos
anatômicos mostraram que a membrana aracnóide poderia avançar por uma distância
além da pia máter, formando um prolongamento denominado cul-de-sac, comumente encontrada em volta dos nervos craniais e
espinais. Esse prolongamento poderia ser claramente observado após a injeção de
corantes ou ar no espaço subaracnóide [1,3,7]. De especial atenção, quando os
corantes eram injetados no espaço subaracnóide, o espaço perineural do primeiro
par craniano, o olfatório, apresentava grandes depósitos, logo acima da placa
cribróide, inclusive marcando a membrana da mucosa nasal. Análises
microscópicas mostraram que os grânulos dos corantes poderiam ser encontrados
abaixo da camada epitelial da mucosa nasal, aderindas firmemente em fibras
contínuas formadas por células endoteliais sem qualquer tecido conectivo: isso
é, possíveis canais linfáticos [7]. A partir dessas observações o FCE poderia
então alcançar o cul-de-sac da lâmina
cribróide para ser absorvido pelos canais linfáticos locais. Estudos
posteriores com humanos e animais não humanos mostraram mais detalhadamente a
passagem do FCE pela lâmina cribróide em rota para os linfonodos cervicais
[8-11] (Figura 2).
Figure
2. Localização do Sistema linfático nasal e suas conexões.
Antígenos injetados nos ventrículos cerebrais podem
ser detectados nos linfonodos cervicais [12,13], inclusive levando à formação de
anticorpos específicos [14]. Esse mesmo padrão migratório também foi observado
após a injeção de células dendríticas (CD) ou macrófagos derivados da medula
óssea ou de células T nos ventrículos cerebrais, mas não no parênquima cerebral
[15-17]. Porém, nem todas as células injetadas nos ventrículos seguiam para os
vasos linfáticos nasais. Outros estudos mostraram a presença de moléculas de
adesão no epitélio do plexo coróide e a migração de CDs ao longo das camadas
ependimárias do cérebro [16,18,19]. Além disso, a via nasal acessória responde
por somente uma ínfima parcela da absorção do FCE [7,20].
Em um novo e elegante estudo, Louveau e
colaboradores descreveram a localização dos vasos linfáticos ao longo dos seios
durais (venosos), fornecendo uma nova via pela qual o FCE poderia sair do
parênquima encefálico para os linfonodos cervicais.
Em destaque, o trabalho de Louveau e colaboradores
mostraram a posição exata dos canais linfáticos cerebrais (para a satisfação
dos neuroanatomistas): os canais linfáticos convergiam em grandes vasos localizados
de cada lado dos seios durais (sagital e transverso) (Figura 3) que,
acompanhando as veias jugulares, drenavam para os linfonodos cervicais
profundos. Além disso, esses vasos linfáticos durais carregam células imunes
(para a satisfação dos imunologistas): ~24% de todas as células T e ~12% de
todas as células MHCII+ drenadas pelo seio dural poderiam ser observadas nos
vasos linfáticos durais, incluindo células CD11+ (CDs) e B220+ (linfócitos B).
Porém ainda temos uma importante questão a
responder: qual via linfática (a dural ou a nasal) é essencial para a resposta
imune? Após a injeção do corante Evans-blue (um corante que não atravessa a
BHE) no ventrículo cerebral, uma coloração azulada pode ser observada
inicialmente nos vasos linfáticos meningeais (durais) dentro de 30 minutos.
Posteriormente uma coloração azul pode ser observada progressivamente nos
linfonodos cervicais. Porém esse efeito não foi observado após a injeção de
Evans-blue na mucosa nasal. Esses dados concluem que os vasos linfáticos
meningeiais, e não os linfáticos nasais, servem de rota primária para a
drenagem do FCE para os linfonodos cervicais.
Figure
3. Representação esquemática da conexão entre o sistema glimfático,
responsável pela absorção dos fluidos intersticiais do parênquima cerebral para
os FCE, e o recém-descoberto sistema linfático meningeal.
Os estudos de Louveau e colaboradores provocam uma alteração de um
paradigma há muito cimentado na imunologia e neuroanatomia, e também sobre
nossa percepção relacionada à interação neuro-imune. Os resultados concluem que
o encéfalo se conecta com o sistema imune como qualquer outro órgão do corpo, alterando
grandemente um dos maiores dogmas da imunologia.
De destaque, essa mudança de paradigmas possui
implicações clínicas importantes para doenças inflamatórias que acometem o
sistema nervoso central, tais como esclerose múltipla, Alzheimer, autismo e
muitas, muitas outras.
Referências:
[1] Cotugno D. De ischiade nervosa. Vienna, 1770
[2] Magendie F. Recherches sur le Liquide Céphalo-rachidien. Paris.
1825.
[3] Key G, Retzius A. Anatomie des Nervensystems und des Bindesgewebe.
Stockholm, 1876.
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Post de Gabriel Bassi (FMRP-USP - IBA).
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