domingo, 2 de agosto de 2015

A Descoberta do Sistema Linfático Encefálico


 Comentário sobre o artigo: Structural and functional features of central nervous system lymphatic vessels. Louveau A, Smirnov I, Keyes TJ, et al. Nature Lett. 2015.

Texto adaptado para o português a partir do site Brain Immune

Por muito tempo se pensou que o sistema imune não poderia se comunicar com o sistema nervoso central (SNC), exceto em condições patológicas, elevando o encéfalo e a medula espinal a órgãos “imunoprivilegiados”. Esse conceito surgiu a partir de duas de suas características morfológicas mais marcantes: 1) Medula e encéfalo são cobertos pela barreira hemato-encefálica (BHE), a qual impede a passagem de grande moléculas (tais como anticorpos) e células; e 2) a ausência de um sistema linfático no SNC.
A existência de líquido dentro do SNC inicialmente foi observada com ceticismo pelos primeiros anatomistas. Apesar de relatos sobre a existência de fluidos nos ventrículos cerebrais serem defendidos por grandes anatomistas, tais como Vesalius, Glisson, Haller, Vidus-Vidius, Valsava e Varolius nos séculos XVII e XVIII, foi somente em 1770 quando Cotugno [1] demonstrou pela primeira vez a existência de líquido (e não vapor) nos ventrículos cerebrais de animais vivos. Mais tarde, em 1825, François Magendie, em três memoráveis artigos publicados no Journal de Physiologie Expérimentale et Pathologique, confirmou a existência de uma conexão entre o espaço subaracnóide e os ventrículos cerebrais, cunhando o termo “fluido cerebro-espinal” (FCE) [2]
Nos anos seguintes, Key e Retzius (1876) [3] elegantemente mostraram que o FCE é absorvido essencialmente por meio de granulações aracnóides (então chamadas de granulações Pacchionianas), drenando para dentro dos seios venosos (Figura 1). Curiosamente os autores também demonstraram a existência de um sistema de drenagem acessória do FCE, mais lento e menos importante que a aracnóide. De fato, no final do século XIX e começo do XX, muitos estudos corroboraram essas descobertas. O FCE é absorvido pelo sistema venoso por meio das granulações aracnóides, mas também por meio de um sistema de drenagem acessório, muito mais lento, localizada abaixo da placa cribróide. E ambos sistemas drenavam para os linfonodos cervicais profundos [4-7].


Figure 1. Formação das granulações aracnóides. Protrusões originadas na cavidade subaracnóide contendo FCE drenam para o seio sagital superior (parte do seio dural ou meníngeo), drenando finalmente para a circulação sistêmica.

Porém, algo não se encaixava. Como o FCE poderia fluir para os linfonodos cervicais se o encéfalo não possuía vasos linfáticos? Estudos anatômicos mostraram que a membrana aracnóide poderia avançar por uma distância além da pia máter, formando um prolongamento denominado cul-de-sac, comumente encontrada em volta dos nervos craniais e espinais. Esse prolongamento poderia ser claramente observado após a injeção de corantes ou ar no espaço subaracnóide [1,3,7]. De especial atenção, quando os corantes eram injetados no espaço subaracnóide, o espaço perineural do primeiro par craniano, o olfatório, apresentava grandes depósitos, logo acima da placa cribróide, inclusive marcando a membrana da mucosa nasal. Análises microscópicas mostraram que os grânulos dos corantes poderiam ser encontrados abaixo da camada epitelial da mucosa nasal, aderindas firmemente em fibras contínuas formadas por células endoteliais sem qualquer tecido conectivo: isso é, possíveis canais linfáticos [7]. A partir dessas observações o FCE poderia então alcançar o cul-de-sac da lâmina cribróide para ser absorvido pelos canais linfáticos locais. Estudos posteriores com humanos e animais não humanos mostraram mais detalhadamente a passagem do FCE pela lâmina cribróide em rota para os linfonodos cervicais [8-11] (Figura 2).


Figure 2. Localização do Sistema linfático nasal e suas conexões.

Antígenos injetados nos ventrículos cerebrais podem ser detectados nos linfonodos cervicais [12,13], inclusive levando à formação de anticorpos específicos [14]. Esse mesmo padrão migratório também foi observado após a injeção de células dendríticas (CD) ou macrófagos derivados da medula óssea ou de células T nos ventrículos cerebrais, mas não no parênquima cerebral [15-17]. Porém, nem todas as células injetadas nos ventrículos seguiam para os vasos linfáticos nasais. Outros estudos mostraram a presença de moléculas de adesão no epitélio do plexo coróide e a migração de CDs ao longo das camadas ependimárias do cérebro [16,18,19]. Além disso, a via nasal acessória responde por somente uma ínfima parcela da absorção do FCE [7,20].
Em um novo e elegante estudo, Louveau e colaboradores descreveram a localização dos vasos linfáticos ao longo dos seios durais (venosos), fornecendo uma nova via pela qual o FCE poderia sair do parênquima encefálico para os linfonodos cervicais.
Em destaque, o trabalho de Louveau e colaboradores mostraram a posição exata dos canais linfáticos cerebrais (para a satisfação dos neuroanatomistas): os canais linfáticos convergiam em grandes vasos localizados de cada lado dos seios durais (sagital e transverso) (Figura 3) que, acompanhando as veias jugulares, drenavam para os linfonodos cervicais profundos. Além disso, esses vasos linfáticos durais carregam células imunes (para a satisfação dos imunologistas): ~24% de todas as células T e ~12% de todas as células MHCII+ drenadas pelo seio dural poderiam ser observadas nos vasos linfáticos durais, incluindo células CD11+ (CDs) e B220+ (linfócitos B).
Porém ainda temos uma importante questão a responder: qual via linfática (a dural ou a nasal) é essencial para a resposta imune? Após a injeção do corante Evans-blue (um corante que não atravessa a BHE) no ventrículo cerebral, uma coloração azulada pode ser observada inicialmente nos vasos linfáticos meningeais (durais) dentro de 30 minutos. Posteriormente uma coloração azul pode ser observada progressivamente nos linfonodos cervicais. Porém esse efeito não foi observado após a injeção de Evans-blue na mucosa nasal. Esses dados concluem que os vasos linfáticos meningeiais, e não os linfáticos nasais, servem de rota primária para a drenagem do FCE para os linfonodos cervicais.


Figure 3. Representação esquemática da conexão entre o sistema glimfático, responsável pela absorção dos fluidos intersticiais do parênquima cerebral para os FCE, e o recém-descoberto sistema linfático meningeal.

Os estudos de Louveau e colaboradores provocam uma alteração de um paradigma há muito cimentado na imunologia e neuroanatomia, e também sobre nossa percepção relacionada à interação neuro-imune. Os resultados concluem que o encéfalo se conecta com o sistema imune como qualquer outro órgão do corpo, alterando grandemente um dos maiores dogmas da imunologia.
De destaque, essa mudança de paradigmas possui implicações clínicas importantes para doenças inflamatórias que acometem o sistema nervoso central, tais como esclerose múltipla, Alzheimer, autismo e muitas, muitas outras.

Referências:
[1] Cotugno D. De ischiade nervosa. Vienna, 1770
[2] Magendie F. Recherches sur le Liquide Céphalo-rachidien. Paris. 1825.
[3] Key G, Retzius A. Anatomie des Nervensystems und des Bindesgewebe. Stockholm, 1876.
[4] Hill L. Physiology and pathology of the cerebral circulation. London, 1896.
[5] Lewandowsky M. Zur Lehre von der Cerebrospinalflußigkeit. Zeitchr f Klin Medizin. 40: 480, 1900
 [6] Reiner M, Schnitzler J. Ueber die Abflußwege des Liquor Cerebrospinalis. Centralbl f Physiol. 8: 684, 1894.
[7] Weed  LH. The absorption of cerebrospinal fluid into the venous system. J Med Res. 31(3): 191-221.
[8] Johanson CE, Duncan JA, Klinge PM, et al. Multiplicity of cerebrospinal fluid functions: new challenges in health and disease. Cerebrospinal Fluid Res. 5:10, 2008.
[9] Johnston M, Zakharov A, Papaiconomou C, et al. Evidence of connections between cerebrospinal fluid and nasal lymphatic vessels in humans, non-human primates and other mammalian species. Cerebrospinal Fluid Res. 1(2): 1-13, 2006.
[10] Kida S, Pantazis A, Weller RO. CSF drains directly from the subarachnoid space into nasal lymphatics in the rat. Anatomy, histology and immunological significance. Neuropathol Appl Neurobiol. 19: 480-488, 1993.
[11] Weller RO, Djuanda E, Yow HY, Carare RO. Lymphatic drainage of the brain and the pathophysiology of neurological disease. Acta Neuropathol. 117: 1-14, 2009.
[12] Sventistvanyi I, Patlak CS, Ellis RA, Cserr HF. Drainage of interstitial fluid from different regions of rat brain. Am J Physiol. 246: 835-844, 1984.
[13] Wenkel H, Streilein JW, Young MJ. Systemic immune deviation in the brain that does not depend on the integrity of the blood-brain barrier. J Immunol. 164: 5125-5131, 2000.
[14] Csser HF, Knopf PM. Cervical lymphatics, the blood-brain barrier and the immunoreactivity of the brain: a new view. Immunol Today. 13(12): 507-512, 1992.
[15] Goldman J, Kwidzinski E, Brandt C, et al. T cells traffic from brain to cervical lymph nodes via the cribroid plate and the nasal mucosa. J Leuk Biol. 80: 797-801, 2005.
[16] Hatterer E, Davoust N, Didier-Bazes M, et al. How to drain without lymphatics? Dendritic cells migrate from the cerebrospinal fluid to the B-cell follicles of cervical lymph nodes. Blood. 107: 806-812, 2006.
[17] Kaminski M, Bechmann I, Pohland M, et al. Migration of monocytes after intracerebral injection at entorhinal cortex lesion site. J Leuk Biol. 92: 31-39, 2012
[19] Steffen BJ, Breier G, Butcher EC, et al. ICAM-1, VCAM-1, and MAdCAM-1 are expressed on choroid plexus epithelium but not endothelium and mediate binding of lymphocytes in vitro. Am J Pathol. 148: 1819-1838, 1996
[18] Engelhardt B, Wolburg-Buchholz K, Wolburg H. Involvement of the choroid plexus in central nervous system inflammation. Microsc Res tech. 52: 112-129, 2001.
[20] Weller RO, Kida S, Zhang ET. Pathways of fluid drainage from the brain – morphological aspects and immunological significance in rat and man. Brain Pathol. 2: 277-284, 1992.

Post de Gabriel Bassi (FMRP-USP - IBA).



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