Como prever o imprevisível? Re-conhecer o des-conhecido? Como antecipar quais materiais estranhos (antígenos) invadirão o corpo? Como surgem os processos imunológicos de defesa na ontogênese e qual sua origem na filogênese? Estas são perguntas básicas na imunologia. A atividade imunológica é entendida como um processo antecipatório. A solução aceita hoje em dia é dita “seletiva”. Todo processo “seletivo” implica duas etapas: na primeira, é gerada, ao acaso, uma grande coleção de variantes, pela impossibilidade de antecipar quais serão necessários; na segunda etapa, estes variantes competem entre si para a seleção do mais apto a desempenhar uma dada tarefa, ou função. A geração dos variantes precisa ocorrer ao acaso, caso contrário, o processo será devido a outro mecanismo que não a seleção por competição. Uma alternativa radical para abandonar com as ideias de acaso e competição na geração de processos biológicos, e com isto, descartar os processos seletivos, é explicá-los como processos epigenéticos. Aqui é importante: não confundir epigênese com “epigenômica” que se transformou em um estudo de influências genômicas não dependentes diretamente da sequência de nucleotídeos no DNA (Ivanov et al., 2012; Sandolval & Esteller, 2012)
A epigênese é não antecipatória. Nela, tudo de passa momento-a-momento; o presente não contém o futuro, assim como o passado não continha o presente. Seria, por caso, lícito afirmar que toda a sua vida pregressa se deu para que você, leitor, pudesse agora ler este texto? Certamente, não. Para afirmar tal coisa, precisaria adotar minha posição privilegiada no presente para reordenar o passado, de maneira que ele conduza até este momento. Mas, poderíamos igualmente supor muitas outras sequências de acontecimentos
Para abandonar com as ideias de acaso e competição na geração da atividade imunológica, precisamos deixar de vê-la como antecipatória, passar a vê-la como um processo epigenético, como parte da construção e manutenção do organismo, que é um processo epigenético mais amplo. Em outras palavras, o que vemos como um mecanismo de defesa, podemos optar por ver como resultado de processos de construção e manutenção do organismo. Ao invocarmos mecanismos “de defesa” estamos confundindo mecanismos especialmente devotados à defesa do corpo, com resultados de processos mais gerais de construção e manutenção do organismo.
A fagocitose, por exemplo, considerada um mecanismo essencial na defesa imunológica, parte da chamada “imunidade inata”, na realidade é um processo essencial de construção e manutenção do organismo, sem o qual, por exemplo, o desenvolvimento embrionário não seria possível. A fagocitose de células apoptóticas no organismo adulto é outro exemplo importante, um processo que é tão eficiente que são raras as imagens de células apoptóticas em tecidos normais. Além de “defender” o corpo, a fagocitose é essencial à construção e manutenção do organismo (Franc et al., 1999).
Não podemos ainda dizer o mesmo em relação a linfócitos, apontar com precisão como os linfócitos estão envolvidos na construção e manutenção do organismo. Animais manipulados em seu genoma para impedir a diferenciação de linfócitos (animais Rag-/-, por exemplo), podem viver vidas aparentemente normais, e se reproduzir, desde que mantidos em ambientes SPF (specific pathogen free). Há evidências de que estes animais não são exatamente “normais”, mas a ideia de que eles precisam ser mantidos longe de “patógenos específicos” (como a Samonella typhimurium ou o vírus da ectromelia), é uma forte sugestão de que a atividade imunológica existe para defender o corpo contra infecções. Mas, que animais sem linfócitos não sobrevivam em ambientes convencionais é, na verdade, curioso porque, em ambientes SPF, estes animais convivem com um “microbioma comensal” que contém uma imensa variedade de micróbios, ditos “não-patogênicos”. Seriam os linfócitos elos de conexão entre a “imunidade inata” e a “defesa” contra “patógenos específicos”? Os processos da “imunidade inata” parecem bastar para a sobrevivência de animais sem linfócitos em ambientes SPF. É curioso, portanto, pensar sobre o que caracteriza as relações com os “patógenos específicos” e por que os linfócitos são elementos essenciais na defesa contra os mesmos.
Uma analogia grosseira. Automóveis sem direção assistida (hidráulica, elétrica), que são a maioria, funcionam adequadamente. Mas quando a direção assistida de um automóvel enguiça, ele não pode mais ser usado. A dita “imunidade inata” é adequada para a sobrevivienica da maioria dos animais (os que chamamos de invertebrados); mas se a “imunidade adquirida” (combinatória) enguiça em um vertebrado, ele sucumbe a infecções a que antes resistia. Se a direção assistida faz parte do bauplan de construção do organismo, ela se torna essencial enão pode falhar.
Mas, para voltar às colocações iniciais, como abandonar as ideias de acaso e competição em favor de entender a atividade imunológica como um processo epigenético? Um argumento importante contra uma origem aleatória é apontar regularidades e padrões na atividade imunológica, buscar a definição de mecanismos conservadores na geração e ativação de linfócitos. Dito em outras palavras, buscar evidências de que se trata de um processo histórico-sistêmico, epigenético, no qual cada instante torna possível e conduz ao instante seguinte. Surge nesta visão um grande vulto de contornos ainda imprecisos que é o próprio organismo onde a atividade imunológica se realiza, não mais simplesmente como “o espaço” onde esta atividade se realiza, mas sim como o entrelaçamento de muitas outras atividades conservadoras que são parte da construção e manutenção do organismo (Vaz et al., 2011).
Como elemento essencial deste processo histórico-sistêmico estão as conexões entre os próprios linfócitos, apontadas no esforço pioneiro de Niels Jerne em sua teria da Rede Idiotípica (Jerne, 1974), mas estão também outras providências para definir uma organização, isto é, o conjunto de relações invariantes entre os componentes que conferem ao sistema sua identidade de classe (Vaz & Varela, 1978; Maturana, 2002). Outra providência indispensável, ainda mais radical, é o reconhecimento da participação do imunologista como um observador que opera na linguagem humana na definição dos fenômenos imunológicos . A especificidade das observações imunológicas depende mais do que fazem os imunologistas do que daquilo que fazem os linfócitos (Vaz & Carvalho, 2009; Vaz, 2011a, b, c; Vaz et al., 2011). Na realidade, isto estava implícito no que Jerne afirmava em sua primeira teoria (Jerne, 1955) - talvez a melhor teoria imunológica até o presente - na qual ele propunha que a atividade imunológica: (a) é espontânea (“natural”); e, (b) envolve sempre uma enorme multiplicidade de elementos (anticorpos & linfócitos). A imunologia atual já se rendeu às evidências contrárias à especificidade linfocitária, em um sentido estrito (Eisen, 2001; Wuchpfernnig et al., 2007), mas ainda está longe se atribuir importância a processos conservadores que organizam a multiplicidade de interações entre linfócitos e imunoglobulinas. E ainda mais longe de admitir a participação do imunologista na especificação do que se passa.
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