2011-NOV-02-Sobre a imunidade inata
Gregory Bateson, In Metálogo: O que é um instinto?
Filha: Papai, um princípio explicativo é a mesma coisa que uma hipótese?
Pai: É quase isso, mas não extamente. Sabe, uma hipótese tenta explicar algo em particular, mas um princípio explicativo - como “gravidade”, ou “instinto” - na realidade não explica nada. É um tipo de acordo convencionado entre os cientistas para interromper as tentativas de explicar as coisas em um certo ponto.” (Bateson, 1973)[1]
A separação entre o estudo da imunologia e o da inflamação se deu a partir da segunda metade do século XX e persiste até hoje, com graves consequências sobre o entendimento da patologia da atividade imunológica e sobre ausência de uma fisiologia imunológica. Esta separação coincide com a emergência da noção de doenças autoimunes e, portanto, do surgimento de teorias e experimentos sobre uma suposta capacidade do organismo de discriminar entre self e não-self, entre materiais invasores (antígenos) e seus próprios componentes. Hoje, esta separação, que é admitida quase universalmente pelos imunologistas, admite algumas exceções notáveis, como as de Antonio Coutinho e Irun Cohen, aos quais voltaremos oportunamente.
Na primeira metade do século XX, como parte de um longo desenvolvimento, a noção de inflamação se tornou a pedra angular do pensamento em patologia e era crucial para a explicação e doenças crônicas não-infecciosas; as doenças crônicas incluíam todas aquelas que envolvem um processo inflamatório persistente. A inflamação era vista como uma espada de dois gumes envolvida tanto em processos regenerativos, quanto como na própria essência do adoecer, um distúrbio da regeneração. Uma ampla e competente discussão desta separação entre inflamação e imunologia pode ser encontrada em Parnes (2003).
Com a emergência de teoria de Seleção Clonal (Burnet, 1959) e a identificação do linfócito como o tipo celular responsável pela atividade imunológica - linfócitos estão para a imunogia assim como neurônios estão para as neurociências (Gowans, 1995; Silverstein, 2001) - todo o conhecimento acumulado sobre a inflamação e a patologia de doenças crônicas foi afastado dos objetivos principais da imunologia, que passou a se preocupar principalmente com a natureza da “tolerância natural”, ou auto-tolerância e seu rompimento nas chamadas doenças autoimunes. O entendimento de como o corpo evita ativar respostas imunes contra si mesmo passou a ser visto como essencial não apenas para entender as doenças autoimunes, mas também compreender a própria natureza da atividade imunológica.
Por sua vez, a divisão entre mecanismos imunológicos “inatos” e “adaptativos” emergiu depois do apercebimento de que a vasta maioria dos animais, que não possuem vértebras[2] e estão reunidos sob o termo aristotélico de “invertebrados”, também não possuem linfócitos, o tipo celular responsável pela chamada imunidade “adaptativa” caracterizada pela “memória” imunológica específica. A restrição da atividade imunológica a processos envolvendo linfócitos separou a biologia dos vertebrados - que possuem linfócitos - da biologia dos invertebrados, que constituem a imensa maioria dos animais - que não os possuem. Isto levou à criação do conceito de imunidade “inata” para abranger um enorme conjunto de processos heterogêneos que participam da defesa anti-infecciosa de organismos invertebrados, muitos dos quais estão também presentes nos vertebrados. Nos vertebrados, esta imunidade “inata” também sofre a influência de linfócitos, um dos aspectos que sugere que esta divisão entre a imunidade “inata” e a “adquirida” foi uma escolha infeliz, que sepultou definitivamente a visão da inflamação como desenvolvida pelos patologistas europeus até a primeira metade do século XX (Parnes, 2003).
A divisão entre processos inatos e adaptativos volta a ser um problema atual desde que o prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia foi concedido a imunologistas, dividido entre pesquisadores que caracterizaram mecanismos (Bruce Beutler & Jules Hoffmann) e componentes celulares importantes como as “células dendríticas” (Ralph Steinman) da imunidade inata. Atualmente convertida na bioquímica inflamação, a “imunidade inata” não tem mais a conotação que a “inflamação” possuía na primeira metade do século XX, como processo central na patologia de doenças crônicas. Cabe, portanto, avaliar esta separação entre processos “inatos” e “adaptativos”.
A separação herança/aprendizagem (nature/nurture)
Esta separação entre herança e aprendizagem (nature/nurture) tem sido de maneira veemente atacada pelos adeptos da chamada “Developmental Systems Theory” (teoria dos sistemas de desenvolvimento[3]) liderada por Susan Oyama (Oyama, 1985; 2000; Oyama,Griffiths & Gray, 2001). Para biólogos de muitas áreas, embora não para imunologistas, o termo “inato”, similarmente ao termo “instinto” deixou de ser um termo respeitável. Paul Griffiths, por exemplo, afirma que o termo “inato” é muito confuso pois inclusive alguns o relacionam a processos adaptativos (Griffiths, 1991). Patrick Bateson lista sete sentidos diferentes com os quais os termo “inato” é usado em Psicologia Animal (Bateson, 1991:21):
· estar presente ao nascer
· uma diferença na conduta causada por uma diferença genética
· adaptado no curso da evolução
· invariante durante o desenvolvimento
· presente em todos os membros da espécie
· não aprendido
· um sistema de conduta singular guiado internamente
Em outra ocasião, Griffiths (2002) escreveu: “Na biologia molecular do desenvolvimento o termo inato é um construto teórico tão antiquado quanto o instinto e igualmente afastado de qualquer descrição atual da regulação gênica ou da morfogênese. Na ecologia da conduta (behavioral ecology), alguns autores consideram o conceito de “inato” tão irrecuperavelmente confuso que deveria ser evitado por todos os pequisadores sérios (Bateson, 1991; Bateson and Marin, 1999)[4]
Susan Oyama afirma que “...para muitas pessoas, de fato, tanto leigos quanto especialistas, termos como 'genético' ou 'biológico' significam algo fixo ou inevitável. Há uma crença correspondente de que os efeitos do ambiente são reversíveis” e “suspeito que o termo (inato) cause mais confusão do que esclarecimento...”(Oyama, 1993). Como mencionado, Oyama, Bateson & Griffiths são líderes da Developmental Systems Theory, um conjunto de propostas sobre processos biológicos que são frontalmente contrárias a separar “nature” (o desenvolviemento) de “nurture” (aprendizagem). Assim, para dizer o mínimo, o termo “inato” adiciona uma grande confusão às discussões biológicas, da qual os imunologistas, aparentemente, ainda não se aperceberam.
Da reatividade à atividade natural
Desde seu início, a atividade imunológica, como expressa na produção de imunoglobulinas, tem sido estudada em um esquema estímulo/resposta/regulação - por exemplo, na produção de “anticorpos” a “estímulos antigênicos”. No entanto, são abundantes as evidências de que se trata de uma atividade espontânea, que surge mesmo na ausência de qualquer contato (“estímulo”) conhecido com materiais estranhos (Bos et al., 1986). A produção espontânea de IgM em camundongos “antigen-free é idêntica à encontrada em animais SPF que abrigam um microbioma normal e são alimentados com dietas convencionais (Haury et al., 1996). A espontaneidade da produção de anticorpos “naturais” formava a base da primeira teoria “não-instrutiva” da formação de anticorpos (Jerne, 1955), mas tal espontaneidade desapareceu na teoria de Seleção Clonal (Burnet, 1959) na qual os anticorpos seriam produzidos apenas após uma estimulação com materiais antigênicos - algo repetidamente contradito por experimentos (Bos et al., 1986; Haury et al., 1996).
Uma “fisiologia” da inflamação tem sido proposta mas sempre como um aspecto ou um componente de respostas imunes (Medzhitov, 2008; 2010), ou seja como uma forma de re-atividade a estímulos de diversas naturezas. Algo diferente é proposto por Ramos (2011) que conceitua a inflamação como um aspecto do desenvolvimento e da atividade normal do organismo animal. Cada vez mais estou convencido de que os fatores decisivos na construção do conhecimento são emocionais e não racionais; histórias muito diferentes podem ser entendidas a partir de um mesmo transfundo de fatos, atendendo a emoções diferentes. A inflamação, como presentemente descrita, é um “princípio explicativo” - “um tipo de acordo convencionado entre cientistas em interromper as tentativas de explicar as coisas em um certo ponto” (Bateson, 1973).
Quando eu era mais novo e me confundia com meu próprio pensamento, corria a ler Burnet, porque ele dizia exatamente o oposto do que eu queria - eu aí me lembrava. O que Medzhitov (2008; 2010) diz é o oposto do que Ramos (2011) propõe.
Bateson, G. (1973) In Steps to an Ecology of Mind.
New York, Ballantine Books. page 39
Bateson, P.P.G. (1991) Are there principles of behavioral development? in P. Bateson, ed. The Development and Integration of Behaviur" (pp 19-39) Cambridge, Cambrigdge Univ Press
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Bos, N. A., R. Benner, et al. (1986). "'Background' Ig-secreting cells in pregnant germfree mice fed a chemically defined ultrafiltered diet." J Reprod Immunol 9(3): 237-246.
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[1] Gregory Bateson, In Metalogue: What is an Instinct
Daugther: Daddy, is an explanatory principle the same thing as an hypothesis?
Father: Nearly, but no quite. You see, an hipothesis tries to explain some particular something, but an explanatory principle - like "gravity" or "instinct" - really explains nothing. It's a sort of conventional agreement between scientists to stop trying to explain things at a certain point. (Bateson, 1973)
[2] menos de 10 por cento das espécies de animais são vertebrados e, entre os vertebrados, a vasta maioria é constituídda por peixes; muitas espécies de peixes são ainda desconhecidas, como as que vivem no oceno profundo e também em outroslocais.O tamanho de peixes varia de 20 m, o tubarão baleia (Rhincodon typus) a 8 mm (Paedocypris progenetica).
[3] Uma importante comparação entre a teoria dos sistemas de desenvolvimento, de Oyama, e a Biologia do Conhecer e da Lainguagem, de Maturana e Mpodozis (2000) pode ser lida em Botelho (2011).
[4] “In molecular developmental biology innateness seem as antiquated a theoretical costruct as instinct and equally peripheral to any actual account of gene regulation or morphogenesis. In behavioral ecology, some authors regard the innateness concept as irretrievably confused and the term 'innate" as one that all serius scientific workers should eschew.”
Qual a idade da sua filha?
ResponderExcluirMeu Deus do céu!!!
ResponderExcluirSensacional. Obrigada pela aula.
ResponderExcluirCamila