Por Nelson Vaz
No início do século vinte, Paul Bert,
então Diretor do Institute Pasteur, Paris, reunia três conceitos poderosos em
uma curta afirmação: “Um germe, uma doença, uma vacina”. Este ideal Pasteuriano
foi a mola fundadora da Imunologia, uma especialidade nascida na então jovem
Bacteriologia Médica, cuja finalidade explícita era inventar novos soros
terapêuticos e novas vacinas anti-infecciosas. Ainda hoje, a crença de Paul
Bert é compartilhada não apenas pelo público, em geral, como também por muitos
especialistas. Mas tem sido muito difícil inventar novas vacinas, como sugere a
longa discussão sobre as razões de sucessos e fracassos na vacinação.
Em uma visão ultra-simplificada da imunidade anti-infecciosa, isto não deveria ocorrer, porque é relativamente fácil desencadear a produção de anticorpos e ativar linfócitos T pela exposição a produtos de micróbios, vírus e parasitas. Experimentalmente, é fácil gerar uma “memória” imunológica para produtos de agentes infecciosos, que condiciona respostas imunes progressivas a cada novo contato com estes materiais. Supostamente, a eficácia das vacinas dependeria exatamente desta intensificação das respostas. Então, se é fácil intensificar as respostas imunes, por que tem sido tão difícil obter novas vacinas?
Atribuir a proteção anti-infecciosa à uma reatividade progressiva - à “memória” imunológica - é uma ideia curta, simples e, lamentavelmente equivocada. Tal “memória” seria suicida tão logo a resposta imune não conseguisse eliminar um agente infeccioso do organismo, ou, quando o organismo encontrasse repetidamente um estímulo antigênico no ambiente. Mas o equívoco mais grave e historicamente importante é descrever a atividade imunológica em termos de ataques e defesas, como se vivêssemos em um mundo perigoso.
Nas últimas décadas, com a caracterização dos “microbiomas”, constatamos que nosso mundo é um mundo essencialmente “microbiano”, tamanha é a abundância e variedade de bactérias e archeas. Há micróbios nas nuvens, que afetam o clima, e micróbios enfiados por quilômetros dentro das rochas do fundo dos oceanos. Quantidades inimagináveis de micróbios se instalam nas superfícies de nosso corpo, logo após o nascimento. Há quem proponha que somos mais parecidos com um “consórcio”, que com um organismo.
Cerca de 15 % de nosso genoma é constituido de material genético de origem viral; por exemplo, a sincitina, uma proteína importante na geração da placenta humana, foi codificada, originalmente, por um retrovírus. Duas proteínas necessárias na geração da diversidade linfocitária - Rag-1 e Rag-2 - também tiveram uma origem provavelmente viral. E, cerca de 30 % dos seres vivos podem ser classificados como “parasitas”, mesmo se excluirmos a grande massa de insetos que se alimentam de plantas. Então, um grave equívoco da Teoria dos Germes de Pasteur, foi negligenciar os “portadores sãos” de agentes potencialmente patogênicos, pois a convivência harmônica com micróbios é a regra e as doenças infecciosas são apenas acidentes de percurso.
Em resumo: a “memória” imunológica, isoladamente, não consegue explicar o êxito das vacinas; as infecções se tornam patogênicas apenas excepcionalmente. Deveríamos, portanto, atentar mais para a “fisiologia” da atividade imunológica, para aquilo que permite a convivência harmônica com micróbios, vírus e outros organismos multicelulares. Como funciona o chamdo “sistema imune” enquanto tudo vai bem? Ou, como perguntava Jerne: “O que precede a seleção clonal? (Jerne, 1971).
Quando voltamos nossa atenção para o viver “normal”, constatamos que produtos do microbioma e os alimentos constituem a maior parte do material imunogênico que invadem o corpo cotidianamente; mas, apesar disto, não desenvolvemos uma “memória” imunológica destes contatos; não “respondemos” a esta invasão cotidiana da mesma forma que reagimos a vacinas injetadas com adjuvantes. Não é que “ignoremos” a imunogenicidade dos alimentos: o que se estabelece aí é uma estabilidade dinâmica, surgem patamares robustamente estáveis de reatividade. O organismo estabiliza sua relação com materiais imunogênicos previamente ingeridos como alimentos (Verdolin et al., 2001).
De forma análoga, o organismo conserva patamares de reatividade a seus próprios componentes. A discriminação self/nonself é um pseudoproblema que tem nos atrapalhado por meio século. Longe de ignorá-los, o sistema imune interage continuamente com auto-componentes - só que o faz de forma robustamente estável. A chamada “tolerância natural” é um mecanismo estabilizador e a estabilidade da relação com alimentos é conhecida como “tolerância oral”. Embora seja vista como uma inibição da reatividade imunológica que representaria um obstáculo ao desenvolvimento de “vacinas orais”, a “tolerância oral” é uma estabilidade dinâmica. O que se estabelece aí não é a “memória” imunológica, nem é uma inibição da atividade imunológica: é outra coisa, uma estabilidade dinâmica, parte de outras estabilidades dinâmicas que constituem o viver.
O termo “estabilidade dinâmica” parece confuso pois destaca a conservação de algo em meio à mudança. Fala daquilo que se conserva naquilo que muda. Com colegas brasileiros e chilenos, publicamos em 2011 um pequeno livro sobre este problema: “Onde está o Organismo” - Florianópolis, Editora UFSC (Vaz et al., 2011). Na epígrafe deste livro, Jorge Mopozis diz:
“Há plasticidade nos modos de desenvolver. Os caminhos do desenvolvimento têm plasticidade em todos os momentos, e isso é o que permite essa maravilhosa diversidade de linhagens de seres vivos. Mas o problema não é o que é plástico, e sim o que se conserva. Se a mudança é uma condição constitutiva do viver, então, como se conserva aquilo que se conserva?” (Mpodozis, 2011).
Eis aí uma pergunta formidável e raramente ouvida: como se conserva aquilo que se conserva naquilo que muda? Nosso cotidiano está repleto de “estabilidades dinâmicas”. Um rio, por exemplo, é uma organização de moléculas de água que preserva um certo tipo de mudanças; interrompa estas mudanças e o rio desaparece, se transforma em lago. Os organismos são também estabilidades dinâmicas, entidades que conservam sua identidade através de enormes mudanças.
A Biologia
atual é centrada no organismo adulto; o desenvolvimento é visto apenas como o
trajeto que conduz ao organismo adulto. Mas, Walace Arthur inicia um livro
sobre a biologia do desenvolvimento, com as seguintes palavras:
“O cavalo é um animal microscópico que é incapaz de se mover. Consiste de um número bem reduzido de células (umas poucas centenas, comparadas aos trilhões achadas em um ser humano). Estas células não estão organizadas em sistemas sofisticados de órgãos. O cavalo é um parasita de outro animal, e adquire desta forma seus recursos de seu hospedeiro. Ele é inteiramente incapaz de obter energia de qualquer outro modo.”
“O cavalo é um animal microscópico que é incapaz de se mover. Consiste de um número bem reduzido de células (umas poucas centenas, comparadas aos trilhões achadas em um ser humano). Estas células não estão organizadas em sistemas sofisticados de órgãos. O cavalo é um parasita de outro animal, e adquire desta forma seus recursos de seu hospedeiro. Ele é inteiramente incapaz de obter energia de qualquer outro modo.”
e logo depois, acrescenta,
“Minha descrição está correta. Ela apenas se refere a um momento no ciclo da vida do cavalo que é diferente do momento em que usualmente pensamos à menção da palavra “cavalo”. Pensamos usualmente em um cavalo adulto, ou então em um lindo potro ainda instável em suas pernas. O que descrevi é um cavalo quando ainda é um embrião precoce, invisível aos nossos olhos porque está implantado profundamente nos tecidos maternos.” (Arthur, 2004)
“Minha descrição está correta. Ela apenas se refere a um momento no ciclo da vida do cavalo que é diferente do momento em que usualmente pensamos à menção da palavra “cavalo”. Pensamos usualmente em um cavalo adulto, ou então em um lindo potro ainda instável em suas pernas. O que descrevi é um cavalo quando ainda é um embrião precoce, invisível aos nossos olhos porque está implantado profundamente nos tecidos maternos.” (Arthur, 2004)
Menciono de passagem um equívoco de
grande importância social. Quando era Reitor da UFMG, meu amigo Tomaz da Motta
Santos disse em um discurso: “Com as campanhas de vacinação, os governos
pretendem que nossos corpos resolvam contradições sociais”. Mas as doenças
infecciosas e outras formas de miséria humana dependem de fatores muito
complexos. Em um livro fantástico, René
Dubos, comenta a “praga das batatas” que causou a “grande fome irlandesa” em
1845, que forçou a emigração de mais de um milhão de irlandeses. Ele enfatiza
que o fungo responsável pela destruição das batatas convivia harmonicamente com
as batatas inglesas, desde o Perú, de onde foram importadas. A “praga das
batatas” surgiu depois de dois verões chuvosos e frios, em uma época em que a
economia irlandesa também não andava muito bem (Dubos, 1959). De forma análoga,
a “gripe espanhola” de 1918, surgiu inicialmente nas trincheiras repletas de
soldados alemães. Dizem mesmo que a Alemanha não perderia a guerra se a gripe
não tivesse surgido (Crosby,1989; Kolata, 2000).
Enfim, creio que as vacinas falham porque entendemos ainda muito mal a atividade imunológica. A “defesa” imunológica é um resultado do que se passa, e não um mecanismo que possa ser destacado dos mecanismos do viver. Somos nós, os imunologistas, que transformamos imunoglobulinas em anticorpos em nosso testes sorológicos (Vaz, 2011a,b). Nesta imensa massa de dados descritos sobre a atividade imunológica, nós, os imunologistas, não descrevemos ainda a nós mesmos, nem o que fazemos em nossa praxis profissional.
A imunologia poderia ter se afastado da bacteriologia médica quando foram caracterizadas as isohemagluininas ABO como “anticorpos naturais” (Landsteiner, 1901); a anafilaxia (Portier et Richet, 1902) e os estados alérgicos, como a “doença do soro” (von Pirquet, 1906) - porque estes não são fenômenos ligados à proteção anti-infecciosa. Mas a influência da medicina até hoje pesa sobre nós e tendemos a ver os estados alérgicos como “defeitos” em uma imunidade que existe, basicamente, para nos “defender”. A “tolerância oral”, embora não com este nome, foi caracterizada no início do século XX (Besredka, 1909; Wells, 1911), mas nunca chegou a representar um aspecto importante do pensamento imunológico. Talvez porque, ao contrário dos micróbios, os alimentos nos parecem “inócuos”.
As vacinas falham porque ainda temos muito o que aprender. Há muitos anos defendo uma explicação “sistêmica” para a efetividade de vacinas anti-infecciosas. Mesmo durante infecções graves, apenas uma parcela da população infectada sofre danos severos ou mortais. Proponho que os indivíduos seriamente afetados são exatamente aqueles nos quais o “conjunto” de interações entre os componentes do sistema imune se “desconjunta”. Este desconjuntamento permite a expansão de clones com uma diversidade limitada de receptores: as expansões ditas oligoclonais. Há uma grande variedade de observações na literatura que apontam a concomitância de expansões oligoclonais de linfócitos T e condições patológicas que vão desde imunodeficiências congênitas a formas graves de infecção, a doenças alérgicas e autoimunes. Propusemos que a efetividade das vacinas em proteger os membros suscetíveis de uma população se deva à prevenção destas expansões oligoclonais (Pordeus et al., 2009).
Sob certos ângulos, nossa proposta é o exato oposto das explicações tradicionais com base na “memória” imunológica. A atividade imunológica normal é sempre plural (Jerne, 1955) e a patologia surge quando ela se singulariza. Desde 1890, quando foram notados os primeiros anticorpos, passamos 123 anos estudando as respostas imunes como se elas representassem a fisiologia imunológica, mas as respostas imunes representam a patologia imunológica. A fisiologia do sistema imune é conservadora (Vaz, 2006; Vaz et al., 2006) e não pode ser compreendida em termos de estímulos e respostas. Nem em termos da “regulação” destas respostas, ou seja, de “respostas regulatórias”. Precisamos entender mais claramente como opera o organismo.
Bibliografia
Arthur, W. (2004). Biased embryos and evolution. Cambridge:
Cambridge University press. p.1
Besredka, A. (1909). "De l'anaphylaxie. Sixiéme memoire de l'anaphylaxie lactique." Ann.Inst.Pasteur 23: 166-174.
Crosby, A. W. (1989). America's forgotten pandemic. The influenza of 1918. New York, Cambridge University press.
Dubos, R. (1959). Mirage of Health. Utopias, progress and
biological change. New York, Harper & Brothers.
Jerne, N. K. (1955). "The
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Jerne, N. K. (1971). What precedes clonal selection ? Ciba
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Kolata, G. (2000). Flu. The story of t he great influenza pandemic of 1918 and the search for the virus that caused it. New York, Touchstone.
Landsteiner, K. (1901). "The agglutinative properties of normal human blood." Wien.klin.Wochnschr. 14: 424-448.
Pirquet, C. F.von (1906). "Allergie." Münchener
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Pordeus, V., G. C. Ramos, A. Barbosa de Castro Jr., A.P.
Cunha, & N.M. Vaz (2009). "Immunopathology and oligoclonal T cell expansions. Observations in
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Portier, P. and C. Richet (1902). "De l’action
anaphylactique de certains venins." Comptes
Rendus Hebdomadaires des Séances et Mémoires de la Société de Biologie 54:170–172.
Vaz, N. (2006). "Evolution and conservation of
immunological activity." Brazilian Journal of Medical and Biological Research 39: 1521-1524.
Vaz, N. M., G. C. Ramos, V. Pordeus & C.R. Carvalho
(2006). "The conservative physiology of the immune system. A non-metaphoric approach to immunological
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Vaz, N. M. (2011a). "The specificity of immunological
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Vaz, N. M. (2011b). "Observing Immunologists." Neurociências 7(3): 140-146.
Vaz , N. M., J. M. Mpodozis, et al. (2011). Onde está o
organismo? - Derivas e outras histórias na Biologia
e na Imunologia. Florianópolis, editora-UFSC.
Wells, H. G. (1911). "Studies on the chemistry of
anaphylaxis. III. Experiments with isolated proteins, specially those of the hen's egg." J. Inf. Dis. 9: 147-171.
Como sempre, um texto excelente para refletir sobre o que temos feito e como temos interpretado nossos resultados.
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