Aproveitando as (minhas) férias e um pouco tempo que tem sobrado, me deparei com este texto do Professor Rafael Alcadipani (Professor Adjunto da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas) publicado na Revista O&S (Salvador, v.18 - n.57, p. 345-348 - Abril/Junho -
2011)
"A luta em
uma guerra, a elaboração de plantações ou até mesmo o adestramento de animais
requer que alguma forma de gerenciamento seja praticada. Por isso, não podemos
pensar a sociedade, mesmo que a mais rudimentar, sem a função gestão. Não
obstante, ensinamos aos nossos alunos dos cursos de graduação que o “pai” da
administração é um engenheiro Norte-Americano que realizava, entre outras
coisas, estudos de tempos e movimentos. Frederick Taylor não inventou a
administração. Seu principal legado foi popularizar a racionalização extrema e
metódica como sinônimo da melhor maneira de se administrar e gerar resultados
em organizações. O taylorismo foi utilizado pelo mundo como a solução para os
problemas das empresas ao, pretensamente, indicar a forma correta e certa de
gerir. Apresentou-se como aplicável para todo e qualquer tipo de organização,
não importando seu contexto e especificidades. Era, ainda, considerado neutro,
ou seja, como um conjunto de ferramentas que favorece o melhor resultado, nada
além disso.
Depois do taylorismo, o mundo não cessou de ver modelos, maneiras e
métodos que se apresentam como formas universais e corretas de se administrar.
Na realidade, Taylor criou a primeira grande ideologia gerencial, o primeiro
gerencialismo. Qualidade Total, Sistemas Integrados de Gestão, ISO-9000,
Reengenharia são apenas algumas marcas do gerencialismo. Embora tais marcas
mudem, a sua essência permanece a mesma: pretensão de aplicação universal,
proposta de solução única para os diversos problemas, neutralidade política e a
valorização do conhecimento do gestor em detrimento dos demais. O gerencialismo
se propõe como a solução para a minimização dos inputs e a maximização dos
outputs. O modelo corporativo, permeado pela ideologia gerencial, solidifi
cou-se na contemporaneidade como “a maneira” de se fazer gestão. Organizações
de todos os tipos devem ser efi cientes, efi cazes, os seus trabalhadores devem
ser avaliados e cobrados constantemente. Esta é a maneira tida como a mais certa,
a mais correta e, pasmem, até mesmo a mais justa de se gerir. Ou seja, a gestão
da empresa passou a ser vista como a única forma correta de se fazer
administração.
O gerencialismo não fi cou circunscrito ao mundo empresarial e
corporativo tradicional. Ele e seus modelos estão invadindo inúmeras esferas de
nossa vida cotidiana. Hoje se espera, e há aqueles que inclusive defendem, que
hospitais, ONGs, organizações fi lantrópicas, religiosas e até mesmo escolas e
universidades sigam as normas e os ditames da gestão das empresas tradicionais.
Assumimos que o processo de produzir conhecimento, cuidar de pessoas e lutar
por causas humanas pode seguir as mesmas regras de gestão da produção em série
de latas de sardinha. Passamos a gerir organizações com focos, objetivos e
funções sociais totalmente diferentes como
se fossem
fábricas de sabonete.
As peculiaridades do trabalho acadêmico
A função
das escolas de ensino superior é criar e difundir conhecimento e este trabalho
possui especifi cidades e complicações. Escrever um texto, por mais simples que
seja, tende a levar o autor ao seu limite. A lógica do que se diz precisa estar
clara, a novidade do que se pretende dizer, no caso de publicações científi
cas, também. Na realidade, ao escrever um texto, o autor luta contra seus
próprios fantasmas o tempo todo. Será que aquilo que escrevi faz sentido? Será
que as idéias estão claras? A lógica do argumento está concatenada? Estou
verdadeiramente convencido daquilo que digo? As minhas palavras transferem
aquilo que realmente eu queria dizer? Eu sou bom o suficiente para escrever
este texto? O que os outros vão achar do que escrevi? Estas são apenas algumas das questões que nos acompanham durante a
escrita. Para a redação, é preciso pensar e repensar, escrever e reescrever. A
produção do conhecimento impregna o seu autor. Quando se está escrevendo raros
são os momentos de paz, pois idéias nos perseguem em todos os lugares que
vamos. Muitas vezes, ficamos dias e dias na frente de um computador sem
conseguir evoluir. Outras vezes passamos o dia todo escrevendo, apagando e
reescrevendo o mesmo parágrafo. Trata-se de um processo diametralmente oposto
ao de fazer gestão, cuja lógica do “apagador de incêndios” é dominante.
A
escrita é um processo extremamente laborioso, e não estar sob pressão de tempo
é crucial. Na realidade, a escrita e o trabalho acadêmico seguem a lógica do
artesanato, que é muito diferente da lógica da produção fordista ou toyotista
típica do mundo corporativo. A escrita acadêmica envolve, via de regra, a
realização de pesquisas, atividade de signifi cativa complexidade. A escolha de
um tema, de um objeto, de um método, da maneira de coletar e analisar dados, de
conseguir acesso são atividades extremamente demandantes quando realizadas de
forma rigorosa. Mais uma vez, a distância da atividade gerencial cotidiana é
notória, principalmente no que concerne à questão do uso do tempo. A difusão do
conhecimento tampouco é atividade simples. Selecionar o conteúdo a ser
ministrado, preparar a forma que isso será feito, maneiras que os alunos serão
avaliados, ser capaz de criar uma dinâmica com a sala de aula que favoreça a
aprendizagem, lidar com as próprias expectativas e com a dos alunos são
atividades que requerem dedicação, cuidado, equilíbrio emocional e, sobretudo, paciência.
Talvez, o mais importante do ensino é que infl uenciamos a maneira de os alunos
compreenderem a realidade e até mesmo entender o que é a realidade. Afinal, ao
descrever para nossos alunos como as coisas podem ser, estamos dizendo a eles como
elas são. Não é à toa que a docência é uma das atividades mais nobres que há.
Apesar
da importância social, um professor recebe uma remuneração inferior a de
pessoas com qualifi cação semelhante em outras profi ssões. O pagamento pouco atrativo
tendia a ser compensado pela liberdade de pensar, a ausência de hierarquiaformal
rígida, as menores pressões externas, o prazer de ensinar e pesquisar, a
liberdade do próprio tempo. Ou seja, a realização pessoal e a possibilidade de
um trabalho que foge das pressões das ocupações tradicionais compensavam a
ausência de recompensas pecuniárias mais diretas. Porém, a invasão da lógica
gerencial nas organizações educacionais está gerando um habitat bastante
inóspito para o acadêmico e vocação.
Academia inóspita
O autor deste artigo,
em conjunto com Ricardo Bresler, advertiu em 1999 que as faculdades e universidades
brasileiras passavam por um nítido processo de McDonaldização. Cursos
enlatados, o esvaziamento da refl exão, os ataques à liberdade acadêmica, a
busca por ensinar aquilo que supostamente funciona, o uso desenfreado de apostilas, a
transformação do aluno em cliente, a difusão de formas de avaliação de
desempenho de professores similares a de empresas e a quantifi cação da
produção acadêmica já eram traços do ensino superior brasileiro em 1999. De lá
para cá, a situação apenas se agravou. A academia está prestes a virar
fast-food. O modelo gerencial passou a ser visto como a solução para os
problemas das organizações educacionais. Começou-se a desenvolver avaliações de
desempenho de professores que mimetizam os processos de avaliação de executivos,
os planos de carreira estão cada vez mais próximos ao de empresas, os alunos
passaram a ser vistos como clientes e os cursos como produtos.
Inseridos em tal
lógica, professores são premiados ou punidos, muitas vezes, levando-se como
fundamento principal a pesquisa da satisfação dos alunos com relação ao curso
ministrado pelo professor. Tais avaliações discentes seguem uma lógica que não
difere muito da lógica das pesquisas de satisfação de clientes que acabam de consumir
um produto. A transformação do aluno em cliente transformou o professor em um
mero prestador de serviços, muitas vezes subtraindo dele as funções de educador
e o forçando a ser um “animador de auditório”. O problema do aluno-cliente é que
a lógica do ensino-aprendizagem é subvertida pela lógica do consumo-satisfação que,
muitas vezes, destoa da formação de um sujeito reflexivo e maduro. Diante do cliente, o
professor-prestador de serviço não deve medir esforços para satisfazê-lo. A conseqüencia
mais típica é o estabelecimento dos “pactos de mediocridade” em que o aluno finge
que apreende e o professor que ensina.
Outro problema grave
é que na lógica gerencial-empresarial o que vale é a produtividade mensurada
por números. No Brasil, produção acadêmica se transformou em sinônimo de fazer
pontos. Balizada pela tabela de pontuação de produção acadêmica da CAPES, o
trabalho de pesquisa tem sido medido pela quantidade de pontos que o professor
consegue fazer por ano. Assim, a lógica está cada vez mais em produzir o máximo
possível de artigos para fazer o máximo de pontos. Rankings com nomes e pontos
de professores são produzidos e distribuídos nas secretarias dos programas de
pós-graduação em todo o país.
Não é incomum pesquisadores produzirem cinco ou
seis artigos em uma mesmo ano. A perversidade deste sistema chegou a tanto que
a noção de autoria, tão cara a uma academia que se
pretende séria, está à beira de ser desvirtuada, principalmente quando pessoas
assinam artigos que não leram. Não é incomum vermos alunos serem coagidos a
colocar o nome de orientadores em artigos e trabalhos que jamais foram lidos
pelo orientador. Na lógica da academia produtivista, o tempo para reflexão é deixado de lado, a
formação de alunos é escamoteada e o desenvolvimento intelectual significa apenas
números em uma tabela.
Os alunos socializados neste sistema encaram a produção
acadêmica como um fim em si mesmo, fazendo parte de uma geração que não
pesquisa a fundo, não apreende e não se desenvolve;
apenas publica. A publicação que deveria ser a coroação de um trabalho sério e
diligente de pesquisa e refl exão está se transformando em uma mera numerologia
da academia McDonald´s onde tudo deve ser quantifi cado dentro da lógica da
quantidade como sinônimo de qualidade. Avaliar o trabalho de produção acadêmica em triênios
é um acinte. É muito pouco tempo para que um projeto verdadeiramente intelectual
se desenvolva e gere frutos. Trata-se da imposição da lógica do tempo
empresarial taylorista-fordista em algo que é essencialmente artesanal.
No
mundo gerencial, a crítica e a refl exão deve sempre ser “construtiva”. O mal estar do problema
exposto sempre deve dar lugar a uma rápida solução. Com a transplantação da
lógica corporativa para as organizações de ensino, o horror à crítica se
estabelece. O questionamento das diretrizes estabelecidas e as perguntas
inoportunas são cada vez mais mal vistas na academia “fábrica de sardinha em
lata”. Os que questionam são logo estigmatizados como causadores de problema e
a sua opinião é, simplesmente, deixada de lado. A crise dos intelectuais não
está apenas no seu papel social. A intelectualidade está em xeque também dentro
do mundo acadêmico que passa cada vez mais por um processo de “higienização”,
no qual o suposto mal odor da crítica deve dar lugar a esterilidade do consenso
mudo e da crítica propositiva. Neste contexto, a
liberdade acadêmica entra em xeque. A ironia é que o gerencialismo invade o
mundo educacional em sua faceta mais tradicional e menos elaborada, uma vez que
a gestão acadêmica sob sua égide tende a ser quase taylorista-fordista.
Outro modelo é
preciso
Antes do modelo
produtivista, a academia vivia sob o império da cátedra. O professor com certa
senioridade assumia uma posição vitalícia e de lá reinava absoluto e soberano.
A renovação era improvável e a fossilização tendia a ocorrer. Para se preservar
a liberdade acadêmica de um gerava-se a submissão de outros. Os periódicos eram, muitas vezes,
clubes fechados onde poucos podiam publicar e o acadêmico nunca era avaliado
por ninguém. A crítica ao modelo atual não signifi ca o desejo do retorno à
sociedade da corte. Sem dúvida, o modelo anterior era inadequado e injusto. Não
resta dúvida que os professores e pesquisadores precisam “publicizar” o que
fazem. A produção de um
artigo ou de um livro, quando é resultado de um amadurecimento intelectual, é
sinônimo de desenvolvimento intelectual. Em um processo de diálogo com os
pares, muito se apreende. Uma aula, quando bem preparada e ministrada, é gratificante
para alunos e professores.
Porém, o gerencialismo quando aplicado ao ensino e a
pesquisa corrói a essência da produção e divulgação do conhecimento. O problema
da inserção da lógica gerencial no meio educacional é que ela passa a impor um “ethos”
corporativo para um tipo de atividade que pouco ou nada tem a ver com o mundo
das empresas. O professor precisa ter tempo para amadurecer suas idéias.
Precisa de liberdade para expor seus pontos de vista sem ter que se preocupar
em agradar um cliente ou um patrão.
Precisa desenvolver
seu trabalho de pesquisa com a tranqüilidade de que se ele não fizer um número
certo de pontos por ano não será excluído. O professor precisa ter a tranqüilidade
de que quando ele atingir certo nível de desenvolvimento intellectual e
senioridade em uma dada área, ele não será descartado por não fazer pontinhos.
A academia precisa,
urgentemente, rever o caminho que está trilhando, pensar em uma nova maneira de
se organizar que leve em consideração as suas peculiaridades e sua finalidade
social. Deixar a nobre tarefa de produzir e divulgar conhecimento para a lógica
das fábricas de sardinha é antes de qualquer coisa um desperdício."
* PhD pela Manchester Business School – The University of
Manchester. Professor Adjunto da Escola de Administração de Empresas de São
Paulo da Fundação Getulio Vargas – EAESP/FGV. Endereço: Rua Itapeva, 474 – 11º
andar. São Paulo/SP. CEP: 01332-000. E-mail:Rafael.Alcadipani@fgv.br
o&s - Salvador, v.18 - n.57, p. 345-348 - Abril/Junho - 2011
www.revistaoes.ufba.br
Abraços
Aqui na minha cidade, as organizações academicas fizeram pacto de mediocridade. As pessoas de um grupo específico não estão evitando conflitos de interesses pessoal, com o passado institucional e financeiro em todos os aspectos. Senti isso na pele, e é uma pena que o poder de minha palavra não tenha peso.
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