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quinta-feira, 28 de abril de 2011

Sobre camundongos, gente e camundongo-gente


Recentemente, mudei o escopo da minha pesquisa. E essa mudança foi drástica. Trabalhei alguns anos com leishmaniose e malária humana. Depois, o cenário onde os experimentos se desenrolariam foi para o pulmão (a tal da tuberculose). Vim trabalhar com um grupo excelente, mas que não faz muitos trabalhos clínicos. Aqui, o negócio é imunobiologia hard core. Então, eu que nunca tive um projeto sério em camundongos para tocar, fiquei um pouco intimidado. Foi então que o meu querido supervisor me aprontou uma. Não bastava mais tentar fazer algo em camundongos. Tinha que ser nos benditos camundongos humanizados. Então vou contar pra vocês como estou encarando esse treco.

Primeiramente, temos que nos perguntar sobre a importância de se ter um camundongo humanizado. O negócio é que para muitas condições infecciosas (nem comento em outros campos não infecciosos), não há bons modelos experimentais que possam simular coerentemente a doença humana. Alguns exemplos são o HIV, HBV, dengue, malária, leishmaniose e tuberculose. Isso acontece porque esses e outros patógenos apresentam um tropismo único por hospedeiros humanos. Neste contexto, o desenvolvimento de estratégias de intervenção, seja terapêutia ou profilática, carece de modelos mais robustos, com custo-benefício e poder de predição que se adequem e reprodução a condição humana. Camundongos e primatas têm sido utilizados amplamente como uma alternativa interessante, e muito do que se sabe em imunobiologia e vacinologia é fruto de estudos essenciais usando esses bichinhos. Tais modelos experimentais são úteis, portanto, para vários contextos e doenças. Entretanto, é comum a gente se deparar com discrepâncias importantes que resultam no insucesso da aplicação de resultados pré-clínicos promissores em vacinas e tratamentos efetivos em pessoas. Dentre as possíveis explicações para essas discrepâncias, duas são para mim bem importantes. A primeira razão vem do lado do patógeno. Em muitos modelos experimentais de infecção, os patógenos usados são diferentes dos encontrados nas pessoas. Em malária, isso é gritante, por exemplo. Outro ponto essencial é que os correlatos imunológicos de proteção em espécies de mamíferos não humanos muitas vezes divergem das respostas humanas. Traduzindo, o que está associado à proteção ou suscetibilidade de camundongos a uma determinada infecção nem sempre é a mesma coisa em humanos. Isso, pra quem faz pesquisa básica com perspectiva clínica é um desespero. A galera tenta sempre convencer que o que está sendo descrito pro tal do camundongo serve pra gente. Infelizmente nem sempre o final da história é feliz. Um exemplo bem conhecido é o do HIV e hepatites virais. Durante décadas, chimpanzés têm sido utilizados para o estudos sobre a imunobiologia e também para testes terapêuticos contra o HIV, HBV e o HCV. Os genomas desses animais são 98% idênticos ao genoma humano. O problema é que pequenas discrepâncias podem fazer uma baita diferença no final. E na verdade, nossos primos chimpanzés não possuem nenhum alelo de MHC I em comum conosco. Além disso, o famoso alelo HLA-A2, bastante comum em humanos, é completamente ausente nos nossos parentes primatas. Algumas diferenças bem evidentes também são observadas no lado do MHC II. O problema ainda vai mais longe. O uso desses animais é muito caro e inclusive banido em vários países por questões éticas. O resultado deste montão de coisas é que os experimentos em chimpanzés usam geralmente um número bem limitado de indivíduos e encontram problemas que pesquisadores clínicos enfrentam corriqueiramente, tais como a variabilidade inter-individual e com ela a baixa reprodutibilidade dos resultados.

Aí, alguém teve um epifania. O camundongo-gente. Humanized mice. Podem chamar do que quiserem. Para alguns, essa idéia soou como a música do Tom Jobim “...Foi então, que da minha infinita tristeza aconteceu você…”. Ora pois, esses bichos seriam tudo de bom. Pequenos, mas humanos. Opa, não queremos tão humanos. Só o suficiente. Uma repórter do canal FOX 5 no ano passado se manifestou contra o uso desses animais, pois teriam cérebro humano e isso é anti-ético. Não é nada disso. O que os imunologistas querem é um bichinho fácil de manipular e que tenha o sistema imune completamente humano. Mas claro que esse bichinho não pode falar, senão iriam reclamar pra caramba, não é? A idéia de ter camundongos humanizados é bem interessante. O problema é fazer os bichos. E o pessoal já tentou de tudo. Transplantar órgãos, como fígado e baço, implantar timo, etc, etc, etc. Tem gente que conseguiu grants enormes, como na Yale. Não é que agora vou trabalhar com esses quimeras? Imaginem como estou intimidado agora. Não basta ser camundongo. Tem que ser um cara esquisito. Na realidade, não chegamos ainda no paraíso. Fato é que mesmo nos mais sofisticados modelos desses camundongos, a quantidade de células humanas ainda está abaixo das expectativas. O bicho é uma quimera, cheio de células vindas de camundongo e também de gente. O que a gente não sabe precisar ainda é o peso e o preço desse “quimerismo”. Mas a gente já sabe que a resposta imune contra o HIV e EBV nessas quimeras ainda não é comparável à resposta humana. A sobrevida das células-tronco hematopoiéticas implantadas ainda é muito curta e a diferenciação em linhagens específicas, como a eritrocítica, não é efetiva. Pior, a formação de estruturas linfóides primárias e secundárias é precária. Vários grupos começaram a tentar abordagens como knock-in, acrescentando fatores de crescimento humanos, como GM-CSF, para tentar otimizar o processo. Temos portanto boas perspectivas mais ainda um longo caminho pela frente.

E vocês, o que acham desses camundongos quimeras? Você toparia trabalhar com um desses?

Segue uma revisão interessante sobre o tema (da qual retirei a figura acima): Legrand N et al. Humanized mice for modeling human infectious disease: challenges, progress, and outlook. Cell Host Microbe. 2009 23;6(1):5-9.


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5 comentários:

  1. Eu sinceramente acho que é uma ferramenta importante, que tem que ser feita e tratada com respeito; a gente tem que aproveitar a oportunidade de usar o sistema experimental, sem perder de vista, como em qualquer sistema, que é uma aproximação da realidade, e não absoluto.

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  2. Concordo plenamente. e é por isso que estou trabalhando com eles, além de decidir escrever sobre eles. Modelo experimental, como o nome já diz, é modelo, um cover, um dublê que não substitui a realidade na sua plenitude. Um modelo experimental deve ser usado com cautela e com moderado entusiasmo. E esta moderação é diretamente proporcional à aproximação do modelo com a realidade.

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  3. é isso aí. belo post. tenho certeza que vc vai se sair muito bem, bruno! have fun trabalhando no seu humouse ...

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  4. Já leu "Of mice and men" de Steinbeck? O assunto é distinto mas também muito interessante.

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  5. Oh Bruno, claro que sim rapaz....E boa sorte....abracos

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