Nós e as Bacs
No clássico
Guerra dos Mundos, publicado em 1898,
H.G. Wells imaginou uma Terra devastada por uma invasão alienígena.
Marcianos, apresentados como mais fortes, mais inteligentes e com melhor
tecnologia, exterminavam humanos com a eficiência e a tenacidade da Alemanha ao
aniquilar os sonhos futebolísticos dos brasileiros na terça-feira. Enfim. Quando
tudo parecia perdido, os marcianos começam a morrer misteriosamente. No final,
é revelado que eles sucumbiram às bactérias da Terra, contra as quais os
humanos normais já teriam imunidade há tempos. Essa história de terror foi
contada sob o ponto de vista do século XIX por Wells, que era revisor da
revista cientifica Nature e
trabalhava muito para divulgação de ciência. Nessa época, não sabíamos que não
existia vida inteligente em Marte, e bactérias eram seres misteriosos e
assustadores. Estas eram visíveis apenas ao microscópio, e identificadas principalmente
como causadoras de doenças mortais – antibióticos foram descobertos apenas no
século seguinte, a penicilina sendo identificada em 1928.
O
interessante é que hoje sabemos que as células bacterianas em nosso corpo são pelo
menos dez vezes mais abundantes que as células humanas, pertencentes a mais de
dez mil espécies diferentes. Essas bactérias são conhecidas conjuntamente como
o microbioma humano, evoluíram por centenas de milhões de anos adaptando-se a
viver em nossa pele, no intestino, nos tratos respiratório e vaginal, sem
causar doença – exatamente o oposto. Somos basicamente condomínios de bactérias, sendo o intestino
a zona nobre, em que o acesso aos nutrientes fica concentrado. As bactérias
componentes do microbioma trabalham arduamente preservar o seu ambiente – o ser
humano - de modo que este deixe
vários descendentes, garantindo novas moradias para... bactérias filhas.
As
bactérias do intestino produzem enzimas necessárias para que possamos digerir
diferentes alimentos e assim absorvê-los. Produzem vitaminas que não
produzimos, e também competem com outras bactérias, potencialmente patogênicas,
que tentem colonizar nosso corpo. Os
chineses já sabiam disso há dois mil anos atrás, e usavam chá de fezes para
tratar colites inflamatórias. Hoje sabemos que isso funcionava melhor porque a
colite era causada pela bactéria Clostridium
dificile, que proliferava em nosso intestino quando bactérias do microbioma
eram eliminadas por alguma razão. Nosso microbioma sofre baixas quando tomamos
antibióticos. A reposição das bactérias originais, “do bem”, resolve o problema. No século XX , no
Colorado, o “cházinho” foi substituído por tratamento com enemas fecais,
igualmente eficientes.
Mais
recentemente, descobriu-se que as bactérias da microbiota produzem substancias antiinflamatórias,
e isso pode curar diabetes e outras doenças inflamatórias, trazendo uma nova
função para o tratamento agora carinhosamente denominado “transplante de
cocô”. Além disso, essas bactérias
interagem com o sistema imune do hospedeiro fazendo com que ele mesmo produza
respostas antiinflamatórias. E alguns tumores só se manifestam se o hospedeiro
possui uma determinada composição de espécies na microbiota, sugerindo que
manipular a população de bactérias no intestino pode prevenir certas formas de
câncer. Hoje existem projetos
internacionais para a compreensão das funções da microbiota, pois parece que
estamos apenas arranhando a superfície do assunto. Por exemplo, o tipo de
alimento que consumimos seleciona diferentes espécies de bactérias. Fibras
complexas selecionam espécies que favorecem respostas antiinflamatórias e
inibem a obesidade, enquanto que alimentos processados industrialmente
selecionam outras espécies, que favorecem respostas inflamatórias e formação de
gordura. Assim, a dieta não apenas interfere no metabolismo da pessoa, mas no
seu microbioma, e esse conhecimento vai sem dúvida revolucionar hábitos, e os mercados farmacêutico, nutricêutico,
e de saúde. É importante, contudo, buscar as fontes idôneas de informação sobre
o assunto, antes de achar que o tratamento com probióticos – alimentos que contem
espécies de bactérias viáveis – é a cura para todos os males.
Se HG Wells
escrevesse essa história hoje, com o conhecimento que temos hoje sobre o
microbioma, ela seria bem diferente. Os marcianos seríamos nós, extinguindo milhares
de espécies com o uso indiscriminado de antibióticos. Hoje colocamos
antibióticos em tudo, em sabão, na alimentação de animais que consumimos, no
leite. Essas drogas são ferramentas maravilhosas, salvam milhões de vidas, mas precisam ser utilizadas de forma
inteligente. No novo conto de Wells, os humanos seriam agora ameaçados por
novas espécies de bactérias, resistentes aos antibióticos, e pela perda gradual
de funções vitais por terem extinguido as bactérias do microbioma. Muito mais próxima
da realidade que a primeira, e por isso, ainda mais aterrorizante.
Texto publicado no Jornal Zero Hora, Caderno ProA, 13 de julho de 2014
Cris, voce esta botando pra quebrar...Seus artigos (este e o do amor) estao preciosos. Bjs
ResponderExcluirPuxa Sergio, vino de vc é um enorme elogio! Bjs
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