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sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Relações biológicas e extrabiológicas

Nelson Vaz

        Sem que ela me autorize, vou utilizar uma mensagem precisa e preciosa que recebi ontem de minha grande amiga Patrícia Ayer, psicóloga Deleuziana, como resposta a uma queixa que sempre repito: a de que não adianta produzir resultados experimentais em apoio a um “novo paradigma”, porque, ou eles são ignorados, ou há contorções teóricas que permitem  interpreta-los pelo paradigma vigente. Na UFMG, Cláudia Carvalho e seu grupo têm mostrado a quase abolição de granulomas pulmonares (Carvalho et al., 2002; Azevedo et al., 2012), a melhoria do fechamento de feridas cutâneas (Costa et al., 2013) e outros resultados espetaculares, pela simples exposição de camundongos a antígenos tolerados - e isto não promove espanto algum. 
       Os imunologistas atuais passaram do estudo de respostas a estímulos para a “regulação” destas respostas sem considerar  aquilo que regula o regulador. O termo homeostase é usado de forma frouxa, como um princípio explicativo; não existem sistemas “não-homeostáticos” e então o termo parece voltado em uma direção promissora, mas nunca há um preocupação em definir (descrever), afinal, que sistema é este, qual a sua  organização; afinal, o que é mantido invariante? Como pergunta o Mpodozis na epígrafe de nosso livro (Vaz et al., 2011a): “Como se conserva aquilo que se conserva naquilo que muda?”. 
Quando vemos o sistema imune como um sistema cognitivo, como fazem não só o público, mas também a maioria dos imunologistas, nossas perguntas e os critérios que usamos para validar as respostas que encontramos, inevitavelmente dependem daquilo que entendemos como “cognição” Uma alternativa é descrever esta cognição como aquilo que os imunologistaas fazem quando operam como observadores humanos e geram descrições da atividade imunológica. Neste modo de ver alternativo, nós, os imunologistas, somos as verdadeiras entidades cognitivas na imunologia - não as células e moléculas, tais como linfócitos e imunoglobulinas, que operam como componentes do sistema imune (Vaz, 2011a,b,c).
Primeiro, Patrícia sugere que, em minha prática docente: “ (não) ter como princípio (político) de trabalho contornar obstáculos; ao contrário, trata-se de abraçar uma tarefa pedagógica positiva: desconstruir obstáculos, afirmando o novo”. Ela sabe que faço isto todo dia, há 30 anos. E sugere que esta desconstrução passa “pela análise dos dos fundamentos filosóficos dos diferentes paradigmas”.
Depois explicita o paradigma vigente: 
“A pesquisa tradicional fundamentada no pensamento clássico segue um modelo arborescente que: 
•• busca representar o mundo, o que pressupõe objetos preexistentes e um sujeito cognoscente capaz de apreender as essências últimas e verdadeiras dos fenômenos (herança socrático/platônica presente na “vontade de verdade” presente na ciência moderna);
•• essa maneira de pensar é orientada por uma questão: o que É tal coisa? É uma pergunta pelo SER.”
      Aqui, cabe a sugestão de consulta ao último livro de Maturana, intitulado exatamente “Do SER ao fazer” (Maturana & Poerksen, 2004) - versão em espanhol acessível através de <https://docs.google.com/folderview?id=0B-YLV8egGwSuWE8tc3N1R1BjUW8>. Trata-se de uma longa entrevista com Maturana sobre as origens da Biologia do Conhece e da Linguagem.
Patrícia prossegue dizendo que as respostas dadas no paradigma vigente:
•• “..“evoluem” de uma causa (o Uno como fator explicativo) a várias causas (o Múltiplo como fator explicativo); contemplam abstrações como homeostase, regulações; a multiplicidade de vetores que habita um fenômeno é simplificada na busca de respostas à pergunta s/ o SER. (ênfase adicionada por mim).
      Reconhece-se uma “complexidade” maior no SER, mas a pergunta não mudou:
•• “trata-se de um pensamento que privilegia as relações biunívocas (uma causa/ muiticausas>>efeito/s); o pesquisador arborescente esforça-se por produzir fotos de uma realidade verdadeira.”
      Tenho insistido em atentar para o “sujeito cognoscente” da imunologia, que é o imunologista em suas observações. Esta minha insistência não é original. Kazatchkine e Coutinho (2000) falavam de uma “taxonomia clonal”, nos alertando para que linfócitos não atentam para as (nossas) definições das especificidades que atribuímos a eles. As observações imunológicas são “específicas” mas tudo se complica quando imaginamos que específicos são os próprios linfócitos (Vaz, 2011a,b,c).
A ideia de relações biunívocas é uma falácia que persiste no entendimento básico da atividade imunológica, na ilusão de  que a cada antígeno (epitopo) corresponde um anticorpo (paratopo), quando todos “sabemos” que a especificidade é “degenerada” e cada receptor linfocitário admite milhões de ligantes (Wucherpfennig et al., 2007; Wooldridge et al., 2011).
Patrícia passa então às novas perguntas (a que ela se refere como o “pensamento rizomático”):
•• “a pergunta não (mais) gira em torno do ser, mas em torno do devir; novas perguntas aparecem>>>como, qdo, qto, onde constituem perguntas que inspiram a produção de mapas, sempre abertos, sobre a multiplicidade das forças que habitam um fenômeno. Cada  mapa envolve consensos da comunidade científica, mas não dizem respeito a enunciação de verdades essenciais à natureza.”
      Esta última frase sintetiza aquilo que tenho gasto milhares de palavras para dizer.
•• o pesquisador sempre entra em um território que se modifica em função de suas intervenções.
•• há uma multiplicidade de conexões do objeto pesquisado; o eixo uno/mútiplo é substituído pelo eixo da multiplicidade (tomada como substantivo) em que as explicações não funcionam por relações de causa/s efeito/s, mas focalizam uma rede complexa de relações biológicas e extrabiológicas.
O que Patrícia Ayer afirma  aqui, pode ser lido, por exemplo, no dsicurso de Niels Bohr sobre a Física quântica. Infelizmente, a advertência de Lord Snow sobre o abismo entre as ciências naturais e as ciências humanas permanece mais válido do que nunca e imunologistas como nós não escutam com frequência um discurso como de Patrícia Ayer.  
Um discurso também lúcido e claro pode ser lido na “Apresentação” feita por Cristina Magro e Victor Paredes (2001) ao livro “Cognição e Ciência Cotidiana” que  reúne rextos de Humberto Maturana, também acessível através de 
<https://docs.google.com/folderview?id=0B YLV8egGwSuWE8tc3N1R1BjUW8>

Bibliografia
Azevedo, G. M., Jr., R. A. Costa, et al. (2012). "Indirect Effects of Oral Tolerance Inhibit     Pulmonary Granulomas to Schistosoma mansoni Eggs." Clin Dev Immunol 2012: 2012:293625.
Carvalho, C. R., H. L. Lenzi, et al. (2002). "Indirect effects of oral tolerance to ovalbumin interfere with the immune responses triggered by Schistosoma mansoni eggs." Braz J Med Biol Res, 35(10): 1195-1199.
Costa, R. A., V. Ruiz-de-Souza, et al. (2011). "Indirect effects of oral tolerance improve wound healing in skin." Wound Rep Reg 19(4): 487-497.
Kazatchkine, M. D. and A. Coutinho (2000). "Clonal taxonomy versus Network physiology. Are lymphocytes concerned with our definition of idiotypes? Our views of auto-immunity are determined by the definition of idiotypy." Immunology Today 14(10): 513-515.
Magro, C. e Paredes, V. (2001) ”Apresentação” , em Maturana, H. (2000) Cognição, Ciência e Vida Cotidiana.  Belo Horizonte, Editora UFMG. pp.11-18
Vaz , N. M., J. M. Mpodozis, et al. (2011a). Onde está o organismo? - Derivas e outras histórias na Biologia e na Imunologia. Florianópolis, editora-UFSC.
Vaz, N. M. (2011c). "Observing Immunologists." 
Neurociências 7(3): 140-146.
Vaz, N. M. (2011b). "The specificity of immunological observations." 
Constructivist Foundations 6(3): 334-351.
Wooldridge, L., J. Ekeruche-Makinde, et al. (2011). " A single autoimmune T-cell receptor recognizes over a million different peptides. ." Journal of Biological Chemistry 287(2): 1168-1177.

Wucherpfennig, K. W., P. M. Allen, et al. (2007). "Polyspecificity of T cell and B cell receptor recognition." Semin Immunol 19(4): 216-224.

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