Não existem “meras palavras”
Nelson Vaz
No trecho final de um de seus “Metálogos” - diálogos imaginários com sua filha, Gregory Bateson diz:
Pai: De qualquer forma, é tudo um disparate. Quer dizer, a ideia de que a linguagem é composta por palavras, não tem sentido - e dizer que gestos não podem ser traduzidos em “meras palavras”, não faz sentido porque não existem “meras palavras”. E toda a sintaxe e a gramática, nada disso faz sentido. Está tudo baseado na ideia de que existem “meras palavras” - e elas não existem.
Filha: Mas, Papai...
Pai: Eu lhe digo - temos que recomeçar do início e admitir que a linguagem é primariamente e acima de tudo um sistema de gestos. Afinal, os animais têm apenas gestos e tons de voz - as palavras foram inventadas depois. Muito depois. E depois disso, inventaram os professores.”
um pouco antes, ele havia escrito:
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Filha: Papai, porque é que as pessoas não podem apenas dizer: “Não estou zangado com você - e pronto?
Pai: Ah, agora estamos nos aproximando do problema real. O ponto é que as mensagens que trocamos em gestos não são as mesmas que qualquer tradução destes gestos em palavras.
Filha: Não entendo.
Pai: Quer dizer, nenhum esforço em dizer a alguém em meras palavras que não se está zangado é tão eficaz quanto dizer o mesmo por gestos ou pelo tom de voz.
Filha: Mas, Papai, não podemos usar palavras sem nenhum tom de voz, podemos? Mesmo se alguém usar um tom tão neutro quanto é possível, as pessoas notarão que ele está que ele está evitando alguma coisa - e isso será uma espécie de tom de voz, não será?
Pai: Sim, suponho que sim. Afinal, isso é o que eu disse sobre os gestos - que o francês diz algo especial quando para de agitar os braços enquanto fala.
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Pai: Mas,então, o que se quer dizer quando se diz que “meras palavras” não podem conter as mesmas mensagens que gestos - se não existem “meras palvras”?
Filha: Bem, as palavras podem ser escritas.
Pai: Não, isto não resolve meu problema. Porque as palavras escritas ainda terão uma espécie de ritmo e de ênfase. O ponto é que nenhuma “mera palavra” realmente existe. Existem apenas palavras quer com gestos ou tons de voz ou algo similar. Mas, é claro, gestos sem palavras são muito comuns.
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Não existem meras palavras; toda palavra vem acompanhada de sons, intonações, gestos. Não posso ir a uma reunião intencionando não participar e permanecer imóvel e em silêncio, porque, se já me conhecem, isto seria uma participação notável. O próprio Bateson assinala que “dizer que não tem epistemologia alguma” (uma forma de entender o mundo) “é uma forma de epistemologia - e uma ruim.” As palavras faladas vêm sempre imersas em prosódia.
O termo “prosódia” se refere ao conteúdo emocional da linguagem. Como diz Rodney Brooks, “crianças humanas (e provavelmente cães domésticos), podem no mínimo detectar aprovação, proibição, chamamento de atenção e calmante através de padrões prosódicos.” (ver Frazier et al., 2006). Se olho para um cão e digo com a prosódia acolhedora de chamamento “Venha aqui, cãozinho maldito! Vou agredi-lo!” ele virá com alegria, pois entende (sente) apenas a prosódia e não as palavras. Nenhum animal entende palavras e nenhum animal pode utilizá-las. Mesmo papagaios as usam apenas como veículo de prosódia, como gestos (ver Pepperberg, 2001). Como diz Bateson: “Gestos sem palavras são muito comuns.” Animais não podem, por exemplo, dizer: não. Não podem dizer nada: podem apenas agir e fazer sons e gestos. Transcrevo abaixo um pequeno trecho de Brooks no qual ele descreve seu robot chamado Kismet, um robot especialista em prosódia.
In Brooks, Rodney (2002) Flesh and Machines. How robots will change us.
New York: Pantheon Books. (p 94)
“Kismet tem um sistema auditivo que não somente ouve que uma elocução está sendo emitida mas também busca vários marcadores prosódicos (ver prosódia abaixo) na fala das pessoas que se dirigem a ele. Universalmente através das culturas humanas as mães transmitem quatro sinais muito básicos para suas crianças muito pequenas através de padrões de timbre em suas vozes, sinais mais (importantes) que através de palavras que estão dizendo. As variações de timbre na voz de uma pessoa são conhecidas como sua prosódia. Crianças humanas podem detectar aprovação, proibição, chamamento de atenção e calmante através de padrões prosódicos. Kismet, também, pode ouvir vozes e extrair essas mensagens emocionais da fala humana. As pessoas em meu grupo de pesquisa provêm de uma variedade de lugares e nós testamos Kismet em inglês, francês, alemão, russo e indonésio.
Esses sinais prosódicos podem afetar o humor de Kismet. O humor de Kismet, o seu estado emocional, é uma combinação de três variáveis: valência, animação e postura. A valência de Kismet é uma medida de sua felicidade; sua animação é uma medida de quão estimulado ou cansado ele está; e, sua postura é quão receptível ele está a outros estímulos novos. Dependendo de seu estado emocional no momento, padrões prosódicos, ou padrões de movimento, ou qualquer outra coisa que ele possa sentir, o fará mover-se em direções diferentes dentro desse espaço emocional de três dimensões.
Em inglês, temos nomes comuns para muitos sítios (lugares) dentro desse espaço emocional. Se Kismet está muito animado mas tem postura e valência neutras, diríamos que ele está surpreso. Algo que se aproxime muito da face de Kismet o animará, e se ele começou com os três parâmetros neutros, ele se surpreenderá. No entanto, se ele já estava meio infeliz, com valência negativa, então, tal animação poderia levar a medo ou raiva, dependendo se a postura estava aberta ou fechada na ocasião.
Kismet
As emoções internas de Kismet afetam quais das suas condutas será ativada. Mas elas também se expressam em sua face e sua voz. Ele demonstra seu estado emocional pela posição de suas sobrancelhas, seus lábios e suas orelhas. Ele também coloca prosódia em sua própria voz, assim como pode ouvir prosódia na voz de outras pessoas.”
Brooks descreve uma “conversa” de vinte minutos entre Kismet e um visitante, durante a qual o robot (como é óbvio) não entendeu sequer uma das palvras ditas pelo visitante, mas sim sua prosódia, e também o manteve iludido de que entendia o que se passava por expressar sua própria prosódia rudimentar. Assim como os cães e os bebês humanos, humanos adultos são também atraídos pelos sinais prosódicos.
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Não cesso de me espantar com o fato de que nenhum dos seres vivos existe e opera, como nós humanos operamos, em um mundo de palavras e significados; ou melhor, me espanta nossa dupla existência de humanos em seu mundo de palavras, e de Homo sapiens que usam gestos e sons; e como tudo isto se funde em nossas coordenações de conduta - nosso linguajear. Espanta-me entender que os animais não participam deste mundo de palavras e que o mundo deles, que também é nosso, é o imenso mundo ao qual chamamos natural.
Há uma canção de Gilberto Gil (“Amor até o fim”) na qual o verso final, comovente, diz:
“Até que a vida em mim resolva se acabar”
como se fosse “a vida” que resolve nosso viver, ou não viver - nada menos e nada mais que isso.
E aqui está um trecho de Wendell Berry, poeta e ativista norteamericano, em seu livro “Life is a Miracle”:
“Não compreendemos como temos a nossa vida, nem porque a temos. Não sabemos o que irá ocorrer com a vida, nem a nós. A vida não é previsível. Podemos destruí-la mas não criá-la. Não podemos (sequer) controlá-la - exceto sob sérios riscos de danos graves. Pensar de outra maneira é escravizar a vida e fazer, não da humanidade, mas de alguns homens, previsivelmente ineptos, os seus mestres.”
Mesmo com a imprecisão, de afirmar que a vida “resolve”, a visão de Gilberto Gil é reverente e poderosa; uma visão que a Biologia atual, como ciência, ainda está longe de incorporar: aceitar que somos todos participantes de um enorme processo em curso, ao qual denominamos “biosfera”, um termo que ainda evoca as esferas celestiais da antiguidade, quando entendíamos menos que hoje, quando não nos resta mais nada celestial sobre as cabeças, apenas a atmosfera que insistimos em poluir com fumaça e poeira.
Feliz Ano-Novo. Leiam Gregory Bateson.
Bateson, Gregory (1972) Steps to an Ecology of Mind
New York, Ballantine books
Berry, Wendell (2000) Life is a Miracle. An essay against modern superstition.
Washington DC, Counterpoint.
Brooks, Rodney (2002) Flesh and Machines. How robots will change us.
New York: Pantheon Books. (p 94)
Frazier, L., K. Carlson,and Clifton, C.Jr (2006). "Prosodic phrasing is central to language comprehension." TRENDS in Cognitive Sciences 10(6): 244-249.
Pepperberg, I. M. (2009). Alex e eu.
Rio de Janeiro, Record.
Ontem mesmo estava me questionando sobre o dom da palavra e tudo que possa envolver. Assistí um vídeo do Pe. Fábio de Melo com o título " O bem da palavra, palavra do bem", mostrando qual a diferença em nossos relacionamentos mediante uma palavra "bem-dita" e uma "mal-dita". Associado a palavra em sí, vem a entonação (prosódia), bem explicada nesse post no Dr Nelson e ao qual nem tinha me refletido no dia de ontem. Prosódia...PROSÓDIA....interessantíssimo esse nosso mundo humano-animal!
ResponderExcluirParabéns pelo Post Nelson
Nelson: Que viagem! e quanta verdade!
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