Por Helder Nakaya, professor do Departamento de Análises Clínicas e Toxicológicas do Instituto de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo
Não quero te assustar mas o seu sistema imune
está constantemente impedindo que tumores cresçam em seu corpo.
Na verdade, isso já é sabido há um bom tempo. Uma
boa evidência disso é que alguns tipos de camundongos imunodeficientes espontaneamente desenvolvem tumores. Nosso sistema imune pode prevenir tumores de diversas
maneiras: matando agentes infecciosos que causam tumores (estima-se que cerca de 18% dos casos de câncer são atribuídos à infecções); impedindo
que um microambiente de inflamação (que pode favorecer a tumorigênese) se
estabeleça; ou especificamente identificando
e eliminando células tumorais. É sobre esta última maneira e sua
possível consequência que irei tratar neste post.
Células cancerosas às vezes expressam antígenos tumorais que podem ser simplesmente derivados de genes que
sofreram mutações. Esses antígenos permitem (ainda bem!) que células do sistema
imune reconheçam e eliminem as células tumorais. O problema é que por não serem
tão diferentes assim, essas proteínas mutadas no câncer podem gerar uma reação cruzada
com as respostas celulares e humorais da pessoa. Ou seja, um possível efeito colateral desse
processo destrutivo pode ser o desenvolvimento de doenças auto-imunes.
Existem algumas doenças raras que dão suporte a
essa hipótese. A Síndrome de Kinsbourne, por exemplo, é
caracterizada por uma ataxia (falta de coordenação) motora severa e tipicamente
aparece no segundo ano de vida de crianças. Em vários dos casos, é possível
detectar a presença de um tumor no bebê com a síndrome. O lance é que este
tumor possui antígenos “semelhantes” a células do cerebelo (parte do cérebro
que controla a coordenação motora). Então o sistema imune do bebê aprende a
lutar contra este tumor, que muitas vezes desaparece por conta disso. Só que depois,
o mesmo sistema imune acaba atacando as células saudáveis do cerebelo causando
os sintomas da doença. Um outro exemplo pode ser visto em pacientes com a
Síndrome Lambert-Eaton.
Um estudo publicado ano passado na Science aponta pela
primeira vez os possíveis mecanismos de como isso acontece. Existe uma
associação entre pacientes com esclerodermia, uma doença auto-imune que afeta o
tecido conjuntivo, que possuem auto-anticorpos específicos para determinados
genes e um risco maior de desenvolver câncer. A hipótese dos autores era que
mutações em genes no câncer poderiam levar ao aparecimento de esclerodermia. Provar
isso não é um trabalho fácil. Depois de achar pacientes que tinham tanto esclerodermia
como câncer, os autores tiveram que buscar por mutações nos genes dos tumores e
a presença de auto-anticorpos específico para esse genes. Através de análises
genéticas e muitos ensaios imunológicos, eles conseguiram mostrar que mutações
somáticas em um gene nos tumores eram capazes de iniciar uma imunidade celular
e humoral cruzada, que produziam anticorpos que afetavam o câncer e também
possuíam um papel na esclerodermia.
O impacto dessa relação entre auto-imunidade e câncer é
imenso para diversas áreas do conhecimento, além da clínica médica. Entendendo
a origem da auto-imunidade pode também levar a melhoria das terapias contra
essas doenças.
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