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sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Pré-posições


Em uma revisão do livro de Eliot Sober  “The nature of selection”, Smith (1986) escreve:
“Sober distingue entre a seleção de (alguma coisa ou fenômeno) e a seleção para. Ele ilustra esta diferença com um brinquedo com o qual uma sobrinha sua brincava. O brinquedo consiste em um cilindro de plástico transparente dividido em várias camadas horizontais contendo bolas de diversas cores:

“Cada nível horizontal do brinquedo contém buracos do mesmo tamanho. Os buracos em cada nível são maiores que os buracos no nível abaixo. As bolas também variam de tamanho. Se as bolas estão no compartimento superior, sacudir os  brinquedo colaca as bolas em seus respectivos níveis. Esta é um a máquina de selecionar. As bolas são selecionadas por seu tamanho. Mas todas as bolas de um dado tamanho são de uma dada cor. As menores bolas, e somente elas, são verdes. Então, o processo de seleção seleciona as bolas verdes porque elas são as menores.”

Embora seja correto dizer que houve seleção quer das menores bolas ou das bolas verdes, não se pode dizer que houve seleção para a cor verde. O brinquedo não seleciona as bolas de acordo com sua cor, mas sim de acordo com seu tamanho. Portanto, o conceito de “seleção para” é um conceito mais restritivo que “seleção de”. Isto ocorre porque a “seleção de” é parte dos efeitos do processo seletivo, enquanto que “seleção para” descreve suas causas.”

Diferentemente de Eliot Sober, Humberto Maturana e Jorge Mpodozis propuseram uma teoria evolutiva com base em um processo que denominam “deriva natural”. Ao contrário dos defensores do criacionismo, eles não se opõem ao conceito de “seleção natural”, nem optam entre “seleção de” e “seleção para” mas dizem que a “seleção natural” é um efeito da deriva natural, e não seu mecanismo (Maturana and Mpodozis, 2000). Alguns seres vivos resultam selecionados na deriva natural. A seleção natural não é um mecanismo, mas sim o resultado de um mecanismo que é a “deriva natural”.

Segundo eles, a adaptação do ser vivo ao meio é uma condição de existência que não pode ser perdida em nenhum instante do viver. Todos os seres vivos estão sempre adaptados e não haveria seres vivos menos e mais aptos ao viver; portanto, não haveria pressões seletivas que conduziriam à sobrevivência dos seres mais aptos.

Segundo eles, o processo reprodutivo, que gera organismos com a mesma organização, mas estruturas diferentes (parecidos mas diferentes), necessariamente gera uma filogênese na qual as diferentes linhagens são conservadas enquanto outras mudam e dão origem a outras linhagens. Esta variação e conservação se dão como resultados do viver. Os seres vivos variam continuamente como resultado de suas interações (aquilo que se passa com eles) e de sua própria dinâmica interna  (aquilo que se passa neles). O somatório desta variação faz com que alguns aspectos de seu viver (de sua estrutura e de sua conduta) sejam conservados enquanto outros aspectos mudam. Mpodozis insiste em que, desde que a variação estrutural é uma condição de existência no viver – o ser vivo morre se cessarem estas mudanças (estruturais e condutuais) – o que importa não é explicar a mudança, mas sim explicar aquilo que se conserva, e pergunta:
“Como se conserva aquilo que se conserva naquilo que muda?” (Mpodozis, 2011)

Isto afeta significativamente o pensamento na imunologia, até hoje dominada por teorias seletivas. A seleção clonal passa a ser vista como um resultado da atividade imunológica e não como seu mecanismo. A preocupação de desloca do estudo daquilo que varia (as respostas imunes específicas, a memória imunológica) para aquilo que é conservado. Mas o que é conservado na atividade imunológica?

Para notar aquilo que é conservado na atividade imunológica é necessário analisar o que se passa em conjuntos de linfócitos ou de imunoglobulinas, e não em clones isolados ou anticorpos monoclonais. É necessário analisar a interação de conjuntos de imunoglobulinas naturais, presentes no soro não fracionado de um animal normal, com misturas complexas de ligantes, como extratos de órgãos ou culturas bacterianas (Nobrega et al., 2002) , ou microarrays nos quais um braço robótico arrumou centenas de proteínas diferentes (Cohen, 2013). Quando isto é feito se constata a presença de perfis ou padrões de reatividade que são robustamente conservados (Mouthon et al., 1996).

Este é um exemplo notável “daquilo que se conserva naquilo que muda” porque o organismo substitui continuamente as populações de linfócitos ativados e, portanto, as imunoglobulinas presentes no soro normal variam continuamente. A despeito desta variação, quando analisadas em conjunto, vemos que seus padrões de reatividade são conservados. “Como se conserva aquilo que se conserva naquilo que muda?” (Mpodozis, 2011). A conservação de uma individualidade a despeito da contínua variação inerente ao viver é um dos maiores enigmas da Biologia (Buss, 1987)

Buss, L.W. The Evolution of Individuality.
            Princeton: Princeton University Press, 1987.
Cohen, I. R. "Autoantibody Repertoires, Natural Biomarkers, and System Controllers." Trends Immunol 34, no. 12 (2013): 620-625.
Maturana, H and J. Mpodozis. "The Origin of Species by Means of Natural Drift." Revista Chilena de Historia Natural 73:261-310 (2000) 73,  (2000): 261-310.
Mouthon, L., S. Lacroix-Desmazes, A. Nóbrega, C. Barreau, A. Coutinho and M. D. Kazatchkine. "The Self-Reactive Antibody Repertoire of Normal Human Serum Igm Is Acquired Early in Childhood and Remains Conserved Throughout Life." Scand J Immunol 44,  (1996): 243-251.
Mpodozis, J.M. "A Equação Fundamental Da Biologia." In Vaz , N.M., Mpodozis, J.M., Botelho, J.F. And Ramos, G.C. "Onde Está O Organismo? - Derivas E Outras Histórias Na Biologia E Na Imunologia., edited by Editora-UFSC, 25-44. Florianópolis SC Brasil: Editora UFSC, 2011.
Nobrega, A., B. Stransky, N. Nicolas and A. Coutinho. "Regeneration of Natural Antibody Repertoire after Massive Ablation of Lymphoid System: Robust Selection Mechanisms Preserve Antigen Binding Specificities." J Immunol 169, no. 6 (2002): 2971-8.
Smith, Terry L. "Biology as Allegory: A Review of Elliott Sober's the Nature of Selection'." Exp Anal Behav. 46, no. 1 (1986): 105-112.
Sober, Elliot. The Nature of Selection. Evolutionary Theory in Philosophical Focus. Cambridge, Mass: MIT Press, 1985.


Nelson Vaz <nvaz@icb.ufmg.br>

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