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segunda-feira, 6 de maio de 2013

O santo remédio




A medicina era uma necessidade na minha casa. Eu tinha amidalites frequentes. Muita tetraciclina. Xau microbiota. O desarranjo neuronal que deu nessas leseiras aqui foi fruto dessas tetraciclinas. A outra necessidade era a asma do meu irmão do meio, somos 5, ele é o terceiro. Ele tinha asma alérgica (o blog é de imunologia, afinal de contas). Moravamos numa cidade que produzia muito algodão, no agreste de Pernambuco. Sim, ele tossia, era magro feito um pirulito, e ficava roxo. Tomava umas bombinhas, umas vacinas que vinham pela Varig da Inglaterra. Não funcionava. E, no desespero, meus pais recorrriam a medicina popular. Isso porque no desespero se tenta tudo. Vejam, na casa  de Adejardo, meu amigo de infancia, um dia um irmão dele ficou doente, a mãe mandou chamar (escondido) uma benzedeira. Detalhe: o pai era médico... Mas benzedeira não fazia parte da “junta médica” que assistia meu irmão porque minha mãe achava que benzedeira tinha a ver com catimbó (acho que era uma coisa corporativista, porque o irmão dela era padre).

A doença de meu irmão me deu oportunidade de ver cara a cara a medicina popular. E a experiencia não foi muito convincente. Vi meu irmão ser submetido a alguns regimes terapeuticos pra lá de heterodoxos.

O pobre passou por umas dietas brabas tipo: banana maçã com alho em jejum.  A seguir, banha de ema com laranja (óleo de fígado de bacalhau era foie gras, comparado). Depois partiu pra água de farinha de mandioca serenada (isso segundo ele no começo do dia era terrível, no fim do dia, insuportável).

Depois, como essas terapias pouco adiantavam, o negócio comecou a escalonar... Um dia, um dos entendidos veio  com uma estória de que um espírito, um espírito batraqueo, vivia dentro do pulmão do meu irmão. Prescreveu um vomitório. Posologia: uma garrafa inteira do troço. O sujeito entrava em crise e tome garrafada. Quase matam o magrelo. 

E por fim, algo completamente surrealista... Essa Garcia Marquez ia ter que rebolar pra inventar...Um especialista mandou dar todo resto de comida que meu irmão comia prum pássaro. Confiavam que o pássaro, chamado cancão, um bicho preto retinto, que cantava metalicamente (bota heavy metalicamente nisso) cantasse away o diabo ruim que tinha sido deixado ali no subejo dele. Uma espécie de transmutação do metagenoma tronxo em música de doido, que desaparecia no ar. Um dia o cancão fugiu e foi encontrado morto embaixo da mangueira. Eu não sabia se aquilo era um prenúncio da cura, ou se era vingança do subejo...Fiquei preocupado.

Nada disso, ou tudo isso, resolveu. Na dúvida, começamos a passar 3 meses de férias em Maria Farinha, e o ar da praia, livre de algodão e outros alérgenos, dava um break na miséria do magrelo. O gajo cresceu, nadou, e a asma sumiu. Anos depois, quando estudava medicina, descobri que a asma as vezes volta. Disse pra ele. Ele me mandou comer o cancão, com tetraciclina e tudo.

Apesar de tudo, a medicina popular não matou meu irmão. Ninguém ficou seriamente doente, e meus pais estão aí lépidos e fagueiros, 89 & 84, com juízo, benzodeus. Gostaria que isso me desse esperança de um repeteco comigo, mas a comida, e o ar daqui são diferentes. Além do mais aqui tem o tal do estresse, bicho daninho, que rói mais seus fundos que qualquer oxiúrus.

Lembrei também da medicina lendo um artigo sobre Palmeira dos Índios, onde passávamos as férias de junho. Lá estava um relatório que Graciliano Ramos tinha escrito pro governador de Alagoas quando ele era prefeito de Palmeira  falando de Canafístula. Esse nome Canafístula é o nome mais incrível de cidade que eu conheço. Melhor que Helsinque. Canafístula me lembra, medicina de novo, das freiras enfermeiras holandesas que conheci la em Palmeira. Duas delas eram  assim meio grandes, lembravam aquelas vacas da raça Holstein, uns tremendos úberes, muito gentis, mas de levantar uma kombi com um braço só. Elas eram mais velhas, enfermeironas. Tinha uma mais nova, de uns olhos azuis apaixonantes. Eu devia ter uns 11 anos. Todo dia ia  ve-la. E pedia pra ela tirar minha pressão...Ela achava graça.

Deve ter sido por causa dela e por causa das enfermeiras louraças do Dr Kildare que eu quis fazer medicina. Quando entrei na escola de medicina vi que o glamour passava longe. Era tudo de ruim e muito mais. Os hospitais viviam em petição de miséria e os médicos eram um pouquinho melhores que o sujeito que prescreveu o vomitório ali em cima.  Um dia encontrei o pediatra que me deu as tetraciclinas todas. Fui falar com ele. O estrago de displasia de esmalte que ele causou na minha boca eu ainda hoje pago. Mas ele não tinha culpa. Ele não sabia. Como ainda hoje nós sabemos muito pouco  de como tratar bem as doenças (embora a gente saiba que antibiotico cura erisipela melhor que água de mandioca serenada). Não estamos botando comida pro cancão, mas ainda estamos envenenando muita gente. A medicina avançou, sem dúvida, mas o seu poder xamanico, tão bem explorado pela medicina popular, está rareando, ou pelo menos, mudando de face. Quando vou ao médico, quero também jogar fora algo ruim, e não dá. O sujeito mal me dá bom dia e o bicho ruim fica lá, entalado. 

E o pior, camarada, é que aqui em Nova Iorque - já pelejei pra encontrar - não tem cancão.

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7 comentários:

  1. To esperando a história das araucárias!

    Abraços, Pryscilla

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  2. Adoro esse estilo folclórico nordestino dos seus textos!!

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  3. Pessoal obrigado pelos comentarios. O grafite ai de cima e' de um artista pernambucano chamado Derlon. Fotografei numa parede em Olinda

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  4. Adorei, mas senti muita falta das **tarias e humor negro

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  5. Mas, a história de canção fazer bem as pessoas com asmas ainda continua por muita gente no tratamento.

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