BLOG DA SOCIEDADE
BRASILEIRA DE IMUNOLOGIA
Acompanhe-nos:

Translate

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Opostos - complementares e antagonismos no Sistema Imune

Em fisiologia, diz-se que músculos são ”antagônicos” quando exercem funções complementares. A contração balanceada e simultânea do biceps e do triceps é necessária para o tonus muscular do braço humano. Antagonismo e oposição dão lugar à complementaridade, algo diferente que surge em outro domínio: um oxímoro, uma oposição compreensível em um outro contexto (Oxímoro é um termo composto das palavras gregas oxy (afiado, esperto) e moron (grosso, estúpido) para designar expressões dúbias como “silêncio eloquente” ou “equivocadamente correto”. Na França, existe o ditado: “Quanto mais muda, mais fica a mesma coisa”.)
        Niels Bohr, o grande físico nuclear do século vinte, criou para si mesmo o brazão onde está escrito: “Contraria Sunt Complementa” - os opostos se complementam. Conta-se que Bohr exultava quando encontrava um paradoxo e dizia: “Agora podemos progredir”; o progresso consistia em abandonar os termos em conflito em favor de um outro entendimento.
O termo “biodiversidade” trás em si mesmo esta contradição dos opostos-complementares. Sugere que o viver é diverso, mas exatamente com isto, prestigia a integridade, a indivisibilidade do viver. Remova uma só linhagem de uma comunidade de seres vivos - e a comunidade se altera e pode mesmo desabar por inteiro. A biodiversidade se refere exatamente a unidade do viver.
Meu último estudante de doutorado, Archimedes Castro Junior, propôs e demonstrou experimentalmente que não há diferenças essenciais nas dinâmicas celulares das duas manifestações opostas da atividade imunológica. A memória imunológica, que condiciona respostas imunes progressivamente mais intensas a cada contato com o antígeno, e a tolerância imunológica, que inibe estas respostas, exibem dinâmicas celulares praticamente idênticas quando visualizadas em um contexto mais abrangente. Os contrários se complementam, também na imunologia.(Castro-Junior, A. B., B. C. Horta, et al. (2012). "Oral Tolerance correlates with high levels of lymphocyte activity." Cellular Immunology 280: 171-181.)
Por várias décadas, propus que as diversas formas de imunopatologia - as reações alérgicas e autoimunes, assim como formas graves de doenças infecciosas - podem ter uma explicação comum. Uma explicação que tem a ver com a perda da biodiversidade/integridade linfocitária, algo que no jargão imunológico se conhece por “expansões oligoclonais”. Todo o meu esforço durante estes anos se resume a uma afirmação banal: a atividade imunológica depende do conjunto de linfócitos, de sua diversidade/integridade, e quando este conjunto se simplifica em demasia, ele se desconjunta. Esta é a fonte da imunopatologia. Uma explicação banal, com consequências nada banais.
A diversidade clonal 
A diversidade clonal é a característica mais representativa dos linfócitos, não apenas por sua pluralidade, mas também e principalmente, pela forma como ela é gerada. Os diversos linfócitos emergem em um estado “de repouso” nos órgãos linfóides primários na total ausência de contato com os ligantes eventualmente capazes de ativá-los. Surgem sem que tenham um “alvo” definido para os “receptores” que acabaram de inventar, dos quais cada qual exibe cerca de cem mil cópias em sua membrana. Este fato é consensualmente admitido pelos imunologistas. 
A ideia foi proposta pela primeira vez por Niels Jerne, em 1955, em sua teoria seletiva, depois transformada por Burnet na teoria de seleção clonal. Seguramente, esta é a ideia mais importante da imunologia mas, como é uma ideia contra-intuitiva, ela sempre escapa aos não-especialistas e também talvez escape aos especialistas mais apressados. A formação inicial dos anticorpos precede e é independente do contato com os antígenos. Os antígenos apenas expandem ou limitam a atividade de linfócitos pré-existentes. É fundamental ter isto em mente.
Esta aparente falta de direcionamento dos linfócitos quando emergem no corpo é um oxímoro porque, longe de ser a ausência de um “norte” ou de um “oriente”, ela não significa desnorteamento ou desorientação. Siginifica o seu oposto, pois possibilita a integração de células que ostentam estas moléculas recém-inventadas na comunidade celular já existente no organismo. O “norte” ou o “oriente” ao qual os linfócitos recém-inventados se destinam, é o próprio organismo ao qual eles pertencem.
Epigênese
Esta é a ideia mais importante da imunologia exatamente porque ela se refere ao organismo, ainda que desta forma antagônica/oposta cujo sentido literal parece absurdo. Os linfócitos que não encontram seus “alvos” se desintegram por apoptose, em algumas horas ou dias, deixam de se integrar ao organismo. Mas, como nos versos de Brecht, “tudo muda/ mas o que acontece fica acontecido/ a água que pões no vinho/ não podes mais separar”. O que acontece fica acontecido e possibilita o que pode acontecer depois - um processo que se conhece como “epigênese”. A geração da diversidade linfocitária e suas consequências constituem um processo epigenético. 
A epigênese dos linfócitos se sobrepõe à genética, se desenrola como um processo somático de geração de diversidade que traz em si mesmo a busca de cada célula por um destino que é o organismo. Este direcionamento dos linfócitos é apenas parte dos processos que modificam e conservam continuamente o organismo. Um contínuo ensaio no qual o organismo arrisca sua integridade para recuperá-la pouco depois nas células que são ativadas pelo encontro de seus parceiros celulares.
A meu ver, e lamentavelmente, a imunologia atual ainda está distante de uma visão integradora com este feitio epigenético. A despeito de tarefas formidáveis, como as desempenhadas por equipes lideradas por Antonio Coutinho sobre a atividade imunológica natural, ou de Irun Cohen sobre o homúnculo imunológico, os imunologistas, em geral, ainda pensam em termos de “respostas imunes específicas” - e pensam na “tolerância” como seu inverso. Este é um grave equívoco. Nosso entendimento difere do de Coutinho e do de Cohen em vários pontos, pincipalmente na importância que atribuímos à “tolerância oral” e a ideias de Maturana (Biologia da Cognição), mas isto é de menor importância comparado a aquilo no que concordamos.
Três enigmas e uma solução banal
Em meio século de trabalho experimental em imunologia (1963-2013) encontrei três enigmas, que vou descrever muito brevemente, para mostrar que eles podem ser resolvidos por esta visão antagônica/integradora da atividade imunológica que acabo de descrever. Cronologicamente, a chamada “tolerância oral” foi o segundo enigma que encontrei em minha carreira. O primeiro enigma eu encontrei ao investigar a síntese de IgE em camundongos, e o terceiro tem a ver com padrões de reatividade em imunoglobulinas naturais. Começo pelo meio e terminarei incompleto. A solução que tenho a lhes oferecer é a integridade do organismo, meramente um esboço.
A “tolerância oral” 
A “tolerância” imunológica, meu segundo enigma, não é uma inibição da atividade imunológica, como usualmente entendida, embora realmente seja o oposto a “memória imunológica”. A tolerância é o inverso da reatividade progressiva que se imagina ocorrer, por exemplo, na vacinação anti-infecciosa, mas não significa inatividade ou inibição. Muito ao contrário, ela representa uma atividade mais sofisticada, integradora. E, como veremos, robustamente estabilizadora.
O estudo da “tolerância oral” nos permitiu atingir esta conclusão porque, ao contrário, da “tolerância natural”, que se estabelece naturalmente e encontramos já pronta no organismo, podemos desencadear  a “tolerância oral” a uma proteína purificada com data e hora marcadas; basta dá-la de comer (ou beber) ao organismo.
Atentamos para o fato de que nenhuma “tolerância” é absoluta, pois resta sempre uma reatividade residual. O organismo tolerante ainda reage ao antígeno tolerado, embora significativamente menos. Constatamos experimentalmente que esta reatividade residual é robustamente estável e não aumenta, nem diminui, mesmo frente a repetidas imunizações com o antígeno específico em adjuvantes. A “tolerância oral” cria uma “imunidade sem memória” que insiste em permanecer como está.
Esta “estabilização” da reatividade específica é um fenômeno novo na imunologia, pois não corresponde nem à “memória” imunológica (a reatividade não é progressiva, é o inverso disso, é estável), mas, ainda assim, está presente, não pode ser ignorada (não é “tolerância” no sentido de inibição). Seu sentido é a conservação, a estabilidade.(Verdolin, B. A., S. M. Ficker, et al. (2001). "Stabilization of serum antibody responses triggered by initial mucosal contact with the antigen independently of oral tolerance induction." Braz. J. Biol. Med. Res. 34(2): 211-219.) 
Consequências teóricas
Para nós, encontrar esta “estabilização levou a conclusões teóricas importantes e nos abriu uma ampla janela experimental.  Deduzimos que tal “estabilização” que demonstramos na “tolerância oral”, ocorre também na “tolerância natural”, burnetiana; que a discriminação self/nonself, afinal, é um pseudo-problema pois há auto-anticorpos e linfócitos T reativos com auto-componentes em todos os organismos sadios. Não há clones proibidos, mas estes linfócitos auto-reativos não estão envolvidos em “respostas imunes”, sua reatividade não é progressiva: está dinamicamente estabilizada - como na tolerância oral. 
Há níveis, patamares, degraus de reatividade robustamente estabilizados no organismo. As respostas imunes progressivas não são as unidades das quais se compõe a atividade imune normal: elas são a base da imunopatologia. A fisiologia da atividade imune é conservadora, é aquilo que se conserva em meio à mudança.(Vaz, N. M., G. C. Ramos, et al. (2006). "The conservative physiology of the immune system. A non-metaphoric approach to immunological activity." Clin Dev Immunol 13(2-4): 133-142.) 
Consequências experimentais
Experimentalmente, a configuração destes “estados estáveis” nos reservava uma grande surpresa: o organismo resiste a tentativas de romper esta estabilidade. Tentativas de imunizar animais tolerantes com o antígeno tolerado desencadeiam processos anti-inflamatórios potentes capazes de inibir uma ampla variedade de fenômenos imunológicos, como descrito no amplo trabalho de Cláudia Carvalho e colaboradores. 
Por exemplo, a injeção de uma pequena dose (10 µg) de ovoalbumina em animais tornados “tolerantes” pela ingestão prévia de ovoalbumina, é capaz de inibir: a) a formação de anticorpos para antígenos não relacionados; b) reações de hipersensibilidade tardia a estes antígenos: c) a formação de granulomas peri-ovulares na esquistossomose; d) reações graft-versus-host; e) a deposição de colágeno e a formação de cicatrizes em feridas incisionais e excisionais; f) a implantação de embriões no útero murino; além de inibir diretamente a inflamação desencadeada por uma injeção de carragenina (ver Curriculo Lattes de Claudia Carvalho).
Cláudia e colaboradores têm dados iniciais que mostram a mobilização de hormônios e neuropeptídeos anti-inflamatórios nas tentativas de imunizar animais tolerantes com o antígeno tolerado em adjuvantes. Mas creio que, no momento, uma apreciação da natureza deste fenômeno é mais importante do que a enumeração de seus detalhes celulares e moleculares. As tentativas de imunização tendem a desencadear expansões oligoclonais, que são aspectos da patologia do organismo e existem múltiplos mecanismos destinados a preservar a operação do organismo sem as manifestações inflamatórias que estas expansões oligoclonais desencadeiam.
A síntese de IgE
  Voltando aos anos 1970, o primeiro enigma com que me deparei está no método que inventamos para induzir uma síntese intensa e prolongada de IgE em camundongos: a injeção intermitente (a cada mês) de pequenas doses (0.1-1.0 µg) de antígenos potentes em animais geneticamente predispostos (alto-respondedores) a responder a esses antígenos. (Estes experimentos  contribuíram para a caracterização dos chamados genes-Ir ligados ao MHC, que foram importantes na caracterização do processamento e apresentação de peptídeos a linfócitos T). O enigma está em que doses mais elevadas do mesmo antígeno induzem apenas uma síntese transitória de IgE que não aumenta em imunizações subsequentes. Por que doses pequenas podem fazer o que doses mais elevadas não fazem?
A explicação que propus na época invocava células T supressoras, que hoje chamaríamos de reguladoras. Propus que tais células só seriam ativadas por doses mais elevadas de antígeno e que a imunização com baixas doses burla, por assim dizer, a regulação, e a IgE pode ser formada de forma progressiva. Hoje, acredito em outra explicação, que supõe uma associação entre a produção de IgE e expansões oligoclonais. Apenas animais alto-respondedores possuiriam os raros clones capazes de reagir às doses minúsculas de antígeno e são estes clones que entram em expansões oligoclonais. Há uma abundante coleção de observações na literatura que associa a síntese de IgE a expansões oligoclonais. Estas expansões são observadas em estados alérgicos e doenças autoimunes, formas graves de doencas infecciosas e parasitárias e em alguns estados de imunodeficiência congênita, como a síndrome de Omenn. 
Não tenho aqui o espaço para discutir esta associação entre a IgE e a oligoclonalidade. Posso apenas dizer que se trata de outro oxímoro: o processo inflamatório, em geral, tende a inibir sua própria geração; a inflamação gerada pela oligoclonalidade tende a ativar outros clones, a reduzir a própria oligoclonalidade e, portanto, interrompe a inflamação. Dentro da operação articulada do organismo, a própria inflamação inibe a inflamação. A “função” da IgE é inibir a produção da IgE. Um cículo virtuoso, como muitos outros no viver.
Padrões de reatividade em imunoglobulinas naturais
O terceiro enigma com que me deparei, estava no tema mais recente que investigamos, e já havia perdido muito de seu carácter enigmático. Que houvesse padrões de reatividade em imunoglobulinas naturais nos parecia quase obrigatório e o que nos propusemos a mostrar foi que em doenças parasitárias ocorreriam variações não aleatórias nestes padrões, que seriam característicos das “formas clínicas” destas infeccões. 
Mostramos que isso ocorre na malária humana, na leishmaniose murina e na esquistossomose mansônica em humanos e em camundongos. Em todas estas situações, mostramos, como prevíramos, a ocorrência de variações nos padrões de reatividade das IgG naturalmente formadas com extratos de Escherichia coli, portanto, manifestações não dirigidas diretamente aos antígenos parasitários. 
Assim como no caso da síntese de IgE, minha explicação pressupõe uma associação entre expansões oligoclonais e estas variações não aleatórias nos padrões de reatividade em imunoglobulinas naturais.
        Como funcionam as vacinas anti-infecciosas
Para encerrar, quero sugerir um mecanismo alternativo para a eficácia de vacinas anti-infecciosas que difere da crença tradicional.  Leigos e especialistas acreditam que a vacinação cria uma “memória” imunológica específica, que possibilita respostas imunes mais rápidas, intensas e duradouras. Eu penso diferente: penso que a “memória” imunológica talvez explique a imunopatologia, explica como adoecemos, mas não explica como nos mantemos sadios.
Qual a base da variabilidade individual na suscetibilidade a doenças infecciosas? Apoiado por muitos dados na literatura atual, creio que os indivíduos que desenvolvem os sintomas mais graves são exatamente aqueles que desenvolvem expansões oligoclonais. As vacinas podem proteger estes indivíduos porque aumentam a diversidade de suas respostas clonais, portanto, podem evitar as expansões oligoclonais. A proteção conferida pela vacinação, portanto, não depende da memória imunológica. Apesar de também presente, a memória imunológica está mais relacionada à imunopatologia que à imunoproteção. A proteção depende de um aumento da diversidade clonal, diversidade que os indivíduos naturalmente mais resistentes à infecção já possuem sem serem vacinados.
Coda
A vantagem desta explicação é propor um mecanismo “sistêmico” e epigenético para a imunopatologia e para a imunoproteção. Se a atividade imunológica é mesmo “sistêmica”, se ela depende de uma “sistema imune” entendido como um conjunto de linfócitos e produtos linfocitários, um conjunto que opera harmonicamente, integrado e produz ciclos de atividade, então, a imunopatologia, em todas as suas formas, representa um “desconjuntamento”, a perda parcial ou temporária desta harmonia e integração.  Em termos celulares, este deconjuntamento se expressa pela presença de expansões oligoclonais.
  ==

Comente com o Facebook :

3 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderExcluir
  2. Dr Nelson Vaz,

    De que forma as vacinas podem evitar as expansões oligoclonais? O senhor acredita que a expansão oligoclonal, durante uma infecção natural, também ocorra nas aves (Gallus gallus) e que as imunizações com adjuvantes de Freund podem evitá-lo e assim incrementar a capacidade da resposta imune nestes animais?

    Att, Álvaro

    "(...)Apoiado por muitos dados na literatura atual, creio que os indivíduos que desenvolvem os sintomas mais severos são exatamente aqueles que desenvolvem expansões oligoclonais. As vacinas, podem proteger estes indivíduos porque aumentam a diversidade de suas respostas clonais, portanto, podem evitar as expansões oligoclonais." (...) A proteção depende de um aumento da diversidade clonal, diversidade que os indivíduos naturalmente mais resistentes à infecção já possuem sem serem vacinados."

    ResponderExcluir
  3. Gostei bastante desse post. Já tinha lido algo aqui sobre os oxímoros e gostei do pensamento de como poderiam funcionar as vacinas anti-infecciosas, é algo a se pensar.
    Abs,
    Luísa Lemos.

    ResponderExcluir

©SBI Sociedade Brasileira de Imunologia. Desenvolvido por: