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segunda-feira, 9 de março de 2015

Entrevista imaginária com o Professor Nelson Vaz

M – Professor Vaz, o senhor diz que todo o ensino da imunologia deveria mudar? Mudar toda a maneira de ver a imunologia? A imunologia está errada?
V – São várias perguntas numa só, vários problemas. A “imunologia inteira” não “está errada” e não poderia mudar de repente, pois é uma empreitada gigantesca e serve como pilar importante da medicina ocidental. Mas, uma coisa é o entendimento da imunologia, outra muito diferente é sua utilização em procedimentos clínicos e laboratoriais. O entendimento, creio eu, deveria mudar radicalmente e, portanto, a maneira de ensina-la.
M – E a maneira de utiliza-la não mudaria?
V – Mudaria muito mais lentamente. Algumas práticas já são inovadoras, como os métodos de análise “global” de imunoglobulinas; logo, métodos semelhantes estarão analisando linfócitos T.
M – Que métodos são esses, Professor?
V – São métodos que buscam evidenciar “padrões” de atividade. Olham para as imunoglobulinas “em bloco” e buscam padrões de reatividade, em vez de procurar respostas imunes específicas. O matemático tornado imunologista Alberto Nóbrega (UFRJ) fez um trabalho pioneiro nesta direção quando estava no laboratório de Antonio Coutinho, em Paris, nos anos 1990. Criou um immunoblot modificado (Panamá-blot) que pode mostrar estes “padrões”. A ideia geral foi muito expandida por Irun Cohen, em Israel, que usa um micro-array de proteínas; um braço robótico arruma centenas de proteínas em uma lamínula...
M – Estes métodos buscam evidenciar o “jeitão” das imunoglobulinas? Isto é que seria um padrão?
V – Talvez evidenciar o “jeitão” do organismo através das imunoglobulinas. A maneira do organismo inteiro operar.
M – Esta é uma forma nova de utilizar a imunologia?
V – Certamente.
M – Mas por que esta outra forma de ver deveria mudar todo o ensino da imunologia?
V – Porque não se trata mais de analisar estímulos antigênicos e respostas imunes específicas, nem a “regulação” destas respostas imunes, como está na moda agora. A imunologia está presa na análise de estímulos e respostas desde que foi criada. Esta forma de ver é obsoleta.
M – O que há de mal nesta forma de ver, Professor?
V – Desaparece o organismo. O organismo passa a ser o hífen entre o estímulo e a resposta. Passa a ser meramente o lugar ou a dimensão em que as respostas se dão; um lugar a ser defendido e não um lugar a ser entendido. Na ausência de estímulos antigênicos, cessaria a atividade imunológica.
M – E não cessa, Professor? Não desaparecem as respostas imunes se não há antígenos?
V – A atividade imunológica é uma parte, um aspecto, da construção e manutenção do organismo vertebrado. Esta atividade, ou melhor, aspectos importantes desta atividade, como a formação das IgM, prosseguem inalterados em animais mantidos desde o nascimento em bolhas estéreis e alimentados com dietas artificiais, sem macromoléculas; animais “antigen-free”.
M – E essas IgM reagem com quê, Professor?
V – Reagem com tudo, com componentes do organismo, reagem inclusive umas com as outras. São exatamente como as IgM de organismos mantidos nas condições usuais. O “repertório”, o conjunto das IgM de animais livres do contato com antígenos é equivalente ao de animais “normais”.
M – Mas como podem surgir anticorpos para antígenos que o organismo nunca viu?
V – Todas as imunoglobulinas surgem assim, não apenas as IgM. No ambiente intracelular em que surgem as imunoglobulinas não há “antígenos” que estejam no comando de sua formação. Os imunologistas “sabem” disso desde os anos 1950. Os antígenos não são moldes ou fôrmas para a produção de anticorpos.
M – Como podem surgir, então, os anticorpos?
V – Não são anticorpos, que surgem: são imunoglobulinas. Todos os anticorpos são imunoglobulinas, mas nenhuma imunoglobulina é um “anticorpo” antes que caracterizemos sua reação com um dado antígeno.
M – Não entendi, Professor.
V – Digo que o organismo forma imunoglobulinas, não anticorpos. “Anticorpos” são imunoglobulinas nas quais nós, os imunologistas, as pessoas nos laboratórios, “colaram” rótulos funcionais que apontam com quais moléculas elas podem reagir.
M – Mas não é o organismo quem decide isso?
V – Não. O organismo não “decide” nada. Não há um “fantasma” dentro do organismo que decide para quais moléculas devem ser formados os anticorpos, um fantasma que separe o que  é “próprio” ao organismo do que lhe é “estranho” (ver bibliografia). A atividade imunológica não é um “estranhamento”, é parte da construção do organismo, tem a ver com o que se passa no organismo e não com o que se passa com o organismo.
M – Ainda não entendi, Professor.
V – O que se passa no organismo, seus processos de (auto-)construção/manutenção, isso que Maturana chama de autopoiese, é influenciado pelas interações do organismo com o meio em que ele vive, mas não é determinado, guiado, orientado pelo que acontece. Isto roubaria toda a autonomia ao organismo. O organismo não obedece ao meio, Quem determina, guia, orienta o que se passa no organismo é o próprio organismo.
M – Inclusive os anticorpos que são formados?
V – Inclusive as imunoglobulinas que são surgem e que podemos tratar como se fossem anticorpos.
M – E não são anticorpos?
V – Sim, são, passam a ser quando nós decidimos assim em nossas observações.
M – Então, de certa forma, somos nós que criamos os anticorpos?
V – De certa forma, sim.
M – Professor, mas os anticorpos já não “estão lá”? Não existem objetivamente antes de nossa observação?
V – Depende de nossa maneira de ver.
M – Mas, como Professor? A realidade objetiva, tudo isso que nos cerca – inclusive os anticorpos – não estava tudo aí antes de a observarmos? E não vai continuar aí depois de nossa observação?
V – Depende de nossa maneira de ver. Creio que as observações na imunologia são um bom exemplo desta relatividade. As imunoglobulinas são moléculas formadas sem um “alvo” definido, as moléculas com as quais elas eventualmente reagirão não participam de sua formação. Isto foi demonstrado objetivamente, de várias maneiras.
M – Quer dizer que há dois entendimentos da imunologia: um que se preocupa com a formação das imunoglobulinas -  a atividade imunológica, como o senhor diz – e outro diferente que é, por exemplo, a utilização das imunoglobulinas como reagentes bioquímicos específicos.
V – Exatamente.
M – Mas os anticorpos são ou não são reagentes bioquímicos específicos?
V – São e não são. Esta é a mesma pergunta. São reagentes bioquímicos específicos quando os utilizamos assim. Mas o organismo não forma anticorpos, forma imunoglobulinas que não têm alvos definidos e, nesta condição, elas não são reagentes bioquímicos específicos.
M – Por essas e outras o ensino da imunologia precisaria mudar?
V – Creio que sim.

Bibliografia de apoio
Cohen, I. R. (2013). Autoantibody repertoires, natural biomarkers, and system controllers. Trends Immunol, 34(12), 620-625. doi: 10.1016/j.it.2013.05.003
 Haury, M., Sundblad, A., Grandien, A., Barreau, C., Coutinho, A., & Nobrega, A. (1997). The repertoire of serum IgM in normal mice is largely independent of external antigenic contact. Eur J Immunol, 27(6), 1557-1563.
Maturana, H. (2002)*. Autopoiesis, structural coupling and cognition: a history of these and other notions in the biology of cognition. Cybernetics & Human Knowing, 9(3-4), 5-34.
Nobrega, A., Stransky, B., Nicolas, N., & Coutinho, A. (2002). Regeneration of natural antibody repertoire after massive ablation of lymphoid system: robust selection mechanisms preserve antigen binding specificities. J Immunol, 169(6), 2971-2978.
Vaz, N. M. (2011)*. The specificity of immunological observations. Constructivist Foundations, 6(3), 334-351.
Vaz, N. (2015) “O fantasma na máquina imunológica”  http://www.nelsonvazimunologia.blogspot.com.br/search/label/V%C3%ADdeos

* pdfs em português disponíveis por requisição a <nvaz@icb.ufmg.br>

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