À medida que a tecnologia se integra ao nosso cotidiano, tanto no
trabalho quanto nas horas de lazer, surgem novas questões e dúvidas quanto ao
impacto destas mídias sobre nossa saúde e, sobretudo, o desenvolvimento de
nossas crianças. Este tema tem gerado um debate recorrente, seja em relação ao
tempo dedicado a televisão, ao uso de jogos eletrônicos, o acesso à internet, às
redes sociais ou a dependência dos nossos “gadgets” (smartphones, tablets,
etc).
Um das polêmicas mais “recentes” envolve as declarações da terapeuta
ocupacional pediátrica Cris Rowan, que listou 10 razões pelas quais aparelhos
móveis devem ser completamente proibidos para menores de 12 anos. Ela também
sugere proibir o acesso a jogos eletrônicos até a mesma idade. Estas ideias
foram publicadas pela autora em um site de notícias canadenses em 2014,
republicadas em forma traduzida em alguns outros blogs e recentemente
compartilhadas nas redes sociais.
Iniciando pela minha conclusão, eu discordo completamente que
celulares, tablets, computadores e games devam ser banidos para menores de 12
anos. Na verdade, acredito que tal atitude traria sérias consequências
negativas para o desenvolvimento e engajamento deste indivíduo na vida social e
profissional. Viver em uma comunidade isolada pode até ser defendido como uma
forma mais saudável de vida (questionável!), mas certamente deixar seu filho
viver até os 12 anos sem manipular a tecnologia lhe trará mais problemas do que
benefícios se a intenção é reintroduzi-lo na sociedade urbana após este
período.
A tecnologia faz parte da nossa sociedade e este é um caminho sem
volta. A colocação no mercado de trabalho, nas mais diversas áreas, vai
depender cada vez mais da compreensão/uso de dispositivos eletrônicos, de modo que a
exposição das crianças a estas diferentes mídias se torna uma parte central de
seu aprendizado. Uma posição semelhante foi defendida por Daniel Leuck no blog
TechHui, o qual também salientou o efeito positivo dos jogos
desenvolvidos por profissionais da educação, sobre o aprendizado das crianças. Existem
também bons exemplos da introdução de conteúdos de programação e robótica em
escolas públicas (1, 2). A maior exposição a informação já está tendo impacto
sobre as nossas crianças, que estão fazendo relações mais complexas e
expressando opinião sobre temas mais globais. Uma argumentação neste sentido é
apresentada pelo biólogo e divulgador de ciências Atila Iamarino, no vídeo Nerdologia 54 (6 min).
Apesar das referências citadas no texto de Cris Rowan, me parece que esta não é uma resolução dos órgãos reguladores ou um consenso da academia, mas na verdade uma conclusão da própria autora. Talvez no intuito de transmitir uma mensagem curta e impactante, que proporcionasse o debate. Talvez no simples desejo de defender uma crença pessoal. Infelizmente eu não consegui encontrar nenhum artigo científico da autora sobre este tema, publicado em uma revista indexada e submetido ao processo de revisão pelos pares. Também não consegui confirmar muitas das referências citadas, especialmente sobre as associações entre tecnologia e demência ou atraso de desenvolvimento cognitivo. Se alguém encontrou estas referências, peço que me encaminhe. O texto se baseia, sobretudo, em resoluções de comunidades de pediatria, mas o conteúdo original das publicações não suporta exatamente a conclusão da autora.
A Academia Americana de Pediatria de fato lançou uma nota alertando os pais para regularem o consumo que seus filhos fazem das
diferentes “mídias”, salientando que o uso em excesso pode levar a problemas de
atenção, dificuldades na escola, comprometimentos no sono e na dieta,
obesidade, além de fornecerem uma plataforma (internet) para atividades
ilícitas e perigosas. Eles recomendam que televisão e outras mídias sejam
evitadas para crianças menores que 2 anos, que se evite TVs e computadores no
quarto das crianças e que estes sejam desligados durante o jantar.
A Sociedade Canadense de Pediatria também emitiu orientações sobre o
uso de equipamentos eletrônicos, incluindo uma tabela de horários bastante
restritiva. Eles sugerem que crianças de 5-11 anos e jovens de 12-17 anos
minimizem o tempo de “tela” para não mais do que 2 horas ao dia. Mas observe o
seguinte, a preocupação deste texto não era o “efeito danoso” da tecnologia
sobre o desenvolvimento do cérebro ou algo semelhante. O foco era o
sedentarismo!! Sem dúvida o sedentarismo é um problema grave na sociedade
contemporânea, podendo levar a obesidade, diabetes, além de problemas
psicológicos e sociais em decorrência do sobrepeso (especialmente para
adolescestes).
A terapeuta ocupacional Cris Rowan também foi recentemente
entrevistada no documentário “Are We Digital Dummies”, no qual ela salienta que as famílias passam menos tempo
interagindo entre si, do que interagindo com a “tecnologia”. Considero este um
ponto válido, uma vez que a construção das relações sociais na família é
importante para o desenvolvimento do indivíduo e as famílias precisam encontrar
momentos para conversar, interagir, brincar, etc. Este é o motivo de a
normativa americana sugerir que a TV esteja desligada durante o jantar, pois
este é usualmente o momento do dia em que a família norte-americana se reúne. O
documentário citado neste parágrafo também foca em outro ponto extremamente
importante, a nossa incapacidade de realizar múltiplas tarefas. Apesar de nossa
impressão de que podemos escrever um sms ouvir música e dirigir ao mesmo tempo,
o documentário defende que na verdade nosso cérebro está apenas alternando
rapidamente entre as tarefas. Isso faz com que ao prestar atenção no sms nossa
percepção das outras atividades seja reduzida drasticamente, o que pode ter
consequências fatais no trânsito. Precisamos nos educar e educar nossos filhos
para sabermos resistir ao desejo de nos mantermos no celular mesmo em momentos
inapropriados e perigosos. E esta não é uma tarefa fácil, conforme discutido em
uma ótima entrevista de Diane Rehm com Matt Richtel, repórter de tecnologia que
recebeu o prêmio Pulitzer em 2010 por seu trabalho sobre os riscos de usar o
celular ao volante.
No entanto, conforme conclusão apresentada no próprio documentário “Are We Digital Dummies”, não existirá
“retorno” neste processo de inclusão digital e a tecnologia é na verdade apenas
uma ferramenta. Somos nós que definimos o uso que fazemos desta ferramenta e
quais as consequências positivas e negativas que este uso terá sobre nossa
saúde. Especialmente no que tange a preocupação de que estamos nos tornando
mais “burros” ou mais “superficiais”, este é um dos pontos em que a tecnologia
tem o poder de fazer justamente o oposto. Permite-nos responder curiosidades
instantaneamente (dependendo da complexidade do tema, claro), ler sobre os mais
diversos assuntos, visitar museus, cidades, outros universos, etc. O interesse
em buscar esta informação, no entanto, ainda precisa partir do indivíduo. Este
ponto também é discutido de maneira resumida e abrangente no Nerdologia 54.
Existe mais informação disponível, mas também existe muito conteúdo
gerado pelo próprio autor (como este que vos “fala” ou o blog que gerou a
polêmica), muitas vezes sem embasamento científico ou com um forte viés pessoal
ou dogmático, de modo que uma pesquisa superficial pode muitas vezes trazer
conclusões equivocadas. Isso pode ser verdade mesmo quando o texto foi escrito
por uma suposta autoridade no assunto. O conteúdo deste parágrafo foi inspirado
na leitura das páginas introdutórias do livro Mind Change, de Susan Greenfield, outra enfática defensora dos
efeitos danosos da tecnologia. A autora será a entrevistada de Diane Rehm hoje (16/02/2015) e o site do programa permite a leitura de algumas páginas do
livro. Ironicamente, a própria autora é alvo de uma polêmica
sobre a divulgação de dados “científicos”, conforme apresentado em uma
reportagem do The Guardian. Apesar de ser uma cientista, a autora
iniciou uma campanha pública ressaltando supostos efeitos danosos da
“tecnologia”, sem ter publicado nenhum artigo sobre o tema. A mesma autora já
alegou que jogos de computador causam demência em crianças e que existia uma
relação entre uso de internet e autismo. Novamente, alegações impactantes, mas
sem embasamento experimental, conforme discutido por Ben Goldacre. Qualquer um pode expressar sua opinião em um blog ou em um livro e o
texto pode ser interessante para diversos leitores, mas é importante que o
leitor tenha em mente que a opinião do autor não é uma fonte tão confiável
quanto uma série de artigos publicados em revistas científicas e extensamente
avaliado e discutido pelos pares. Infelizmente, opiniões equivocadas de
supostos especialistas podem desencadear retrocessos na sociedade, como o atual
surto de sarampo nos Estados Unidos (saiba mais sobre a vacina).
Voltando às 10 razões para abolir o acesso a dispositivos móveis e
qualquer tipo de vídeo-game para menores de 12 anos, podemos excluir a maioria
delas simplesmente evitando excessos, estimulando a prática de atividades
físicas e garantindo um ciclo regular de sono. A autora também inclui a
controversa associação entre games e violência como um de seus argumentos, mas
este tema envolve exposição a violência de maneira geral e não existe conclusão
sobre o impacto específico dos games. O biólogo Atila Iamarino faz uma revisão
bem humorada das pesquisas nesta área no Nerdologia 23.
Finalmente, existe a questão do efeito da exposição às radiações não-ionizantes dos aparelhos sem fio. Ainda existe um debate sobre o
tema, sobretudo com relação à variabilidade entre os grupos de estudo e algumas
limitações metodológicas (conforme excelente comentário de Elwood JM). No entanto, o conjunto de dados até agora não
suporta a hipótese de que o uso de telefones móveis afeta a ocorrência de
tumores intracranianos (Lagorio S & Röösli M., 2014, Vijayalaxmi & Prihoda, 2014). Um novo estudo multinacional
está sendo planejado para avaliar especificamente o efeito sobre crianças e
adolescentes (MOBI-Kids), mas ainda teremos que aguardar um bom tempo para conhecer estes resultados.
Portanto, sabemos que a tecnologia afeta nossas vidas e que precisamos
nos policiar para não ficarmos patologicamente dependentes dela. Também sabemos que
sedentarismo e privação de sono podem trazer sérios prejuízos à saúde. Por outro lado,
após esta breve revisão do tema, não acredito que os pais precisem se preocupar
em demasia com o uso de aparelhos móveis ou o acesso a vídeo-games. Como em
quase tudo na vida, evitar exageros continua sendo um ótimo conselho.
Post de Dinler Amaral Antunes
Complimentary Postdoctoral Research Associate at the Kavraki Lab.
Department of Computer Science - Rice University (Houston, TX).
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