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segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Minha opinião sobre o acesso de crianças à tecnologia

À medida que a tecnologia se integra ao nosso cotidiano, tanto no trabalho quanto nas horas de lazer, surgem novas questões e dúvidas quanto ao impacto destas mídias sobre nossa saúde e, sobretudo, o desenvolvimento de nossas crianças. Este tema tem gerado um debate recorrente, seja em relação ao tempo dedicado a televisão, ao uso de jogos eletrônicos, o acesso à internet, às redes sociais ou a dependência dos nossos “gadgets” (smartphones, tablets, etc).

Um das polêmicas mais “recentes” envolve as declarações da terapeuta ocupacional pediátrica Cris Rowan, que listou 10 razões pelas quais aparelhos móveis devem ser completamente proibidos para menores de 12 anos. Ela também sugere proibir o acesso a jogos eletrônicos até a mesma idade. Estas ideias foram publicadas pela autora em um site de notícias canadenses em 2014, republicadas em forma traduzida em alguns outros blogs e recentemente compartilhadas nas redes sociais.

Iniciando pela minha conclusão, eu discordo completamente que celulares, tablets, computadores e games devam ser banidos para menores de 12 anos. Na verdade, acredito que tal atitude traria sérias consequências negativas para o desenvolvimento e engajamento deste indivíduo na vida social e profissional. Viver em uma comunidade isolada pode até ser defendido como uma forma mais saudável de vida (questionável!), mas certamente deixar seu filho viver até os 12 anos sem manipular a tecnologia lhe trará mais problemas do que benefícios se a intenção é reintroduzi-lo na sociedade urbana após este período.

A tecnologia faz parte da nossa sociedade e este é um caminho sem volta. A colocação no mercado de trabalho, nas mais diversas áreas, vai depender cada vez mais da compreensão/uso de dispositivos eletrônicos, de modo que a exposição das crianças a estas diferentes mídias se torna uma parte central de seu aprendizado. Uma posição semelhante foi defendida por Daniel Leuck no blog TechHui, o qual também salientou o efeito positivo dos jogos desenvolvidos por profissionais da educação, sobre o aprendizado das crianças. Existem também bons exemplos da introdução de conteúdos de programação e robótica em escolas públicas (1, 2). A maior exposição a informação já está tendo impacto sobre as nossas crianças, que estão fazendo relações mais complexas e expressando opinião sobre temas mais globais. Uma argumentação neste sentido é apresentada pelo biólogo e divulgador de ciências Atila Iamarino, no vídeo Nerdologia 54 (6 min).

Apesar das referências citadas no texto de Cris Rowan, me parece que esta não é uma resolução dos órgãos reguladores ou um consenso da academia, mas na verdade uma conclusão da própria autora. Talvez no intuito de transmitir uma mensagem curta e impactante, que proporcionasse o debate. Talvez no simples desejo de defender uma crença pessoal. Infelizmente eu não consegui encontrar nenhum artigo científico da autora sobre este tema, publicado em uma revista indexada e submetido ao processo de revisão pelos pares. Também não consegui confirmar muitas das referências citadas, especialmente sobre as associações entre tecnologia e demência ou atraso de desenvolvimento cognitivo. Se alguém encontrou estas referências, peço que me encaminhe. O texto se baseia, sobretudo, em resoluções de comunidades de pediatria, mas o conteúdo original das publicações não suporta exatamente a conclusão da autora.

A Academia Americana de Pediatria de fato lançou uma nota alertando os pais para regularem o consumo que seus filhos fazem das diferentes “mídias”, salientando que o uso em excesso pode levar a problemas de atenção, dificuldades na escola, comprometimentos no sono e na dieta, obesidade, além de fornecerem uma plataforma (internet) para atividades ilícitas e perigosas. Eles recomendam que televisão e outras mídias sejam evitadas para crianças menores que 2 anos, que se evite TVs e computadores no quarto das crianças e que estes sejam desligados durante o jantar.

A Sociedade Canadense de Pediatria também emitiu orientações sobre o uso de equipamentos eletrônicos, incluindo uma tabela de horários bastante restritiva. Eles sugerem que crianças de 5-11 anos e jovens de 12-17 anos minimizem o tempo de “tela” para não mais do que 2 horas ao dia. Mas observe o seguinte, a preocupação deste texto não era o “efeito danoso” da tecnologia sobre o desenvolvimento do cérebro ou algo semelhante. O foco era o sedentarismo!! Sem dúvida o sedentarismo é um problema grave na sociedade contemporânea, podendo levar a obesidade, diabetes, além de problemas psicológicos e sociais em decorrência do sobrepeso (especialmente para adolescestes).

A terapeuta ocupacional Cris Rowan também foi recentemente entrevistada no documentário “Are We Digital Dummies”, no qual ela salienta que as famílias passam menos tempo interagindo entre si, do que interagindo com a “tecnologia”. Considero este um ponto válido, uma vez que a construção das relações sociais na família é importante para o desenvolvimento do indivíduo e as famílias precisam encontrar momentos para conversar, interagir, brincar, etc. Este é o motivo de a normativa americana sugerir que a TV esteja desligada durante o jantar, pois este é usualmente o momento do dia em que a família norte-americana se reúne. O documentário citado neste parágrafo também foca em outro ponto extremamente importante, a nossa incapacidade de realizar múltiplas tarefas. Apesar de nossa impressão de que podemos escrever um sms ouvir música e dirigir ao mesmo tempo, o documentário defende que na verdade nosso cérebro está apenas alternando rapidamente entre as tarefas. Isso faz com que ao prestar atenção no sms nossa percepção das outras atividades seja reduzida drasticamente, o que pode ter consequências fatais no trânsito. Precisamos nos educar e educar nossos filhos para sabermos resistir ao desejo de nos mantermos no celular mesmo em momentos inapropriados e perigosos. E esta não é uma tarefa fácil, conforme discutido em uma ótima entrevista de Diane Rehm com Matt Richtel, repórter de tecnologia que recebeu o prêmio Pulitzer em 2010 por seu trabalho sobre os riscos de usar o celular ao volante.

No entanto, conforme conclusão apresentada no próprio documentário “Are We Digital Dummies”, não existirá “retorno” neste processo de inclusão digital e a tecnologia é na verdade apenas uma ferramenta. Somos nós que definimos o uso que fazemos desta ferramenta e quais as consequências positivas e negativas que este uso terá sobre nossa saúde. Especialmente no que tange a preocupação de que estamos nos tornando mais “burros” ou mais “superficiais”, este é um dos pontos em que a tecnologia tem o poder de fazer justamente o oposto. Permite-nos responder curiosidades instantaneamente (dependendo da complexidade do tema, claro), ler sobre os mais diversos assuntos, visitar museus, cidades, outros universos, etc. O interesse em buscar esta informação, no entanto, ainda precisa partir do indivíduo. Este ponto também é discutido de maneira resumida e abrangente no Nerdologia 54.

Existe mais informação disponível, mas também existe muito conteúdo gerado pelo próprio autor (como este que vos “fala” ou o blog que gerou a polêmica), muitas vezes sem embasamento científico ou com um forte viés pessoal ou dogmático, de modo que uma pesquisa superficial pode muitas vezes trazer conclusões equivocadas. Isso pode ser verdade mesmo quando o texto foi escrito por uma suposta autoridade no assunto. O conteúdo deste parágrafo foi inspirado na leitura das páginas introdutórias do livro Mind Change, de Susan Greenfield, outra enfática defensora dos efeitos danosos da tecnologia. A autora será a entrevistada de Diane Rehm hoje (16/02/2015) e o site do programa permite a leitura de algumas páginas do livro. Ironicamente, a própria autora é alvo de uma polêmica sobre a divulgação de dados “científicos”, conforme apresentado em uma reportagem do The Guardian. Apesar de ser uma cientista, a autora iniciou uma campanha pública ressaltando supostos efeitos danosos da “tecnologia”, sem ter publicado nenhum artigo sobre o tema. A mesma autora já alegou que jogos de computador causam demência em crianças e que existia uma relação entre uso de internet e autismo. Novamente, alegações impactantes, mas sem embasamento experimental, conforme discutido por Ben Goldacre. Qualquer um pode expressar sua opinião em um blog ou em um livro e o texto pode ser interessante para diversos leitores, mas é importante que o leitor tenha em mente que a opinião do autor não é uma fonte tão confiável quanto uma série de artigos publicados em revistas científicas e extensamente avaliado e discutido pelos pares. Infelizmente, opiniões equivocadas de supostos especialistas podem desencadear retrocessos na sociedade, como o atual surto de sarampo nos Estados Unidos (saiba mais sobre a vacina). 

Voltando às 10 razões para abolir o acesso a dispositivos móveis e qualquer tipo de vídeo-game para menores de 12 anos, podemos excluir a maioria delas simplesmente evitando excessos, estimulando a prática de atividades físicas e garantindo um ciclo regular de sono. A autora também inclui a controversa associação entre games e violência como um de seus argumentos, mas este tema envolve exposição a violência de maneira geral e não existe conclusão sobre o impacto específico dos games. O biólogo Atila Iamarino faz uma revisão bem humorada das pesquisas nesta área no Nerdologia 23.
 
Finalmente, existe a questão do efeito da exposição às radiações não-ionizantes dos aparelhos sem fio. Ainda existe um debate sobre o tema, sobretudo com relação à variabilidade entre os grupos de estudo e algumas limitações metodológicas (conforme excelente comentário de Elwood JM). No entanto, o conjunto de dados até agora não suporta a hipótese de que o uso de telefones móveis afeta a ocorrência de tumores intracranianos (Lagorio S & Röösli M., 2014, Vijayalaxmi & Prihoda, 2014). Um novo estudo multinacional está sendo planejado para avaliar especificamente o efeito sobre crianças e adolescentes (MOBI-Kids), mas ainda teremos que aguardar um bom tempo para conhecer estes resultados.

Portanto, sabemos que a tecnologia afeta nossas vidas e que precisamos nos policiar para não ficarmos patologicamente dependentes dela. Também sabemos que sedentarismo e privação de sono podem trazer sérios prejuízos à saúde. Por outro lado, após esta breve revisão do tema, não acredito que os pais precisem se preocupar em demasia com o uso de aparelhos móveis ou o acesso a vídeo-games. Como em quase tudo na vida, evitar exageros continua sendo um ótimo conselho.

Post de Dinler Amaral Antunes
Complimentary Postdoctoral Research Associate at the Kavraki Lab.
Department of Computer Science - Rice University (Houston, TX). 

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