Passei este fim de semana escrevendo um paper e editando outro. Escrever pra mim não é facil. Principalmente em ingles. Principalmente em ingles cientifico. Isso apesar de viver aqui nos EUA há 30 anos. Ainda sofro. Fico procurando a palavra exata, fico tratando de fazer com que o texto seja preciso e honesto, e que soe bem ao ler em voz alta. E que não seja dificil e cheio de jargão.
Vamos começar de vez este post. Escrever é dificil por causa da lingua mae, por minhas deficiencias, pelas exigencias do escrever cientifico. E para complicar por politicas editoriais, que exigem e interferem.
A primeira dificuldade é a seguinte: paper tem de ser feito de um jeito. Feito bula, feito receita de bolo, feito missa. A segunda é que nunca ninguém te ensinou a fazer, e mesmo que tenha ensinado, as exigencias de estilo mudam. Por exemplo, papers ja não descrevem resultados, não são mais relatos de experimentos. São “estórias”. Isso em si não é problema, narrativa é bom, e eu gosto. O problema é que criou-se a demanda jornalística. A síndrome do homem que morde o cão. Pra sair no jornal. E como existe uma pressão muito grande pela novidade, existe muita distorção logo de saída.
Notem na Introdução de muitos papers. Notem que pra passar no crivo dos editores e ir pra revisão, tem muita gente carregando a mão. Muitos papers que lemos começam com: olha, não se sabe nada desse assunto e eu vou mostrar pela primeira, primeiríssima vez, como as coisas funcionam. Lorota grande. Em muitos casos o sujeito não faz o dever de casa, pior, omite descaradamente o que já foi publicado.
Depois da lorota se passa pras chatices de praxe. A escrita não ajuda. Ja me senti 3 vezes burro ao ter que ler 5 vezes a mesma frase pra entender. Ninguém quer escrever simples. Quanto mais rebuscado, complicado, melhor. Os autores não descrevem os resultados direito, complicam, mistificam, fazem as figuras mais tronxas, e as estatisticas mais mentirosas (n=3 tem de dar na canela). E tome surpreendentemente, inesperadamente, e em grande contraste. Exagero e enganação é praxe.
E aí vem a famosa discussão, local onde a lorota da frente encontra a lorota de trás. Rapaz, o que existe de desmantelo aí não é brinquedo. Tanto que a recomendação é: só leia a discussão depois de ler as figuras. Digo ler, porque figura tambem se escreve, não? Os resultados só prestam se a figura for boa. Muita discussão está baseada em resultados que não existem. E isso, como os outros vícios aí de cima, a gente deve evitar.
Seria interessante que os papers viessem com o "making of". Acho que seriam mais interessantes que os papers em si. Neles veríamos coisas do tipo: o experimento era outro mas descobrimos algo totalmente diferente no meio do caminho e acabamos fazendo algo muito mais interessante. Falaríamos mais do acaso, dessa forca suprema da descoberta. Comentaríamos erros de interpretação, de execução, que muitas vezes apontam novas direcoes. E teríamos a oportunidade de dar credito real as pessoas e as fontes de inspiração (dizem por aí que muita gente se inspira nos papers ou nas grants que revisa pra escrever seus proprios papers e ate publicá-los antes das fontes).
Mas a dificuldade na escrita não para na hora que voce manda o paper pro jornal. Continua. Vamos supor que o paper passou. O editor engoliu a lorota da novidade e o paper agora está na mão de tres ou quatro famigerados que vão cair o pau no dito cujo, ou aplicar a lei do pros amigos tudo, pros inimigos o mecanismo. Ou criar o experimento impossível só pra te encher a divina. Pra te forçar a escrever cartas longuíssimas. Uma vez escrevi uma carta de 21 páginas. Aliás, isso e’ um negócio que sei fazer hoje em dia. Reconheço que ainda não sei escrever paper direito, mas declaro que sou craque em escrever carta pro editor e pros nossos “amigos” revisores. Sou muito gentil e educado. Procuro ser claro e direto, faço muitos, senão todos os experimentos solicitados. Não dou razão pra que me rejeitem. Dizem que uma vez passado o editor voce tem 60% de chance de ter o paper publicado.
Um comentário aqui de banda. Esse número (o de aceite passado o editor) é uma tentação que força muita gente a relaxar, inventar, ser menos criterioso. Sou capaz de apostar que a grande maioria das fraudes em ciencia acontece nessa fase.
E a praga dos resultados suplementares? Não há quem aguente. Já é um martírio ler um paper com quinhentas figuras, cada uma menor que a outra. O sujeito amontoa resultado em cima de resultado. Vira enchente, vira uma chatice insuportavel. Os papers das revistas importantes estão obesos. Sim senhor, tem resultado demais, tem lorota demais. Principalmente na discussão. Mas nem tudo é ruim. Por exemplo, hoje ja existe a preocupação em fazer a mensagem mais accessível. Estão aí os sumários visuais em revistas como Cell ou Cancer Cell.
Depois de tanto desmantelo: tem jeito? É possível escrever bem, ser claro, honesto? Claro que sim. É dificil, mas é possível. Ja li em algum lugar (e acredito) que pra escrever bem a gente tem que ler muito. Isso vale pra quem escreve poesia, prosa, e paper. Leia, leia muito. Mesmo sendo dificil. Sem informação não se escreve bem. Preste atenção na narrativa. Vá pro cinema. Leia. Mas não acredite em tudo. Mesmo que esteja bem escrito, seja novedoso, e saia na revista acetinada. Não acredite mesmo. No máximo bote uma fezinha. Uma vez acreditei numa estória e passei dois meses tentando reproduzir os resultados. Dois meses. Tinha saido na Cell. Tava errado. Não deixe de tomar o seu Desconfiol. E escreva, e re-escreva, e leia alto pra ver se faz sentido. E tendo, acredite no seu taco. E mande bala.
PS. Este texto aqui tava na gaveta prum dia que amanhecesse sem assunto. Nesse meio tempo andei trabalhando nisso aqui.
Plenamente de acordo. Para ajudar, gostaria de sugerir o curso online Writing in the Sciences, da plataforma Coursera (www.coursera.com). O curso é oferecido por uma profesora de Stanford e é MUITO bom. É um curso que enfatiza exemplos e a prática, passa pelos princípios de uma escrita eficaz, exemplos de boa e má escrita (excessos, excessos, excessos) e, por fim, temas próprios da escrita científica (autoria, peer review, estrutura do manuscrito, etc). É DE GRAÇA, online e, very, very good.
ResponderExcluirCamila, muito obrigado pelo comentario e dica!
ResponderExcluirnossa como eu concordo com vc sergio.. moro aqui ha 10 anos e ainda tenho pelo mais 30 anos pra aprender escrever em ingles! e bom ouvir isso de um cientista com sua experiencia...
ResponderExcluirMuito bom o texto e vou fazer o curso sugerido por Camila. Quem sabe a gente consegue melhorar alguma coisa!!
ResponderExcluirMuito bom professor Sérgio Lira!
ResponderExcluirCom relação à honestidade durante a escrita de papers, algo ficou muito famoso ultimamente no Twitter (que eu por sinal, não sei usar).
Uma pesquisadora escreveu algo do gênero "a incubação foi de 48 horas pois o aluno não quis saber de ir pro laboratório durante o final de semana #overlyhonestmethods"
E então essa hashtag está sendo muito comentada ultimamente, com muitas verdades irônicas sobre os bastidores da escrita científica!
Escrever é difícil, concordo.. para mim sempre foi e é um prazer que nasce de "muito suor"... que às vezes parece fruto de "psicografia" rrssrss .. e reproduzo aqui palavras suas que traduzem muito o que também sinto: "Sem informação não se escreve bem. E escreva, e re-escreva, e leia alto pra ver se faz sentido. E tendo, acredite no seu taco. E mande bala".
ResponderExcluirParabéns pelo "inspiring" post.
Josiane
Muito bom!
ResponderExcluirEstou escrevendo meu primeiro artigo e tô suando a camisa, literalmente!
Os muitos vai-e-vem que a revista pede fazem parte do trabalho científico.
Mas é muito prazeroso!
Muito bom!
ResponderExcluirEstou escrevendo meu primeiro artigo e tô suando a camisa, literalmente!
Os muitos vai-e-vem que a revista pede fazem parte do trabalho científico.
Mas é muito prazeroso!