12-08-19-BLOG
Uma nova teoria nos espera
Certamente é problemático afirmar que a imunologia é eficaz em explicar a atividade imunológica em condições patológicas, mas não a atividade imunológica normal. Como entender doenças sem entender a fisiologia é uma questão difícil, principalmente para aqueles ligados à medicina. Na imunologia tradicional, assim como na visão leiga da imunidade, (folk-immunology), o reconhecimento de materiais estranhos (antígenos), o papel protetor dos anticorpos e a memória imunológica, são tacitamente aceitos, embora não sejam vistos como propriedades cognitivas; estes conceitos também se encaixam bem na linguagem existente. Mesmo atualmente, a imunologia tradicional é dominada por um “cripto-Cartesianismo” que beira um franco animismo, quando atribui propriedades “cognitivas” a células isoladas (por exemplo: células de memória; linfócitos reguladores; etc.). Na melhor das hipóteses, estas propriedades só se aplicariam ao organismo inteiro e não a seus componentes - um equívoco conhecido em filosofia como a falácia mereológica.(1)
É muito difícil para os imunologistas de ontem e de hoje aceitar afirmações (e experimentos) contrários ao seu “representacionismo”, segundo o qual antígenos externos estão “representados” no organismo, têm uma correspondência interna com clones linfocitários e anticorpos. Isto permanece assim embora a essência do conceito de “especificidade” imunológica tenha sido literalmente destruído pela demonstração de uma enorme degeneração (poliespecificidade) de linfócitos e anticorpos.
É compreensível que os imunologistas insistam em ver aquilo que se passa com linfócitos e anticorpos como um “reconhecimento de materiais estranhos”. O senso comum da ciência atribui funções especializadas às estruturas biológicas e este “reconhecimento” tem sido enacarado como a “razão de ser” dos linfócitos. Mas há experimentos publicados em periódicos de prestígio que certamente não se encaixam nesta maneira de ver.
Em seu famoso livro sobre a “Estrutura das Revoluções Científicas” (1962) (vale pelo menos uma ida ao Wikipedia), Thomas Kuhn afirma que teorias científicas não são refutadas por fatos científicos que as contradigam: para que isto ocorra elas precisam colidir com teorias rivais mais adequadas.
Embora respeite muito esta ideia, é surpreendente que os adeptos da teoria de Seleção Clonal convivam com tantas contradições flagrantes a seus princípios e prossigam em uma conduta que é quase “behaviorista” ao estudar “respostas imunes espeçíficas” a “estímulos antigênicos”, atualmente alegando que estudam sua “regulação”
Uma destas contradições foi sumarizada em uma pequena nota por Jan Cerny & Garnet Kelsoe (1984) na Immunology Today (2). Nessa nota, eles mostram que após a injeção de um antígeno X, como esperado, surgem anticorpos anti-X e anticorpos anti-anti-X (isto é, anti-idiotípicos). O que não se espera é que a primeira leva de anticorpos anti-anti-X surge antes dos anti-X. Como pode isto ocorrer?
Uma outra evidência difícil de engolir em uma visão “clonal” está descrita em Forni et al., 1980, onde se mostra que a injeção de certas IgM resulta no aparecimento de (centenas de vezes mais) IgM com a mesma especificidade (3).
Ou, ainda, nos experimentos de Coutinho e colaboradores que geraram centenas de imunoglobulinas monoclonais do baço de Balb/c acabados de nascer (Dighiero et al., 1985) (4). Nestes experimentos o universo dos imunologistas é virado pelo avesso. Os experimentos podem mostrar quais são os imunoglobulinas formadas pelo organismo antes de nascer - mas como caracteriza-los? Em geral, monoclonais são produzidos com uma direcionalidade pois se pretende utiliza-los como reagentes bioquímicos específicos. Mas os Balb/c recém nascidos, assim como todos os organismos em todas as idades, não têm esta direcionalidade: ela pertence aos interesses dos imunologistas, não aos organismos vivos.
Enfim, há muita coisa interssante já demonstrada que serviria para a construção de uma teoria que substituísse a teoria clonal. Algo interessante é perguntar por que esta outra teoria não apareceu ainda? A resposta está na simplicidade da teoria clonal, produzida em 1957, quando sequer se reconhecia a existência de linfócitos T, e parecia fácil distinguir self de nonself (uma distinção que é fácil para nós, mas impossível pra os linfócitos). Mais de meio século se passou desde então e neste intervalo aprendemos muito mais, não apenas sobre imunologia, mas principalmente sobre a Biologia, em geral. Uma nova teoria precisa incorporar estes novos conhecimentos e esta é uma tarefa gigantesca. Mas o cenário está mais do que maduro. Certamente, trata-se de uma teoria sistêmica que implica um outra maneira de ver que inclui a nós mesmos, que somos quem vê (os observadores) (Maturana, 2008) (5).
Nelson Vaz
(1) BENNET, M R & HACKER P M Sr(2003) Philosophical Foundations of Neuroscience. Blackwell Publishing.
(2) CERNY, J. & KELSOE, G. 1984. Priority of the anti-idiotypic response after antigen administration: artifact or intriguing network mechanism? Immunol.Today, 5, 61-63.
(3) FORNI, L., COUTINHO, A., KOHLER, G. & JERNE, N. K. 1980. IgM antibodies induce the production of antibodies of the same specificity. Proc.Natl.Acad.Sci.USA, 77, 1125-1128.
(4) DIGHIERO, G., LYMBERI, P., HOLMBERG, D., LUNDQUIST, I., COUTINHO, A. & AVRAMEAS, S. 1985. High frequency of natural autoantibodies in normal newborn mice. J. Immunol., 134, 765-771.
(5) MATURANA, H. R. 2008. Anticipation and Self-consciousness.Are these Functions of the Brain? Constructivist Foundations, 4 18-20.