Em 1666 na Inglaterra aconteceu o último grande surto da peste negra, ou peste bubônica, matando cerca de cem mil pessoas, aproximadamente quinze por cento da população urbana. Outros surtos já haviam ocorrido na Europa durante toda a Idade Média, contudo, naquele ano, um vilarejo na periferia de Londres resolveu lutar de um modo especial contra a doença. Seus habitantes isolaram-se do resto do mundo, vivendo apenas do que havia no local, policiando suas fronteiras para que ninguém entrasse ou saísse, queimando seus mortos até que novos casos parassem de acontecer. A história dessa pequena cidade é contada no livro Year of Wonders, de Geraldine Brooks., e há registros de que outros vilarejos na época tenham tentado seguir seu exemplo. Hoje, no pequeno planeta em que vivemos, alguém pode testemunhar um surto de uma doença letal em um vilarejo da África e na manhã seguinte aterrissar em Nova Iorque.
Surtos do
Ebola vão provavelmente continuar a acontecer por um bom tempo, e não só na
África. Estamos testemunhando em tempo real o processo de evolução de uma
relação parasita-hospedeiro. Um vírus, como o gene egoísta popularizado por
Richard Dawkins, busca usar o corpo do hospedeiro – no caso, os humanos – para
garantir sua sobrevivência e geração de novas cópias, que infectem outros
indivíduos, e assim ad eternum. Quando
um vírus já está bem adaptado, ele
não interfere muito com a sobrevivência do hospedeiro, que funciona como
máquina de contágio, garantindo o espalhamento de cópias virais por mais tempo.
Já os vírus que ainda estão no início da fase de adaptação podem causar danos
maiores, inclusive morte. Mas esses vírus tendem a não se espalhar tanto. Isso
é o processo de adaptação e seleção, darwiniano clássico. Costumo brincar com
meus alunos que o vírus mais desastrado é aquele dos filmes de zumbi, primeiro
porque os zumbis não deixam filhos, e segundo porque todo mundo vê que o cara
está infectado, e foge dele. O segundo pior vírus parece ser o Ebola, porque
ainda mata um grande número da pessoas infectadas. Contudo, vejam bem: algumas
pessoas certamente se infectam e são resistentes, não desenvolvendo doença. Outras
ficam doentes, mas não morrem.
Assim o Ebola vai amostrando e colonizando o rebanho humano, até surgir
uma forma viral que consiga conviver harmoniosamente com (e em) seus
hospedeiros.
O
hospedeiro também se adapta ao vírus. Uma adaptação importante da nossa espécie
à infecções é o sistema imunológico; outra é o desenvolvimento de tecnologia.
Quando dois americanos que trabalhavam na África apresentaram os sintomas mortais
da infecção, uma droga produzida por uma pequena empresa em San Diego, nos EUA,
chegou no dia seguinte à Libéria, na África, e parece ter salvo suas vidas.
Essa droga é uma combinação de moléculas da resposta imune (anticorpos) que
podem ser produzidas em laboratório e usadas como medicamentos. As drogas usadas
ainda não foram aprovadas para uso em humanos, pois essa regulamentação pode
demorar dezenas de anos. Mas a
ciência por traz delas era sólida, e o seu uso permitiu o transporte dos
pacientes aos EUA para acompanhamento. Paradoxalmente, as pessoas que estão em
campo na África não possuem
ferramentas diagnósticas adequadas para identificar os infectados pelo Ebola –
muitas vezes não existe nem telefone para que as equipes atuando em vilarejos
atingidos possam comunicar-se.
Mesmo em um
super hospital como o Mount Sinai em Nova Iorque não existem testes
diagnósticos conclusivos para o Ebola, que faz parte de um grupo chamado de
doenças negligenciadas. Tais doenças, causadas por patógenos que historicamente
estavam restritos a países pobres, não interessam particularmente à indústria,
pois quem pode pagar o tratamento? Os governos de tais países tradicionalmente
não investem em pesquisa, pois não têm recursos. A história do vilarejo isolado
da Inglaterra mostrava um grupo de pessoas ainda presas a conceitos ultrapassados,
identificando medicamentos a bruxaria, sofrendo para interpretar um mundo
prestes a entrar em uma revolução tecnológica. Hoje, não podemos mais trancar a
vila. Negligenciar a pesquisa em doenças
de vilarejos terá,
inevitavelmente, um preço global.
Artigo publicado no Jornal Zero Hora, no Caderno PrOA, 10 de agosto de 2014
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