segunda-feira, 23 de junho de 2014

Aprendizado com as falhas do sistema de pesquisa biomédica dos EUA (parte I)

          Recebi um email da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical sobre um artigo publicado no PNAS, por pesquisadores da Universidade da Califórnia em San Francisco (UCSF), Harvard Medical School em Boston,  Princeton (New jersey) e National Cancer Institute (NCI/NIH), de Bethesda Maryland. Estes pesquisadores questionam as falhas sistêmicas da pesquisa biomédica nos EUA, que é modelo seguido não só no Brasil como no mundo todo. Reproduzo aqui (link para comentário no site da SBMT e artigo completo) alguns trechos do artigo, e os grifos em negrito e itálico são meus comentários. Na medida do possível, voltarei ao assunto quando necessário para concluí-lo, em posts futuros neste blog.
“Com base em inúmeras avaliações, pode-se dizer que as ciências biológicas e médicas estão em uma era dourada. Esse fato, que celebramos, torna mais difícil tomar conhecimento de que o sistema atual contém falhas sistêmicas que ameaçam seu futuro. Uma falha central é a ideia pré-concebida de que esta empresa está em constante expansão e assim continuará indefinidamente. Como resultado, há agora um desequilíbrio grave entre os dólares disponíveis para pesquisa e a ainda crescente comunidade científica nos EUA. Este desequilíbrio criou uma atmosfera hipercompetitiva na qual a produtividade científica é reduzida e carreiras promissoras são ameaçadas.”
Se os pesquisadores estadunidenses pensam que estão em crise e sofrem de hipercompetitividade, mesmo com o maior financiamento em pesquisa do mundo, o que pensam os pesquisadores brasileiros sobre a pesquisa biomédica no Brasil?

“(...) Durante os últimos 60 anos, cientistas biomédicos descobriram muitos dos princípios fundamentais que instruem o comportamento celular tanto na saúde quanto na doença, fornecendo um arcabouço para explorar os sistemas biológicos em grande profundidade: o código genético, a sequência de organização do genoma, o crescimento e o ciclo de divisão celulares, e as moléculas que medeiam a sinalização celular. Muitas doenças – infecciosas, hereditárias, neoplásicas, circulatórias e metabólicas – são agora abordadas e frequentemente prevenidas, controladas ou curadas com medidas baseadas nestas e outras descobertas.
O público estadunidense corretamente se orgulha disto e tem apoiado generosamente os esforços de pesquisa através dos National Institutes of Health (NIH)" (inclusive de muitos cientistas brasileiros brilhantes e de sucesso que passaram pelo NIH, como André Bafica da UFSC, Andréa Teixeira e Lis Antonelli da Fiocruz-MG, George dos Reis da Fiocruz-RJ, Rodrigo Calado e Anderson Nunes da USP, e outros que foram/são financiados pelo NIH, como Miguel Nicolelis, apenas para citar alguns) "e numerosas outras agências federais, fundações, grupos de apoio público e instituições acadêmicas (não cabem todos aqui, desculpem-me se esqueço alguém). Como retorno, a notável enxurrada de pesquisa inovadora dos laboratórios estadunidenses – sequenciamento de DNA de alta tecnologia, imageamento sofisticado, biologia estrutural, química designer e biologia computacional – levou a avanços impressionantes na medicina e impulsionou os setores biotecnológico e farmacêutico.
No contexto desse progresso, é notável que mesmo os cientistas mais renomados e pós-doutorandos promissores estejam crescentemente pessimistas sobre o futuro da carreira escolhida. Com base em extensas observações e discussões, acreditamos que estas preocupações sejam justificadas e que a empresa da pesquisa biomédica nos EUA esteja em uma via insustentável. Neste artigo, os autores descrevem como esta situação se originou e alguns possíveis remédios.

Fonte do dilema
Jogo dos 7 erros. Fonte: http://www.blogdajulieta.com.br/?p=16304

Os autores acreditam que a causa-raiz do mal-estar amplamente espalhado é a certeza da expansão indefinida do sistema de pesquisa biomédica nos EUA. Começamos a perceber que este não é o caso. Na última década, a expansão se estabilizou e até reverteu.
Essa ideia de expansão eterna foi adotada após a II Guerra Mundial, na medida em que números e tamanhos das universidades cresciam pra suprir as necessidades da economia para os mais graduados e os pilares da “Ciência: A Fronteira sem Fim” de  Vannevar Bush encorajaram a expansão dos orçamentos federais para pesquisa. O crescimento persistiu com a chegada da geração “baby boom” no fim dos anos 60s e 70s e uma vibrante economia estadunidense. Entretanto, finalmente, começando cerca de 1990 e piorando após 2003, quando uma rápida duplicação do orçamento do NIH terminou, as demandas para dólares de pesquisa cresceu muito mais rápido do que a oferta. Essas demandas foram abastecidas em grande parte por incentivos na expansão institucional, pelo rápido crescimento da força científica de trabalho, e por custos crescentes de pesquisa.
Posteriores declínios no financiamento federal, causado pela Grande Recessão de 2008 e pelo sequestro de orçamento em 2013, exacerbaram o problema significantemente. (Hoje, os recursos disponíveis para o NIH são estimados em no mínimo 25% a menos de dólares constantes do que eram em 2003). As consequências deste desequilíbrio incluem declínios dramáticos nas taxas de sucesso para candidatos a verbas provenientes do NIH e tempo diminuído para os cientistas pensarem e executarem trabalho produtivo.
O descompasso entre oferta e demanda pode ser parcialmente explicado pelas tradições da disciplina Malthusiana. A grande maioria da pesquisa biomédica é conduzida por trainees em ascensão: estudantes graduados (de especialização, mestrado e/ou doutorado) e pós-doutorandos. Como resultado, a maioria dos cientistas biomédicos de sucesso treinam muito mais cientistas do que são necessários para substituí-los. No conjunto, o processo de treinamento produz mais cientistas do que posições relevantes que a academia, governo e setor privado são capazes de absorver. Consequentemente, um número crescente de PhDs estão em trabalhos que não aproveitam o investimento dos contribuintes em sua demorada educação.
Entendo que ainda não seja o caso do Brasil inteiro, pois há ainda uma grande demanda em áreas distantes (Amazônia, interior do Nordeste e Centro-Oeste) dos grandes centros de pesquisa biomédica, como São Paulo, Rio, Brasília, Belo Horizonte, Salvador, Porto Alegre e Recife. Nestes centros, porém, alguns efeitos dessa ultracompetitividade já podem ser sentidos desde o ano 2000, com o anúncio do Projeto Genoma da Xylella fastidiosa como capa da Nature e a reestruturação do sistema de bolsas e financiamento por parte da FAPESP, no Estado de São Paulo.
(...) Agora que a porcentagem das candidaturas a verbas do NIH que possam ser financiadas caiu pra cerca de 30%, os cientistas biomédicos estão gastando muito mais de seu tempo escrevendo e revisando submissões e muito menos tempo pensando em ciência e conduzindo experimentos. (...) O sistema agora favorece mais quem pode garantir resultados do que ideias potencialmente inovadoras, que por definição, não podem prometer sucesso. Jovens investigadores são desencorajados a ir muito longe de seu trabalho de pós-doutorado, quando, em vez disso, deveriam estar levantando novas questões e inventando novas abordagens. Investigadores experientes são obrigados a grudar em suas fórmulas tentadas-e-verdadeiras para o sucesso, em vez de explorar novos campos.
(...) A supervalorização da pesquisa “translacional” está distraindo os cientistas de uma apreciação equivalente da pesquisa fundamental de ampla aplicabilidade, sem conexões óbvias com a medicina. Muitas descobertas surpreendentes, ferramentas poderosas de pesquisa e importantes benefícios médicos surgiram dos esforços de decifrar fenômenos biológicos complexos em organismos-modelos. Em um clima que desencoraja tal trabalho ao enfatizar objetivos de curto prazo, o progresso científico inevitavelmente será atrasado e achados revolucionários serão adiados.

Apesar de um aparente pessimismo inicial, vislumbrando um futuro obscuro, voltarei no próximo post continuando com perspectivas e hipóteses aventadas pelos autores na tentativa de resolver estes problemas no curto e longo prazo, nos EUA. E finalmente, a repercussão destas falhas no sistema de pesquisa biomédica brasileira e quais as possíveis soluções propostas pelos cientistas biomédicos brasileiros para nossas causas e problemas peculiares.

Para quem preferir se adiantar, as referências do artigo são excelentes, e eu destaco as mais recentes, além do próprio artigo:


1. Alberts B, Kirschner MW, Tilghman S, Varmus H (2014). Rescuing US biomedical research from its systemic flaws. PNAS Early Edition: www.pnas.org/cgi/doi/10.1073/pnas.1404402111
2. Collins FS, Tabak LA (2014). Policy: NIH plans to enhance reproducibility. Nature. 505(7485):612-613.
3. Zoghbi HY (2013). The basics of translation. Science 339(6117):250.
            4. National Institutes of Health (2014) NIH Director's Biomedical Workforce Innovation Award: Broadening Experiences in Science Training (BEST) (NIH, Bethesda, MD, USA).
            5. National Institutes of Health (2014) NIH Director's New Innovator Award (NIH, Bethesda, MD, USA).
            6. American Society for Biochemistry and Molecular Biology (2014) Toward a Sustainable Biomedical Research Enterprise (American Society for Biochemistry and Molecular Biology, Rockville, MD, USA).

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