sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Um pouco sobre evolução do sistema imunológico




Post do Prof. Anderson Sá–Nunes/USP

O tema “Evolução do Sistema Imune” me fascina desde os tempos de pós-graduação. A possibilidade de avaliar e analisar as adaptações de cada organismo ao seu ambiente do ponto de vista imunológico é realmente sedutor em minha opinião. Infelizmente, essa área não recebe a atenção que merece, seja porque envolva proporcionalmente mais elucubração e menos experimentação do que outras áreas da imunologia, seja pela necessidade de um conhecimento mais aprofundado de genética, bioquímica, biologia celular e, é claro, dos mecanismos de evolução biológica. Mas é justamente essa interdisciplinaridade nos permite hoje afirmar que muitos dos mecanismos efetores da imunidade na realidade surgiram à partir de adaptações de processos biológicos pré-existentes e não de “criações” propriamente ditas como muitos afirmam.

A escassez de literatura básica sobre o assunto também contribui com a falta de discussões do tema. Atualmente, poucos livros didáticos abordam essa questão. Duas exceções são “Imunologia Veterinária” editado por Ian R. Tizard e “Fundamental Immunology” editado por William E. Paul. O primeiro tem o mérito de introduzir o assunto aos estudantes de graduação usando uma linguagem simples, porém traz mais informações sobre imunologia comparada do que evolução na essência, além de escorregar em algumas terminologias da área. O segundo possui um excelente capítulo dedicado à Evolução do Sistema Imune, escrito por dois dos mais reconhecidos imunologistas evolutivos da atualidade, Martin F. Flajnik e Louis Du Pasquier. Entretanto, por ser mais extenso e mais aprofundado, esse livro não é adotado pela maioria dos professores de graduação e mesmo na pós-graduação, são poucos aqueles que se dedicam a uma leitura mais detalhada desse texto.

São diversos os estudos comparativos cujos frutos tornaram-se fundamentos sólidos da imunologia contemporânea. Muito do que se sabe hoje a respeito da imunologia de mamíferos (especialmente de humanos) originou-se de informações provenientes de organismos procariotos ou eucariotos invertebrados. Enquadram-se aí a descoberta das proteínas de choque térmico (heat shock proteins- HSPs) em 1962 por Ferrucio Ritossa, em glândulas salivares de Drosophila, a mosca das frutas. Dessa mesma espécie se iniciou o conhecimento a respeito do papel de receptores semelhantes a Toll (Toll-like receptors – TLRs) na imunidade, descrito pelo grupo de Jules A. Hoffmann em 1996. A compreensão da cascata que leva uma célula à morte celular programada, ou apoptose, foi descrita em detalhes no nematódeo Caenorhabditis elegans nas décadas de 1980 e 1990, conhecimento este que laureou Sydney Brenner, H. Robert Horvitz e John E. Sulston com o Prêmio Nobel em Fisiologia ou Medicina em 2002. Todos esses exemplos ilustram descobertas inicialmente restritas às espécies em que ocorreram, mas que posteriormente foram generalizadas, senão para todos, pelo menos para boa parte dos organismos vivos, com ênfase aos vertebrados.

Não é surpresa, portanto, que genes descritos originalmente em táxons inferiores possuam ortólogos em táxons superiores, ainda mais se os produtos desses genes são responsáveis por funções tão importantes quanto a manutenção do sistema imunológico. Eventuais mutações ou outras alterações estruturais desses genes provavelmente levaram seus portadores à extinção. A verdadeira discussão inicia-se justamente na análise de características que não possuem correspondência entre esses grupos. Nesse sentido, um dos grandes mistérios da imunologia atual é “como a imunidade adaptativa convencional surgiu?”. A ausência dos elementos que caracterizam esse tipo de imunidade (moléculas do complexo principal de histocompatibilidade (MHC), receptor de células T (TCR) e receptor de células B (BCR)) em todas as classes de invertebrados e em vertebrados sem mandíbulas (ex.: lampréias) sempre foi cercada de um grande mistério. Afinal, como um sistema tão complexo e tão bem integrado pode ter evoluído todo de uma só vez, sem deixar vestígios de formas intermediárias em seu processo? De fato, com raras exceções (e muitas adaptações), os mecanismos de processamento e apresentação de antígeno, assim como a maquinaria de recombinação somática que produzem o repertório antigênico de todos os vertebrados mandibulados é essencialmente o mesmo. Até hoje, alguns grupos acreditam que a resposta para essa questão estaria em um grupo de peixes conhecidos como placodermos, extintos há mais de 350 milhões de anos, que seria o elo perdido entre os mandibulados e os não mandibulados atuais apesar dessa relação ser ainda incerta.

Na ausência de representantes modernos desse provável ancestral, os estudos de imunogenética comparativa vêm preenchendo diversas lacunas da história evolutiva do sistema imunológico dos organismos vivos. Além disso, os genomas de diversas espécies estão sendo sequenciados e com isso, cada vez mais peças desse gigantesco quebra cabeça foram encontradas na última década. Os pormenores desses novos achados ficarão para blogs futuros, mas desde já gostaria de indicar leituras interessantes sobre o tema, além dos capítulos de livro citados no início desse texto. A primeira dessas leituras já foi sugerida pelo Bruno Bezerril em blog postado no dia 30 de julho desse ano, já as outras são complementares ao tema. Divirtam-se!!!

Nature Reviews Immunology 10, 543-553 (August 2010) | doi:10.1038/nri2807
Nature Reviews Genetics 11, 47-59 (January 2010) | doi:10.1038/nrg2703
Current Opinion in Immunology 19, 522-525 (October 2007) | doi:10.1016/j.coi.2007.07.013
Immunological Reviews 210, 8-26 (April 2006) | doi: 10.1111/j.0105-2896.2006.00366.x
Immunology Letters 104, 2-17 (April 2006) | doi:10.1016/j.imlet.2005.11.022

3 comentários:

  1. Dr. Anderson,
    Eu tive a sorte (?) de apresentar um Journal Club sobre o tema, foi quando eu aprendi a aparencia de uma lampréia. O grupo do Dr Max Cooper (Emory University) tem descrito alguns receptores em peixes não mandibulados que guardam semelhanças com BCR e TCR, mas acredtio que ainda não encontraram um "equivalente" ao MHC. A referencia do Journal Club mencionado foi

    Dual nature of the adaptive immune system in lampreys.
    Guo P, Hirano M, Herrin BR, Li J, Yu C, Sadlonova A, Cooper MD.

    Nature. 2009 Jun 11;459(7248):796-801. Epub 2009 May 27. Erratum in: Nature. 2009 Aug 20;460(7258):1044.

    Walter M. Turato

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  2. Oi Walter,

    Eu optei por fazer somente um comentário geral sobre o tema, mas você está certo. Os vertebrados não-mandibulados também possuem um sistema de geração de variabilidade dos receptores de linfócitos. Porém esse sistema não é baseado em recombinação dependente de RAG e seus receptores também não estão relacionados com o TCR e BCR, embora também liguem antígenos. E o MHC talvez tenha se originado de uma molécula precursora que não necessariamente tivesse função de apresentação antigênica. Enfim, é um universo de conhecimento que estamos apenas começando a entender.

    Anderson

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  3. Obrigado pelo post
    Faz tempo que estava tentando entender melhor como o sistema imune evoluiu. Minha opinião é que só vamos conseguir entender um sistema tão complexo como o imune quando compreendermos a evolução mais profundamente...

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