Sempre que nos referimos aos microoganismos não
é difícil não relacionar este assunto à imunologia. Fazer esta correlação é
muito intuitiva por dois motivos: tanto o início do estudo da imunologia quanto
a relação microorganismo-doença são muito recentes. A imunologia como ciência
tem seu início no final do século XVIII, por Edward Jenner com seus trabalhos
sobre a vacinação contra a varíola bovina e o estabelecimento da relação microorganismo-doença
foi feito um século depois dos trabalhos de Jenner por Robert Koch, quando ele
conseguiu relacionar que doenças infecciosas eram causadas por determinados
microoganismos patogênicos1.
Entretanto, nem toda relação do hospedeiro com
microorganismos é prejudicial. Nós humanos temos em nossas barreiras epiteliais
dezenas de milhares de microorganismos que colonizam estes nichos (mircobiota)
e que são capazes de até mesmo nos trazer benefícios a partir desta relação
(ex.: nutrição, fonte de energia, metabolismo de xenobióticos, homeostase entre
outros); temos uma relação tão íntima com estes seres vivos que se estima que abrigamos
cerca de dez vezes mais células de microorganismos que células somáticas2.
Com a ideia de que
a relação microorganismo-hospedeiro pode ser até mesmo vantajosa, o estudo da
microbiota vem ganhando destaque. Se considerarmos somente a plataforma PubMed
como fonte de pesquisa, percebemos que ao final de 2015 o número de publicações
sobre o assunto será de 5321 artigos, ou seja, 21,7x maior que em 2005 (245
artigos), se as previsões se confirmarem (figura 1).
Figura 1: Gráfico
representando o número de entradas registradas no PubMed para a busca:
“Microbiota entre os anos de 2005 e 2015. O número à direita representa a
estimativa de artigos para o fim de 2015. Fonte:
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/
Assim como nos periódicos, o assunto
microbiota também é recorrente neste blog. Nos últimos dois meses, o assunto
foi duas vezes tema de postagens. Em uma delas (aqui), Rafael Polidoro discute o
interessantíssimo artigo de Hepworth no qual é demonstrado como as células
ILC-3 do hospedeiro são capazes de selecionar negativamente células CD4 que são
reativas a bactérias comensais e, com isto, gerar tolerância àquele determinado
microorganismo3. Desta forma, este artigo traz um conceito inovador de que um
microorganismo comensal não é mais comensal porque ele não é capaz de ativar o
sistema imune do hospedeiro ou devido a um sistema de células TReg
que suprimem a atividade dos leucócitos no intestino, mas porque o hospedeiro
mantém um sistema ativo de vigilância/proteção que promove essa tolerância
eliminando células reativas.
Com isto em mente,
novas perguntas surgem sobre o tema: porque tolerar ativamente um determinado microorganismo?
Que características um microorganismo deve ter para ser tolerado? Quais as
vantagens para o hospedeiro um determinado microorganismo traz?
Apesar de ter sido
publicado quatro anos antes, o trabalho de Ichinohe se encaixa perfeitamente
nesta discussão. Em seu artigo publicado no PNAS, em 2011, ele demonstra com
elegância como a presença da microbiota intestinal exerce uma influência no sistema imune que
ultrapassa as barreiras do intestino4.
Neste trabalho, o
autor demonstra que a presença da microbiota intestinal é de extrema
importância para que o hospedeiro consiga gerar uma resposta eficiente contra a
infecção pulmonar pelo vírus Influenza PR8. Ao tratar camundongos com um
coquetel de antibióticos (amplo espectro), a microbiota intestinal é perturbada
resultando em uma resposta imune contra o PR8 ineficiente com: menores níveis
de anticorpos circulantes, menores níveis de citocinas, menores números de
células CD8+CD44+ e maiores títulos virais. Entretanto,
para se reverter este quadro, bastou-se administrar localmente ou
sistemicamente agonistas específicos de TLRs (ex.: LPS, CpG, Poli(I:C)).
Para fechar seu
trabalho de maneira interessante, Ichinohe pegou o coquetel de antibióticos e
administrou nos camundongos de forma isolada, transformando o que antes era um
tratamento de amplo espectro em um tratamento específico. Interessantemente,
ele nos mostra que somente os animais tratados com neomicina tiveram sua
resposta imune contra o vírus prejudicada. Isso nos mostra que somente as
bactérias sensíveis à neomicina (neste caso, as gram-positivas do intestino)
são as responsáveis por exercer o efeito benéfico ao sistema imune que, neste
caso, seria (1) a “primagem do sistema imune inato” e (2) consequente ativação
eficiente da resposta adaptativa.
Seguindo a mesma
linha de raciocínio, Vieira e colaboradores publicaram um artigo em que eles
mostram que a presença da microbiota também é importante para que o hospedeiro
monte uma resposta eficiente contra a gota5. Entretanto, neste caso os autores investigam o papel dos produtos
do metabolismo microbiano (ex.: acetato) na modulação da resposta imune.
Da mesma forma que Ichinohe, Vieira e
colaboradores observaram que a tanto a presença da microbiota quanto de seus
subprodutos são importantes para que a montagem da resposta imune (via NLRP3 –
IL-1β) seja feita de forma eficiente.
Estas conclusões trazem um conceito muito interessante,
pois elas desfazem a ideia de que a microbiota exerce um efeito único no
hospedeiro. Ao contrário, estes dois artigos suportam a ideia de que os
diferentes microorganismos que compõe a microbiota intestinal exercem
diferentes efeitos no hospedeiro. Ainda mais, pode ser que diferentes
microorganismos exerçam diferentes efeitos em situações diferentes no
hospedeiro, entretanto esta ideia ainda deve ser provada.
Com
isto, começamos a responder as questões levantadas alguns parágrafos acima.
Agora é fácil entender que tolerar microorganismos é importante pois eles
trazem trás efeitos benéficos notáveis para a resposta imune do hospedeiro e
mais, tolerar microorganismos específicos é valioso pois ao que parece, cada microorganismo
estimula o sistema imune maneira específica.
Por fim, todas as novas evidências acerca do
papel que a microbiota intestinal exerce no hospedeiro e o surgimento da ideia
de que ela exerce muito mais funções do que apenas a promover homeostase do
órgão colonizado e da imunidade local tem trazido à tona discussões muito
interessantes sobre este assunto e também têm abrido portas para até mesmo a reavaliação
do papel da microbiota em outros órgãos além do intestino como por exemplo: o
pulmão6.
Referências:
1. Murphy, K., Travers, P. & Walport, M. Imunobiologia
de Janeway. (Artmed Editora S.A., 2013).
2. Turnbaugh, P. J. et al. The human
microbiome project. Nature 449, 804–810 (2007).
3. Hepworth, M. R. et al. Group 3
innate lymphoid cells mediate intestinal selection of commensal
bacteria-specific CD4+ T cells. Science 348, 1031–1035 (2015).
4. Ichinohe, T. et al. Microbiota
regulates immune defense against respiratory tract influenza A virus infection.
Proceedings of the National Academy of Sciences 108, 5354–5359
(2011).
5. Vieira, A. T. et al. A Role for Gut
Microbiota and the Metabolite-Sensing Receptor GPR43 in a Murine Model of Gout.
Arthritis Rheumatol 67, 1646–1656 (2015).
6. Dickson, R. P. & Huffnagle, G. B. The
Lung Microbiome: New Principles for Respiratory Bacteriology in Health and
Disease. PLoS Pathog 11, e1004923 (2015).
Post de Bráulio Lima
Doutorando do Departamento de Bioquímica e Imunologia/ UFMG