domingo, 4 de janeiro de 2015

Visceralização na infecção por leishmanias


As leishmanioses estão presentes em cerca de 98 países, com mais de 350 milhões de pessoas em áreas de risco. São mais de 20 espécies do gênero Leishmania que podem infectar humanos, sendo que algumas causam, preferencialmente, lesões cutâneas ou mucosas (as cutâneas, geralmente, auto curáveis), e outras visceralizam, atingindo, principalmente, o baço e o fígado. Um dos pontos mais importantes a ser questionado no estudo das leishmanioses é o porquê de algumas espécies permanecerem no local da picada do inseto, resultando em uma infecção local, enquanto outras migram para outros órgãos, desencadeando formas mais graves, por vezes fatais, da doença.
Para pensar nesse questionamento, é preciso levar em conta os aspectos intrínsecos do parasita, assim como os determinantes específicos do hospedeiro no controle da infecção. São muitos os fatores do parasita que podem estar envolvidos no sucesso da infecção, tais como a espécie, a virulência da cepa, as alterações genéticas, e até a quantidade de parasitas inoculados em infecções experimentais pode influenciar na visceralização da leishmaniose cutânea.
Um grupo de Sri Lanka tentou explicar geneticamente o tropismo de isolados da pele e vísceras do mesmo paciente provenientes de uma infecção pela mesma cepa de Leishmania donovani (uma das espécies que causa leishmaniose visceral). Curiosamente, essa cepa que normalmente persiste no baço e fígado foi também encontrada na pele do paciente. A fim de caracterizar as cepas isoladas desses diferentes sítios, o grupo sequenciou o genoma de ambas e observou que a diferença no tropismo entre os isolados não foi devida a deleção de genes ou a presença de pseudogenes no isolado cutâneo. Interessantemente, tais cepas apresentaram polimorfismos e/ou diminuição do número de cópias de genes importantes na fisiopatologia da doença.
Um dos genes mais importantes para a virulência e habilidade de visceralizar é o A2, que consiste numa família abundantemente expressa durante a forma amastigota em leishmanias do complexo Donovani. Como era de se esperar, esse gene foi menos expresso no isolado cutâneo. Após a transfecção do mesmo nas cepas cutâneas, os autores observaram uma maior infectividade e sobrevivência do isolado no baço de camundongos BALB/c, o que demonstra a importância desse gene na virulência das cepas viscerais.
Os fatores do hospedeiro devem ganhar destaque também, especialmente, em relação à resposta imunológica gerada pela interação parasito-hospedeiro. Em indivíduos mal nutridos, que é o caso da maioria dos países endêmicos para as leishmanioses, o sistema imune inato está comprometido, aumentando a susceptibilidade à infecção. Pensando nisso, pesquisadores do Texas investigaram os possíveis defeitos nos mediadores da imunidade inata provocados por uma dieta deficiente em nutrientes (proteínas, ferro e zinco) em camundongos BALB/c. Eles observaram que animais mal nutridos apresentaram uma redução nas células dendríticas e macrófagos, além de alterações no fluxo de linfócitos no linfonodo. Esse fenótipo esteve relacionado com uma falha na função dos linfonodos em atuar como uma barreira, impedindo a disseminação da infecção, e, dessa forma, aumentando o risco de visceralização precoce.
            Portanto, esses dois trabalhos acrescentaram alguns mecanismos envolvidos na visceralização das leishmanias. A leishmaniose visceral é uma das parasitoses com maior letalidade e os mecanismos que governam a sobrevivência desses parasitas nos órgãos viscerais permanecem obscuros. Sabe-se que é um processo multifatorial, no qual muitos fatores (co-infecção com HIV, helmintos, utilização de drogas imunossupressoras, interação com a matriz extracelular do hospedeiro, etc) podem contribuir para a persistência do parasita em determinados órgãos. Estudos como esses podem contribuir para um melhor entendimento da virulência desses isolados e, quem sabe, descrever potenciais alvos terapêuticos durante a infecção visceral.


Figura. Após a transmissão das formas infectantes ao hospedeiro vertebrado, há a resposta imunológica desencadeada por essa interação, com ação do sistema imune inato, que pode conter a infecção local, permitindo o controle, ou a migração do parasita para outros sítios.

 REFERÊNCIAS


Zhang WW, Ramasamy G, McCall L-I, Haydock A, Ranasinghe S, et al. (2014) Genetic Analysis of Leishmania
donovani Tropism Using a Naturally Attenuated Cutaneous Strain. PLoS Pathog. 10(7): 
e1004244.doi:10.1371/journal.ppat.1004244.

Gregory MA, Bysani C, Weiguo Z, Jue Y,Luis E P, et al. (2001) Malnutrition Alters the Innate Immune
Response and Increases Early Visceralization following Leishmania donovani Infection Infect
Immun. 69(8): 4709–4718. doi:  10.1128/IAI.69.8.4709-4718.2001.


Post de Alynne Karen Mendonça de Santana (doutoranda em Ciências da Saúde - UFS)

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