quinta-feira, 3 de abril de 2014

Imunologia molecular In silico – Parte I

Buscando padrões em sequências virais

O Professor José Artur Bogo Chies coordena o Laboratório de Imunogenética da UFRGS, localizado no Departamento de Genética da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde desenvolve pesquisas com enfoque nas análises genéticas de doenças com fundo autoimune e pró-inflamatório. Durante uma aula sobre apresentação de antígenos, para uma turma da graduação, foi surpreendido pela pergunta de um aluno sobre as características que permitiam ao sistema imune diferenciar próprio e não próprio.  Gustavo Fioravanti Vieira, então aluno do curso de Biologia, estava intrigado sobre o reconhecimento de peptídeos virais apresentados no contexto do MHC-I. Além da questão da seleção tímica e da possível influência do contexto inflamatório da infecção, haveria algum padrão nestes pequenos peptídeos apresentados pelas células infectadas que pudesse servir como uma “assinatura” típica de vírus? Afinal, as proteínas virais são formadas pelos mesmos 20 aminoácidos essenciais que formam as proteínas do hospedeiro e o linfócito CD8+ irá interagir com uma sequência de apenas 8-10 aminoácidos para “identificar” se o alvo apresentado é próprio ou não próprio. 
Figura 1. Rota de apresentação de peptídeos endógenos. Modificado de Yewdell e cols., 2003.

Muitos meses mais tarde, este despretensioso debate em sala de aula deu origem a uma nova linha de pesquisa no Laboratório de Imunogenética. O Professor José Artur convidou o ex-aluno (agora Bacharel em Biologia) para ingressar em um projeto de mestrado realizando uma análise in silico (no computador) das sequências de peptídeos virais imunogênicos. Sob co-orientação do Dr. Andrés Delgado Cañedo (Unipampa), Gustavo Vieira iniciou uma pesquisa voltada a identificação de padrões físico-químicos que pudessem ser responsáveis pelo desencadeamento de reatividade cruzada nas respostas celulares citotóxicas (Vieira & Chies, 2005). A existência de padrões físico-químicos que contribuíam para a ocorrência da reatividade cruzada entre epitopos virais foi posteriormente corroborada por experimentos realizados por pesquisadores dinamarqueses (Frankild e cols., 2008).
O projeto de Mestrado foi transformado em Tese de Doutorado e através do uso da ferramenta BLAST e de preditores das etapas da via de apresentação de antígenos endógenos foi possível identificar que os epitopos imunogênicos estavam restritos a regiões conservadas das proteínas virais (Rigo e cols., 2012). Ou seja, utilizando a proteína N dos Hantavírus como modelo de estudo, observou-se in silico que o sistema imunológico dos hospedeiros (roedores) direcionava a resposta celular contra epitopos compartilhados entre os diversos membros da família Bunyaviridae (blocos azul escuro na Figura 2). Estas sequências, por outro lado, não compartilhavam nenhuma similaridade com sequências do hospedeiro ou mesmo com sequências de outros organismos (mesmo considerando padrões físico-químicos). Estas observações são suportadas pela comparação entre a proteína N e proteínas da ordem Rodentia (hospedeiros naturais dos hantavírus) através de um sistema de janela deslizante, bem como por uma busca de motifs utilizando a ferramenta Pattern Search (Max Planck Institute). Assim sendo, a estimulação da resposta celular por estes alvos conservados potencializa a chance de imunização heteróloga (infecção pelo vírus “A” protege contra o vírus “B”) e reduz o risco de respostas autoimunes.

Figura 2. Alinhamento da proteína de nucleocapsídeo de 34 virus da família Bunyaviridae. Os blocos  acima do alinhamento indicam a localização de epitopos descritos em murinos (azul escuro) ou humanos (azul claro). Na parte superior da imagem a identidade é indicada por um histograma de cores, no qual o verde indica 100% de identidade. Observe que os epitopos murinos (hospedeiro natural) se encontram em blocos com identidade mais alta do que aquela observada para alguns epitopos descritos em humanos. Modificado de Rigo e cols., 2012.

Neste “contexto imunológico” se desenvolveu o Núcleo de Bioinformática do Laboratório de Imunogenética (NBLI), coordenado por Gustavo Fioravanti Vieira, agora Professor Colaborador do Programa de Pós-Graduação em Genética e Biologia Molecular (PPGBM-UFRGS). Com o tempo, o enfoque das pesquisas do grupo voltou-se da análise de sequências para a análise de estruturas, mantendo sempre o interesse central nos mecanismos da reatividade cruzada e da imunidade heteróloga. Em 2009 o grupo teve um projeto aprovado no Grand Challenges Explorations (GCE) da fundação Bill & Melinda Gates, tendo recebido um auxílio de U$ 100.000,00 dólares para desenvolver um banco de dados de estruturas peptídeo:MHC (pMHC-I). Os resultados desta nova linha de pesquisa serão apresentados na segunda parte deste post.

Post de Dinler Amaral Antunes
NBLI - Núcleo de Bioinformática do Laboratório de Imunogenética.
Aluno de Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Genética e Biologia Molecular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGBM/UFRGS).

3 comentários:

  1. Gustavo Quirino IBA FMRP USP3 de abril de 2014 às 10:13

    Desde que iniciei meus estudos em Imunologia fico muito curioso a respeito deste assunto...
    O paper de Probst et al (http://www.nature.com/ni/journal/v6/n3/full/ni1165.html) demonstra que se antígenos virais forem expressos em um contexto de falta de co-estimulação, nenhuma resposta antiviral é iniciada, pelo contrário, tem-se tolerância a estes antígenos. Isto nos remete então a pensar que quem vai decidir o que será imunogênico ou não, é o contexto, e não o peptídeo...
    Mesmo com esses dados, ainda fica a pergunta... em uma situação de infecção, haverá co-estimulação e apresentação de peptídeos próprios e virais, sendo então necessário que os linfócitos consigam diferenciar estes padrões físico-químicos dos antígenos.
    Parabéns pelo post e pelo trabalho!

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  2. Oi Gustavo, obrigado pelos seus comentários. De fato este trabalho de Probst e cols. (entre outros) demonstra que a co-estimulação também desempenha um papel na indução da resposta celular. Ainda não foram completamente esclarecido quais sinais são "suficientes" para determinar se uma interação TCR:pMHC (CTL-APC) irá desencadear a estimulação do linfócito (CTL), a geração de células de memória, a tolerância ou mesmo a anergia clonal, mas certamente as moléculas co-estimulatórias e as citocinas (contexto) estão envolvidas em vários destes mecanismos.

    Por outro lado, também não podemos com base nisso assumir que o peptídeo é irrelevante paro o reconhecimento, muito pelo contrário. Toda a especificidade da imunização se dá justamente pelo reconhecimento do complexo pMHC, o que nos permite vacinar indivíduos e induzir neles a formação de células de memória específicas contra o alvo vacinal.

    Nós sabemos, por exemplo, que a troca de um único aminoácido em um peptídeo viral imunogênico pode abolir a resposta citotóxica de uma população específica contra o peptídeo selvagem (http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/18582999). E isso foi observado in vitro, mantendo-se controladas todas as demais condições experimentais. Ainda assim, não podemos dizer que quem "decide" se haverá ou não resposta é o peptídeo, e não o contexto.

    Na verdade, o que fica claro a medida que avançamos no estudo desta área é que a resposta imunológica adaptativa é muito mais complexa do que imaginávamos. O número de variáveis envolvidas na estimulação de uma resposta e na geração de memória é absurdo, sobretudo se tentarmos considerar os fatores em nível populacional. Não basta pensarmos nas moléculas co-estimulatórias, nem tampouco na variabilidade do peptídeo (variabilidade viral, por exemplo). Conforme discutirei no próximo Post, um mesmo peptídeo pode adotar conformações distintas dependendo do MHC que o está apresentando, alterando completamente o desfecho da resposta (e existem mais de 8 mil alelos em humanos - http://www.ebi.ac.uk/ipd/imgt/hla/stats.html). Como se toda esta variabilidade não fosse suficiente, observamos que não somos capazes de explicar os desfechos observando apenas o complexo pMHC, precisamos considerar qual população de linfócitos CD8+ está envolvida no reconhecimento. Por exemplo, dois epitopos descritos como "cross-reativos" (são reconhecidos por uma mesma população de linfócitos) podem não ser reconhecidos por uma outra população de linfócitos (mesmo quando apresentando pelo mesmo MHC, nas mesmas condições).

    Pensar em vacinação em termos moleculares, para o desenho de alvos que potencialmente imunizarão a maior parte de uma dada população, estimulando tanto a resposta celular quanto a humoral, é um desafio fabuloso!!

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  3. Muito interessante esta discussão, Dinler!
    De fato, esta é uma situação imunológica muito complexa... espero pelos próximos capítulos!
    Novamente, parabéns pelo trabalho!

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