Mecanismos e resultados de sua operação
Nelson Vaz e Cláudia Carvalho
Podemos facilmente confundir resultados da operação de um mecanismo com o próprio mecanismo. O aparente giro do Sol em volta da Terra, tem como mecanismo o giro da própria Terra. Frequentemente, o mecanismo gerador contradiz o que o senso comum nos sugere.
É comum mostrar a crianças na escola que uma plantinha posta a germinar em uma caixa de papelão com uma janela aberta em um dos lados, se inclina na direção da luz. Isto acontece porque a luz retarda a divisão celular e esta procede mais rapidamente no lado mais escuro da planta e, como resultado, a planta se inclina para a luz. A inclinação da planta para a luz é um resultado de diferenças no ritmo de divisão celular, e não de uma decisão da planta, como o senso comum parece indicar.
Quando amebas de vida livre (Acantoamoebas) são expostas a uma mistura de hemácias de carneiro e de cavalo, elas fagocitam preferencialmente as hemácias de carneiro (Rabinovitch, 1970); esta diferença depende da presença de resíduos de galactose em sua membrana, que não existem nas hemácias de cavalo; as amebas são cegas às hemácias de cavalo. A fagocitose preferencial é um resultado desta diferença bioquímica. As amebas não “escolhem” o que fazem.
A exposição natural ou experimental a materiais “estranhos” à composição de um organismo (antígenos) pode evocar a produção de anticorpos específicos que podem desempenhar papéis defensivos importantes nas doenças infecciosas. Organismos sadios não executam respostas imunes para seus próprios componentes que, no entanto, são antígenos para outros organismos, como evidenciado, por exemplo, pela rejeição de transplantes. Assim, mecanismos de distinção (separação) entre moléculas estranhas e familiares seriam os passos iniciais da reatividade imunológica. Esta ideia é repetidamente ensinada às novas gerações e ela é difundida pela midia.
Mas seria o organismo realmente capaz de comparar os materiais que o penetram com seus próprios componentes, para depois decidir que eles são estranhos e demandam respostas imunes específicas? Seriam estes eventos cognitivos? Existe um reconhecimento imunológico? Ou será que eles ocorrem de forma espontânea, em decorrência da própria dinâmica molecular/celular de construção/manutenção do organismo, sem que haja qualquer comparação, qualquer deliberação (volição) por parte do organismo? - similarmente à inclinação das plantas para a luz e a fagocitose das amebas.
Seria a discriminação self/nonself o mecanismo gerador da atividade imunológica? Seriam as doenças autoimunes resultantes de respostas imunes dirigidas a componentes do organismo?
Durante o século passado acumulou-se uma abundante evidência experimental contrária à ideia de o organismo discrimina (separa, distingue) entre materiais próprios e estranhos (self/nonself). Estas evidências colidem frontalmente com os postulados centrais da teoria de seleção clonal (Burnet, 1959). Talvez existam mecanismos que operam como se fossem mecanismos cognitivos, como se fossem um reconhecimento capaz de separar materiais próprios de estranhos, mas que, na realidade, derivam dos próprios mecanismos de auto-construção e auto-manutenção do organismo. Estes mecanismos permitiriam ao corpo eliminar materiais estranhos sem nunca se aperceber de sua estranheza. A atividade imunológica participaria da fisiologia do organismo sem ser um mecanismo cognitivo, sem que ocorram decisões - que afinal, não são atribuições de moléculas.
Mudanças significativas no entendimento da atividade imunológica podem ocorrer quando passamos a conhecer mais detalhes sobre a estrutura dos tecidos. Por exemplo, os TCR de células T dendríticas residentes da pele são de uma diversidade muito limitada (são quase monoclonais) e estas células são ativadas quando se ligam a peptídeos resultantes de lesões nos queratinócitos contíguos. Isto desencadeia reações inflamatórias que podem ter efeitos defensivos (Mueller et al., 2013). Este é um mecanismo de reparo que pode ter consequências defensivas. Mas a defesa é um resultado do que se passa e não um mecanismo dedicado à defesa, uma parte da dinâmica de auto-criação/manutenção do organismo que não depende do reconhecimento de materiais estranhos. A atividade imunológica não é uma atividade cognitiva. As verdadeiras entidades cognitivas da imunologia são os próprios imunologistas (Vaz, 2011).
BURNET, F. M. 1959. The Clonal selection theory of acquired immunity., Cambridge, Cambridge University Press.
MUELLER, S. N., GEBHARDT, T., CARBONE, F. R. & HEATH, W. R. 2013. Memory T cell subsets, migration patterns, and tissue residence. Annu Rev Immunol, 31, 137-61.
RABINOVITCH, M. 1970. Phagocytic recogniiton. In: FURTH:, R. V. (ed.) Mononuclear Phagocytes. Oxford: Blackwell Scientific Publ.
VAZ, N. M. 2011. The specificity of immunological observations.
Constructivist Foundations, 6, 334-351.
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