No post passado eu mostrei cenas de um regabofe
festejando o sucesso da nova geração aqui nas terras de Nova Amsterdam.
Ontem jantando lá em casa, enquanto eu enchia a boca falando que a nova
Amsterdam aqui foi fundada por judeus que viveram um tempo no Recife, alguém
perguntou: e porque não chamaram de Nova Recife? Isso é o que dá escutar no rádio “Pernambuco
falando para o mundo” quando você é menino...
Eu comecei falando de amigos e do Recife porque
nessa sexta feira agora eu vou ao Recife, a caminho de Curitiba, onde me
chamaram pra falar no Simpósio Sul de Imunologia (mais no mês que vem). No
Recife, além de ver meus pais, vou encontrar Verônica Coelho, Lula Brigido e Fernando Pinto, meus amigos queridos da faculdade... Embora
tenhamos nos encontrado individualmente ao longo do tempo, faz 30 anos que não
nos encontramos todos ao mesmo tempo. Então já programamos uma visita à
faculdade, ao Pedro II, e a outros locais onde no fim dos anos 70 desafiávamos
o pouquíssimo juízo que tínhamos... Por isso bateu uma nostalgia assim da
escola, da juventude, e eu resolvi procurar um negócio que escrevi sobre
Bezerra Coutinho no meu computador. A busca no spotlight me trouxe
de volta uma carta que tinha escrito dez anos atrás pra Carol Guedes Pereira,
minha quase sobrinha... Dei de cara com o documento errado, que por acaso virou
o documento mais que certo...
…….
Carol querida
Ontem, quando você me mandou sua e-mail, eu
acordei escutando João Gilberto, que é uma paixão antiga. Na verdade acordei
vendo o Bom dia Brasil onde se falava de João, do show dele no qual você
estava. Lembrei da última vez que o vi, aqui no Carnegie Hall. E
lembrei que ele tinha sido a minha primeira descoberta de uma extraordinária
musicalidade brasileira. Lembrei também de que ali por volta de 73, 74, descobri
uma conexão entre João Gilberto - João Cabral, nas construções, na arquitetura.
E de que me convenci que eles eram extraterrestres, que habitavam o mundo
longínquo onde vive a arte, do qual eram seus enviados, ciganos. Uma
vez Bernhard Holland, o crítico de música clássica do NYT, disse que o equilíbrio
de João Gilberto é extraordinário.... “utter simplicity achieved by means of
unnoticed complication”... Dá pra ver que a carterinha do Mr. Holland
deve ser a de número 4...
Dei aula esta semana. Antes da aula meu colega
Jay Unkeless estava discutindo um paper com os alunos e eu descobri Cem anos de
solidão embaixo da cadeira de um deles. Peguei o livro e li a primeira página,
onde Garcia Marquez fala do cigano Melquíades. Eu tinha planejado mostrar
na minha aula vários vídeos de leucócitos movendo, de chemotaxis, de neutrófilo
bulindo. Disse no intervalo, brincando, que ia ser cinema. Na hora deu um
estalo e disse que alem do filme a gente ia ler o livro...Peguei o
livro e li o trecho que tinha acabado de ler... Nele, Melquíades sai fazendo miséria com
imãs, tirando pregos das paredes, e trazendo de volta objetos há muito perdidos.
No meio do assombro das pessoas ele diz: as coisas têm vida própria, tudo é
questão de despertar a alma delas. Era uma introducao perfeita pro conceito de chemokinesis.
Passei o dia pensando nessas conexões, no acaso
de ter descoberto no chão da sala de aula, um livro onde está escrito na
primeira página o mote, a chave: a arte e a ciência querem chegar à alma
das coisas. Pra que, não sei, talvez pra animar o mundo. Saí da
sala com pressa, não falei com ninguém. Não sei dizer o que eles pensaram. Meu
prof de patologia, Bezerra Coutinho, falava de Gulliver, de Pantagruel, e de
carneiro com menta nas suas aulas na UFPE. Ele era o que se chama aqui de
um polymath, o capeta. Sabia de tudo, de schistosoma a arquitetura.
Era uma figura muito interessante. Usava óculos
verdes de tão grossos, tinha um andar desengonçado e uma voz pra lá de cavernosa. Eu tinha certeza que ele estava se divertindo com aquilo tudo.
Hoje eu me divirto pensando que estou bezerreando meus alunos, ensinando que tudo
vale a pena se o juízo passeia e o coração é bom.
um beijo
Sérgio
ps. o ímã de Garcia Marquez é ...utter simplicity
achieved by means of unnoticed complication....
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Em tempo: Carol Guedes Pereira hoje trabalha
na Rockefeller, depois de uma residência em Harvard. Além de médica e
pesquisadora, é escritora (o livro
dela aqui). Outra presença brilhante da nova geração de brasileiros em Nova Amsterdam
Hoje eu me divirto pensando que estou bezerreando meus alunos, ensinando que tudo vale a pena se o juízo passeia e o coração é bom.
ResponderExcluirTive sorte de ter professores que me fizeram pensar. Muitos deles na escola, outros na vida; meus amigos, minha familia, muita gente. Aprendi muito. Sempre que posso falo nessas experiencias, pra compartilhar o que aprendi. O verbo bezerrear é uma homenagem ao prof Aluizio ai de cima. O que ele fazia na sala de aula era um troço heterodoxo, uma provocacao. Nao aprendi patologia nenhuma com ele. O que ele me ensinou é que ele tambem estava aprendendo.
ResponderExcluirImaginei o senhor tendo aula com John Keating (Robin Williams) em "Sociedade dos Poetas Mortos".
ResponderExcluirBem vindo a nossa Veneza que fundou a sua Nova Amsterdam! Também conto a historia dos Judeus de Recife aí, e adoro João Cabral
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