terça-feira, 22 de maio de 2012

Eu tinha que ir



No fim de 79 a Rússia (ainda União Soviética) invadiu o Afeganistão e criou um cu-de-boi cósmico.  Aquilo tinha repercussões na Europa…Mas eu tinha que ir, desse o que desse. A passagem já  estava comprada.  A economia era meio precária, mas eu tinha que ir. Saí do Recife com 250 dólares no bolso com uma passagem Recife-Lisboa-Madrid, e com a intenção de fazer o resto de trem. Isso pra passar 6 meses na Alemanha, fazendo um estágio num laboratório. Estágio esse que foi conseguido via Konny Kauffman, um biofísico alemão que conheci na UFPE.  Konny me disse que me pagavam 500 marcos por mês pra trabalhar como estudante num lab no Max-Planck Institute onde ele trabalhava, em Gottingen. Por sorte tinha um alemão fazendo neuroendócrino lá que meu professor de Fisiologia, prof. Ladosky,  também conhecia, e ele me aceitou.


Parei meu curso de medicina por seis meses, peguei o sobretudo de lã do meu tio, o backpack de Lula, e me piquei. Não tinha Expedia, não tinha Google, e eu não tinha ideia de porra nenhuma. Cheguei em Gottingen, fui bater  na Sternstrasse, nummer 5. Na casa de Konny e Regina, figuras inesquecíveis… A primeira vez que vi Konny em Recife tomei um susto. Um alemão com cara de hippie, com uma barba de hippie, usando uma calça de veludo naquele sol do Recife, com um sapato  com o salto na frente….O sujeito além de parecer doido, era, e é doido. Doido por tudo. Falava português, inglês, francês, alemão, tudo misturado. E tocava sanfona, queria saber o que era maracatu, e que queria comprar todos os discos do mundo. Era impossível não conversar com ele e com Regina, igualmente interessada em música, mas menos doida. Eles me receberam super bem, morei com eles um mês…

Gottingen fica ao sul de Hannover, no norte da Alemanha.  E’ uma cidade universitária, onde vários matemáticos e físicos importantes trabalharam no passado. Gauss, o da curva, passa a eternidade no cemitério local. Como toda cidade universitária tinha mil agitos, gente falando, música, política, cinema. O instituto ficava um pouco fora da cidade, e era formado de uma série de 5 edifícios (as torres da foto). Era moderno, futurista. O meu lab ficava na última torre, onde ficava o departamento de neurobiologia cujo chefe era Otto Creutzfeldt, filho do sujeito que descreveu a Creutzfeldt-Jakob disease, uma doença degenerativa do sistema nervoso, que nessa época ainda não era conhecida como a forma humana da doença da vaca louca. Credo. Com Creutzfeldt trabalhava meu ex-professor da UFPE Rubem Guedes. Rubinho e Vilma, mulher dele, estudaram alemão comigo no Recife. Além de serem pessoas muito especiais, eles eram responsáveis pelo meu sustento nos dias de domingo, quando ia com Ulrike  comer feijoada (Vilma era craque em descobrir os melhores defumados alemães pra feijoada) e matar saudades do Brasil (hoje, que a gente virou Noruega, esse negócio não existe mais). Ulrike falava um espanhol perfeito, e estava terminando uma tese sobre Paulo Freire. Tinha estudado no México e meses depois iria pra Nicarágua, ensinar espanhol pros índios. Da janela do quarto dela vi num domingo de manhã, atônito, um mar de gente nua deitada no gramado, saudando a chegada da primavera.  Bote choque cultural nisso…

O meu chefe lá era Wolfgang Wuttke, um sujeito que estudava regulação neuroendócrina da prolactina.  Wuttke me recebeu muito bem e me apresentou ao lab. O gênio residente era um sujeito chamado Mansky, que era um nazista de carteirinha. Fora ele, tinha uma polaca muy sexy pero sênior, que se chamava Eva (ai jesus), um tecnico gente fina e um outro degredado filho de eva, um  iugoslavo chamado Miroslav Demajo,  que dividia comigo a honra de coletar cérebro de rata às 2, 3 e 4 da manhã. Ontem guguei o indivíduo e descobri que hoje ele é um ativista ambiental na Servia (pra você ver que nem todo mundo quer ficar nesse lero aqui). Miroslav já  tinha uma posição de professor, tinha família e tal, mas foi passar um tempo lá, o que deu oportunidade pro Wuttke fazer os experimentos que alemão nenhum ia fazer. Nos éramos os gastarbeiters deles (esse era um termo cruel… eles chamavam os turcos e outras rapaziadas de trabalhadores convidados). Mas não foi tão ruim assim, uma vez que eu aprendi muito e vi, pela primeira vez, como se fazia ciência no primeiro mundo. Mil diferenças: primeiro um lugar imenso, com cientistas trabalhando o tempo todo, de dia, de noite, no fim de semana. Segundo, uma tremenda riqueza em equipamento, recursos, uma biblioteca magnífica. Terceiro, um sistema de suporte inimaginável. Se você precisasse de um parafuso com 1 mm de espessura pra atarrachar na cabeça de um rato, tinha uma oficina que te entregava na mão, no outro dia, senão na hora. No fim do dia, o técnico pendurava a bata e saia dirigindo sua Mercedes, em vez de arriscar o ônibus de Camaragibe.  O biotério era imaculado, rato ali vivia vida de bacana.  Finalmente, se discutia não só o que saia na literatura, mas o que ia sair do lab. Essa talvez fosse a diferença maior de todas.  Em Recife éramos mais espectadores. Líamos a literatura, sabíamos o que e quem, mas não produzíamos. Ali, as pessoas queriam ser atores. Aliás, não só queriam, tinham que. Eram pagos para. E se cobrava. Não existia posição fixa (o contrato era por 5 anos). Renovável se o cara fosse o cão-chupando-manga. O diretor do instituto era um prêmio Nobel, Manfred Eigen, e ele não tinha sido eleito pelos bedéis e funcionários. Os meus vizinhos no andar de cima eram Erwin Neher e Bert Sakman, que inventaram a técnica de patch-clamping e anos depois ganhariam o prêmio Nobel.  Ordenava hoje, chegava ontem.  Aquele lugar era realmente outra estória. E ainda é.  
E a que se dedicava o vosso menestrel? Naquela altura do campeonato já  se sabia que a função hipofisária dependia de hormônios produzidos pelo hipotálamo. Mas o que faltava saber era como os neurotransmissores clássicos como a dopamina, o GABA e o glutamato, regulavam a produção de hormônios pela hipófise. No caso da prolactina já  se sabia por essa época, existia uma regulação pela dopamina a nível de célula hipofisaria, diretamente, uma vez que existia um sistema vascular que ia do hipotálamo para hipofise, e que carrega não só neuropeptídios, mas também neurotransmissores clássicos. No caso dos outros neurotransmissores, o negócio era meio embrulhado. O alemão me pediu pra examinar as concentrações de GABA e glutamato no cérebro de rata, fazer um estudo cinético, ver se essas concentrações mudavam em áreas hipotalâmicas específicas e ver se essas mudanças correlacionavam com produção de LH, prolactina e FSH no soro. Era um troço completamente descritivo. Hoje, se eu escrevesse uma grant sobre isso, nesses termos, seria assassinado pelas study sections do NIH (eu vou voltar a esse negócio num outro post).  Colegas, isso exigiu que matássemos uma quantidade grande de ratas. Isso tinha que ser feito rapidamente para evitar stress das mesmas. Trabalhávamos eu e Miroslav com umas luvas de amianto, pra pegar as moças e levá-las para uma guilhotina. Ora, a chance do dedo ir com a cabeça da rata era grande.  Uma vez concluído o evento guilhotinesco, o corpo era posto no funil, colhia-se o sangue para medir hormônio e a cabeça era rapidamente processada, digo, o cérebro era removido, o hipotálamo dissecado e posto em gelo seco. Um outro estudo envolvia colheita dos cérebros para histologia e punch de algumas áreas hipotalâmicas mais precisas. A cinética não era brinquedo. As vezes  tinha experimento às 11 e às 3 e meia da manhã . Dormia um pouco e acordava meio desorientado, pra pegar rato e botar na guilhotina.  Apesar disso o pessoal ficou entusiasmado, porque vimos algumas diferenças e um dia o chefe perguntou se eu queria ir pra Berlim prum simpósio que ele estava organizando. Claro que sim, claro que sim. 

E lá fomos nós pra disneylandia.  Foi uma aventura ir de carro cruzando a Alemanha Oriental e chegar a Berlim. Chegar na capital da Guerra fria, e ir visitar Berlim oriental, a vitrine do comunismo europeu.  Berlim foi demais, e ainda é demais (algumas fotos recentes no link). Se não foi vá correndo.  E o meeting, meu primeiro meeting, foi muito bom. Vi cara a cara os caras que escreviam os papers. Tive a chance de conversar com eles. Escutei gente falando mal do trabalho dos outros (coisa que eu pensei só existisse no terceiro mundo). Vi que sabia muito pouco, mas que começava a saber alguma coisa, e que produzia resultados dos quais podia falar. Esse meeting foi muito importante pra mim. Como foram importantes aqueles 6 meses no Max-Planck. O material que obtive me deu o suficiente para escrever minha tese de mestrado. E meu chefe pos algum material em duas revisões que escreveu. Isso ai, o fato de ter estudado medicina e duas boas cartas de recomendação me abriram a porta pro meu doutorado aqui nos Estados Unidos. E tudo isso aconteceu por causa do meu desejo de entender o mundo lá fora,  pelo estágio na Fisiologia com Ladosky, pela curiosidade compartida com meus amigos queridos, e por encontrar Konny Kaufmann. Ele me abriu uma grande porta. Um figuraço. 

No cabeçalho do site dele tá lá, emprestado de Aristóteles: ensinar não é encher um vaso, é acender uma tocha.

4 comentários:

  1. Mais uma vez um texto animador e inspirador.
    Obrigado professor Lira

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  2. O senhor deveria escrever um livro com estas histórias... Certeza!

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  3. Eu ia dizer o que o Julio já disse.
    Sensacional, como sempre!

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  4. Ler suas cronicas e sempre um alento. Os olhos brilham! Parabens Josi

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