quarta-feira, 4 de abril de 2012

Uma apresentação de antígenos letal que não depende de células dendríticas


A doença enxerto versus hospedeiro (GVHD) é uma complicação frequente em pacientes, de alta morbidade e letalidade, representando a principal barreira para o transplante de medula óssea ou de células-tronco hematopoiéticas. A doença resulta da atividade de células T do enxerto, que passam a ser estimuladas de forma contínua por antígenos do hospedeiro. Mesmo quando as moléculas MHC de enxerto e hospedeiro são idênticas, a doença é induzida pela apresentação de peptídeos do hospedeiro (conhecidos como antígenos menores de histocompatibilidade). A doença aparece como uma inflamação difusa e agressiva no sistema digestivo, pele e pulmões. As células T CD4 do enxerto são responsáveis pelo ataque à mucosa gastro-intestinal e pela letalidade que resulta deste ataque.



Esquerda: histologia da mucosa normal do colon. Aparência normal das criptas e lâmina própria com áreas focais de celularidade aumentada. Direita: Histologia de GVHD gastrointestinal severa, com quase completa destruição das criptas e exposição da mucosa do colon. Foto: Dr. Joel Greenson, University of Michigan.


A célula apresentadora de antígenos (APC) do hospedeiro é que mantem a doença em atividade, estimulando as células T do enxerto. No entanto, a sua identidade nunca foi esclarecida. Por muito tempo, foi inferido que esta célula deveria ser uma célula dendrítica (DC), e portanto, ser de origem hematopoiética. No entanto, um estudo detalhado mostrou que os antígenos menores responsáveis pela GVHD aguda eram derivados de tecidos não-hematopoiéticos (Jones SC, Murphy GF, Friedman TM, Korngold R. Importance of minor histocompatibility antigen expression by nonhematopoietic tissues in a CD4+ T cell-mediated graft-versus-host disease model. J Clin Invest. 112:1880-1886, 2003). Neste estudo, a APC responsável não foi caracterizada, restando a possibilidade de que os antígenos menores não-hematopoiéticos fossem liberados e, de alguma forma, capturados e apresentados por DCs.

No entanto, um novo estudo, de Motoko Koyama e colaboradores, demonstrou claramente que as DCs do hospedeiro não são responsáveis pela GVHD aguda. As APCs do hospedeiro que são as responsáveis são mesmo de origem não-hematopoiética, e correspondem a fibroblastos, podócitos e miofibroblastos do tubo digestivo (Koyama M, Kuns RD, Olver SD, Raffelt NC, Wilson YA, Don AL, Lineburg KE, Cheong M, Robb RJ, Markey KA, Varelias A, Malissen B, Hämmerling GJ, Clouston AD, Engwerda CR, Bhat P, Macdonald KP, Hill GR. Recipient nonhematopoietic antigen-presenting cells are sufficient to induce lethal acute graft-versus-host disease. Nat. Med. 18; 135-142, 2012).

Infelizmente, a indução da GVHD depende de uma série de eventos, que são também necessários para realizar o transplante de medula óssea. Primeiro, a irradiação letal,que irá destruir o compartimento linfóide do hospedeiro, é altamente pró-inflamatória, devido à liberação de alarminas e adjuvantes endógenos derivados das células em necrose. As alarminas induzem a liberação de citocinas pró-inflamatórias por fagócitos. Segundo, esta inflamação sistêmica, por sua vez, induz expressão aberrante de MHC de classe II em vários tipos de células que são imunologicamente “amadoras”, como queratinócitos, epitélios e as células mesenquimais não-hematopoiéticas do intestino. Terceiro, após o transplante, as células T virgens do enxerto migram para os órgãos linfóides, que agora estão “vazios”. No órgão linfoide “vazio”, estas células T sofrem um processo vigoroso de proliferação homeostática, que é independente de antígeno, e que levará à diferenciação de células de memória. Existem trabalhos mostrando que as células T virgens é que são as mais importantes na GVHD devido à sua capacidade de entrar em órgãos linfoides. E existem trabalhos mostrando que a existência dos órgãos linfoides secundários é necessária para desenvolver GVHD. Quarto, estas células de memória do enxerto saem do órgão linfóide e entram nos tecidos-alvo, aonde irão interagir com as APCs amadoras (como fibroblastos) que estão expressando moléculas de MHC classe II de forma aberrante e apresentando peptídeos derivados do hospedeiro. Quinto, esta reatividade reforça e perpetua a expressão aberrante de MHC classe II nas APCs e leva à formação de células T CD4 efetoras no local, que lesionam o tecido.

Por quê as DCs, que são as APCs mais potentes, não são capazes de mediar este processo ? O mais provável é que as DCs do hospedeiro estimulem tão fortemente células T do enxerto, que ràpidamente levem à apoptose destas (morte induzida por ativação). Em concordância com esta idéia, o estudo de Koyama e colaboradores mostrou que a depleção de DCs na verdade, piora e acelera o curso da GVHD, sugerindo que DCs até mesmo protegem o recipiente, possìvelmente por deletar uma proporção das células T efetoras.

Estes resultados acabam de ser confirmados por um estudo independente feito pelo grupo de Warren Shlomchik. A depleção radical de células dendríticas convencionais e plasmocitóides do hospedeiro não impediu o desenvolvimento de GVHD. Os autores também atribuem o fato à natureza dos aloantígenos em questão, que estão expressos em todas as células do hospedeiro, e que potencialmente poderiam atuar como APCs (Li H, Demetris AJ, McNiff J, Matte-Martone C, Tan HS, Rothstein DM, Lakkis FG, Shlomchik WD. Profound Depletion of Host Conventional Dendritic Cells, Plasmacytoid Dendritic Cells, and B Cells Does Not Prevent Graft-versus-Host Disease Induction. J Immunol. 2012 Mar 14. [Epub ahead of print])

Os vilões seriam as células amadoras, justamente por estimular células T, sem matá-las. Este estudo revela um conceito inesperado da reação enxerto versus hospedeiro, que precisará ser equacionado à procura de procedimentos preventivos mais eficazes para este grande desafio da medicina.

Post de George A. DosReis. UFRJ.



Um comentário:

  1. Puxa que aula! Adorei os recursos didáticos (figuras e fonte negrito). Obrigada professor!

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