quinta-feira, 24 de março de 2011

O tal mecanismo




Um blogue atrás eu falei bem da Bahia. Agora é a vez de Minas Gerais, terra de personagens fundamentais pra história do Brasil, terra de lindas montanhas, grande cozinha, e terra de queridos amigos que de vez em quando dão as caras por aqui.
Minas também é terra de grandes escritores como Guimarães Rosa e Carlos Drummond de Andrade. Drummond, como voces todos sabem, é o nosso poeta-padroeiro. Digo isso porque nós cientistas brasileiros frequentemente usamos um verso dele pra falarmos de nossas experiencias com as agencias de pesquisa, com as importações (“no meio do caminho tinha uma pedra”) … E acabamos usando outro quando nos damos conta do abacaxi a descascar (“e agora José?”) … Nosso grande Drummond escreveu tambem um outro belíssimo poema que tem tudo a ver com o que fazemos. O poema se chama A máquina do mundo. (http://www.releituras.com/drummond_amáquina.asp).
Falo nesse poema não só porque ele é fantastico, falo também porque quero lançar um pedido de incentivo fiscal, Lei Rouanet, presse nosso blog aqui, já que isso anda tão em moda….
Neste magnífico poema, a máquina do mundo se oferece, se abre - majestosa e circumspecta - ao entendimento; revelando o mecanismo de tudo… “Olha, repara, ausculta….essa total explicação da vida, esse nexo primeiro e singular…”. E por aí vai… Negócio muito sério, muito bom.
Hoje, portanto, vou me dedicar a fazer uma reflexão, parte circumspecta (a de cima), parte nem tanto (a de baixo), sobre o grande mistério do funcionamento da vida, desse pedaço da máquina do mundo. Mais especificamente, vou refletir sobre o “mecanismo das coisas vivas” e sobre o que dele entendem cientistas e editores de revista.
Pra começar eu quero deixar claro que eu não tenho muita fé em entendimento claro, preciso e total das coisas. Pra mim, entender o “mecanismo” da vida, é um negócio muito complicado, embora eu tenha cá minhas esperanças. É complicado, complicado mesmo. Complicado em grande parte porque não temos uma descrição acurada dos seus componentes. Não conhecemos direito suas porcas, seus parafusos. Pior, não temos idéia do tamanho do trem (salve Minas), nem como e porque apita.
Porisso é dificil entender o comportamento quase psicótico de muitos colegas quando revisam nossos papers ou nossas grants. Cadê o mecanismo? Tá faltando o mecanismo… ou pior, esse mecanismo não é novo…
Exigir explicações mecanísticas virou rotina nas revisões dos papers, como virou rotina pedir cada vez mais experimentos (muitos deles completamente desnecessários). Se eu descubro que Tiririca é roxo, e mostro uma fotografia pra provar, digo onde foi tirado o retrato e tal, aparece um gaiato pra perguntar qual foi o mecanismo que fez Tiririca roxo, ou se o roxo faz dele santo. Ora, isso não e’ assunto do meu paper seu Zé. Nessa hora voce escreve uma carta de volta pro editor, e muito respeitosamente lembra que o que se descobriu foi que o nobre parlamentar e’ roxo. Só. Se voce tiver sorte de pegar um editor equilibrado, parabéns…O problema é que tem outros que não são e que obedecem a velha maxima do caudilho gaúcho: pros amigos, tudo; pros inimigos, a lei… digo: pros amigos, tudo; pros inimigos, o mecanismo… Esses individuos lhe descem a ripa: Não tem “mecanismo”, voce tá fora, isso aí é muito descritivo… E isso, meus amigos, dói, dói muito, porque descritivo hoje em dia é pejorativo, é a pior desgraça…
Aprecio e defendo os estudos mecanísticos, mas estou convencido que existe uma mega peitica contra estudos descritivos. Como se eles fossem subraça, subimportantes. Nós imunologistas (eu inclusive, se dão licença) damos muitas furadas porque não entendemos anatomia, porque não sabemos histologia, não levamos em conta o fator tempo, etc…Não descrevemos as coisas direito, mas somos craques em gerar grandes modelos e grandes teorias (muitas delas paralisantes - quem vive de escrever grant pro NIH que o diga). Mas isso não é exclusivo da nossa tribo. Tem mais pecador por aí, amém.
Insisto: o conhecimento da coisa em si, do parafuso, da porca, é fundamental. Fundamental. Respondam aí, tem coisa mais descritiva que sequenciar o genoma? Lembram do paper que comecou a revolução? Aquele de 53 de Watson & Crick que terminava assim: “it has not escaped our notice that the specific pairing we have postulated immediately suggests a possible copying mechanism for the genetic material”. Prestem atencao que eles depois de descreverem a molecula de DNA, sugerem um mecanismo… mas não provam. Nem podiam, tinham acabado de construir a catedral (na verdade um verdadeiro um Vaticano). Mudaram a cara da biologia.
Então… Nem sempre dá pra explicar direito o mecanismo, principalmente se não se conhece direito a senhora porca (peraí, não é isso que voce tá pensando…). Depois, nem toda descrição é ruim! E se voce encontrar um mecanismo novo que explique como funciona a máquina da vida, parabéns!! Um mecanismo novo, tinindo, é sorte grande…Principalmente se for verde. Me explico: em espanhol se diz …”mas raro que un perro verde”…muito estranho, mais estranho que um cachorro verde…Dada a política editorial de muitas revistas, de suas demandas jornalísticas, publicitárias, é vital que seu achado ou o seu “mecanismo revelador” seja no mínimo, verde.…E que seja de preferencia tão chamativo quanto um lalau verde mordido pela Lady Gaga … Tem que ser diferente, bem diferente, pra dar uma chamada na capa, pra vender o magazine. Mas tem um pequeno problema…se seu mecanismo for muito verde o dono da revista vai querer botar na capa que voce vai curar “enflamação da prosta” feito as garrafadas de José Cosmo da Silva.

E cuidado pra que ele não queria anunciar o seu trabalho de uma maneira mais esparrenta do que esse cartaz aí da igreja do pastor Lúcio Hermano.

Numa hora dessas eu aconselho que voce seja forte; resista, use a poesia. Recorra aos versos magistrais de Reginho, o rei do tecnobrega: vou não, quero não, posso não…e nem dê explicação….
PS. It has not escaped my notice that the male behavioral trait described by Reginho et al. (http://www.youtube.com/watch?v=uYFFNOqwFq0), immediately suggests the existence of partner-driven inhibitory mechanisms affecting pleasure centers in the brain. That study has become a citation classic, having been downloaded over 2 million times. However, a recent report by Los Borrachos Enamorados et al. (http://www.youtube.com/watch?v=QS3G_ErpFqY) indicates that such behavioral trait is not shared by all males, calling into question the universality of such mechanisms.
PS2. Peitica,em limoeirense, é implicância.
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6 comentários:

  1. Sérgio - bom de maisss, sô!!!

    Concordo em gênero, número e grau quando diz que não podemos explicar tudo o que pesquisamos em minúcias, uma vez que simplesmente o nível global de conhecimento ainda é muito baixo. Você citou Watson & Crick e o DNA - isso não tem nem 60 anos! Pensando que a humanidade tem alguns milhares de anos, acho que ainda estamos engatinhando em muita coisa...

    Lembro de uma discussão sobre a teoria do Caos que tive com um amigo a alguns anos atrás, este um famoso físico quântico brasileiro radicado aí em New England. Ele defendia que o Caos era totalmente desprovido de 'mecanismos'. Disse a ele que não entendia dessa forma - acredito que o ser humano define algo como caótico quando simplesmente não tem embasamento suficiente para entender o assunto. Seria como pedir para um analfabeto ler e interpretar um texto do Saramago! Parece que ele mudou de opinião atualmente, pois me disseram que até livro escreveu sobre o assunto...

    Voltando a Imunologia, deixo uma pergunta para você e para os demais frequentadores deste espaço - como podemos montar nossos 'quebra-cabeças' se não sabemos o número e formato das peças que o compõe?

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  2. Excelente post, Prof. Acho que querer saber sobre o funcionamento das coisas é algo instrínseco da espécie humana, realizada tão frequentemente pelos grandes filósofos. Afinal, conhecer o mecanismo nos oferece vantagem se desejamos modificá-lo. É engraçado que grandes descobertas foram fruto apenas da observação, sem muito embasamento, sem muito mecanismo. Facilmente fascinante.
    Sobre o quebra-cabeça que o Tiago menciona, aprendi quando bem pequena que era mais fácil de montar começando pelas pontas, independente do seu tamanho. No entanto, para isso teriamos que conhecer o formato dessas peças mais externas que apresentam um ou dois lados "cegos". Com isso, acho que o número vai ser algo menos relevante que a forma, já que ela permitirá apontar ou não para uma continuidade, nos mostrando quando parar. O que desconfio que vai levar muito tempo =)

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  3. O que eu acho pior é que nós estamos descobrindo novos mecanismos pros mesmos problemas há décadas.

    O que nós precisamos fazer é encontrar novos problemas, problemas que sejam mais relevantes do que, por exemplo, quantos chapéus diferentes uma célula T pode colocar.

    Mas as primeiras abordagens a novos problemas são por natureza "fenomenológicas" e "descritivas" (com o perdão das más palavras); ou seja, essa política acaba por desincentivar o risco e a descoberta.

    (Exatamente como no caso das barreiras à importação, políticas "mecanocêntricas" também resultam em um aumento excessivo no risco associado à inovação e à criatividade. Outro tiro no pé.)

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  4. Opa Tiago, meu comentario é principalmente uma defesa da "subraça" dos estudos descritivos. Uma modesta denuncia contra o eterno preconceito e um sarro com um tipo de comportamento neurotico de revisores, editores, etc.

    Quanto a achar se dá pra chegar a algo mesmo com conhecimento minimo, minha resposta e': claro que sim. O importante é ser honesto, reconhecer as limitacoes, aceitar interpretacoes alternativas, questionar.

    grande abraco, bom fim de semana pra voces...

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  5. Fantástico!
    Não vale a pena publicar isso em uma revista científica? Será que alguém publicaria?
    Eu concordo plenamente com o Sérgio. E digo mais, na maioria das vezes que as revistas pedem isso, o(s) experimento(s) adicionais saem tão ruins que confundem mais ainda os leitores/cientistas. Além do mais os exps adicionais temtam sempre confirmar paradigmas estabelecidos, o que torna um circulo vicioso e dificultam as quebras de paradigma e novas descobertas.

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