BLOG DA SOCIEDADE
BRASILEIRA DE IMUNOLOGIA
Acompanhe-nos:

Translate

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

De volta ao começo

Eu não sabia nada. Nada de nada. Sabia, é verdade, que jabuticaba era bom, mas ali crescendo um plasmideo enquanto engolia sapo - e meu  orgulho - isso não adiantava muito. 

Quando cheguei a Califórnia em setembro de 83, vindo do Recife, eu trazia comigo um diploma de médico. Médico este que não sabia fazer um parto. Pior, estava autorizado pelo dito papel a abrir o bucho de quem quer que  fosse nas comarcas de Glória do Goitá, Cabrobó e Afogados da Ingazeira. O Estado brasileiro me dava a total licença pra tanto. Uma temeridade, um troço assustador. Outro dia soube que ainda continua assim. Aparentemente não existe um teste de competência ao fim do curso de medicina. Será possível?

Bom, em San Diego me botaram pra fazer prova com os nativos, e eu pensava que a UCSD era a UFPE, onde se estudava de véspera. Resultado: Ferro city. Todo dia tinha que ler 100-200 paginas do livro. Não era brinquedo, tinha que suar a camisa, e todo mundo me dizia que pra mim aquilo devia ser muito fácil, que eu ja tinha estudado aquilo. Bom, eu tinha estudado algo vagamente familiar 6 anos atras, e o que os caras estudavam era ensinado pelos caras que tinham escrito os livros. Era arrasadora a minha ignorancia. Eu não sabia nada de imunologia, nada de biologia molecular. 


Fui fazer uma rotation no Salk com Wyle Vale, um sujeito que era bambambam em neuroendocrino. Ora, o cabra era bom, mas o ex-chefe dele, que também tinha um lab la, Roger Guillemin, tinha ganho o prêmio Nobel. E tinha aquela guerra de ego. Mas isso me interessava muito pouco, eu queria aprender. Um dia, enquanto injetava uns animais, escutei um sujeito falando com sua estudante, enquanto colhia cérebros de rato. Descobri depois que eles tinham acabado de publicar  um paper na Nature onde descreviam pela primeira vez alternative splicing em eucariota. O gen da calcitonina, quando spliced de uma maneira diferente, da origem a um outro hormônio: o calcitonin-gene-related peptide (CGRP). No tempo livre eles aplicavam técnicas de biologia molecular pra entender como os gens endocrinos eram regulados.  Ora, aquela endocrinologia era mil vezes mais interessante do que a que eu fazia. No fim dessa rotation no Salk, voltei pra UCSD e fui bater na porta de Geoff Rosenfeld (o supracitado). Ele me perguntou se eu sabia alguma biologia molecular. Eu não sabia picas. Respondi que queria aprender. Ele, meio relutante, me deu uma chance. Nesses três meses minha vida mudou. Aprendi muito. Aprendi a crescer plasmídeos, transfectar células, fazer CAT assays (ha, quero ver quem se lembra disso), marcar DNA com radioisótopo, clonar, correr gel, fazer Northern e Southern blots. O créu. Aprendi muito como o pessoal do lab. Eles vinham das escolas da zelite: Harvard, Berkeley, UCSF, MIT. O povo era foda. O povo trabalhava pesado, pesado. De noite ate tarde, fim de semana, o escambau. Ninguem ficava com lero de tão me explorando.

Encontrava com Geoff na frente da maquina de fazer oligo as 11 da noite. Ele não tinha tempo. Nessa época deram pra ele uma das primeiras posições do Howard Hughes. Pra ele e pro colaborador dele, Ron Evans, que descobriu pouco tempo depois muitos dos steroid receptors, ganhou o Lasker, e vai certamente emplacar o talzão daqui a pouco (escrevam).

O meu projeto era o seguinte. O hormônio de crescimento é produzido por células da hipófise. Célula de dedo tem o gen mas não expressa. Por que expressa na hipófise e não no dedo? Na época se acreditava que isso se devia ao fato de que fatores transcripcionais estavamm expressos em células da hipófise, e que esses fatores interagiriam com regiões especificas do gen do hormonio de crescimento. Ora, se isso era verdade, esses elementos genéticos deveriam ser discretos e muito provavelmente localizados no promotor do gen ou a curta distancia. Como sera que se poderia testar isso? Começamos a usar uma técnica que consistia em ligar pedaços do promotor do GH a um gen codificando um reporter (comecamos usando CAT gene e depois luciferase). Criavamos esse gens híbridos e transfectavamos em células derivadas da hipófise ou de outros tecidos como mama, rim, etc. Se nossa regiao regulatoria estivesse em determinada area do promotor, teríamos expressão do CAT em células hipofisarias e não nas outras. O pessoal do lab de Ron tinha tentado antes sem sucesso. Eu meti as caras, fiz algumas construções, transfectei e pimba, achei um elemento que promovia expressão em célula da hipófise e não nas outras. Resultado, juntou-se isso com um outro trabalho mais avançado no gen da prolactina e mandou-se o paper embora. Eu não era o primeiro autor, mas em três meses tinha saído do zero a esquerda pra alguma coisa. Geoff me perguntou que é que eu queria fazer, eu na lata respondi que queria fazer meu doutorado no lab dele. Ele me perguntou a seguir: pra fazer o que? Eu disse que seria testar se esses elementos genéticos poderiam direcionar a expressão de um reporter num camundongo. Ele me perguntou se eu queria aprender a fazer animais transgenicos. Imaginem o que eu respondi.

E aprendi o negócio. Negócio este que me abriu as portas prum mundo muito interessante, e pros meus empregos subsequentes. No fim de 2013 li os primeiros papers descrevendo o uso do sistema CRISPR/Cas9 para fazer modificacao no genoma de camundongos.  Chamei dois dos meus postdocs e lhes disse: voces tem que aprender. Meu argumento foi simples. Contei a estoria ai de cima. Contei como aquele desafio me trouxe pra esse mar. Em dois meses fizemos nossos primeiros bichos… O negócio funciona. Ja fizemos de tudo, knockout, single-base pair mutation, knockins, o creu.  Da gosto ver como eles aprenderam, e como são bons no que fazem.


Estou muito feliz por ter dado uma viajada pro começo da minha vida cientifica, prum tempo de descobertas, de grandes expectativas, desta vez com outros camaradas. É fantástica esta sensação de aprender, de aplicar uma nova tecnologia. E é incrível pensar que esta ferramenta (CRISPR/Cas9) não deve nada  a tão propalada translational medicine (mais num outro post). É fruto da ciência básica, do entendimento de um mecanismo de defesa em bacterias. Tesouras moleculares abrindo o bucho da ignorância. 

Mais uma vez - e sempre - viva a ciência básica, viva a descoberta.

Comente com o Facebook :

Um comentário:

  1. Mais vous êtes super, Dr Lira!!!! C´est vraiment genial cette post!!!!

    ResponderExcluir

©SBI Sociedade Brasileira de Imunologia. Desenvolvido por: