quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Ensino x Pesquisa em Ensino: uma questão, também, da Imunologia.


Não é raro escutarmos nas conversas entre os colegas da nossa área - no momento de cafezinho, reuniões e outros eventos dos departamentos - o tema: ensino. E aí a confusão sobre esse tema está instalada. Pior, as concepções sobre o tema ficam cristalizadas em formas de verdades que vão sendo passadas de geração em geração nos laboratórios. A principal delas, e uma das mais importantes em termos da estrutura do tema, é: qual a diferença entre Ensino e Pesquisa em Ensino?
Na grande área das humanidades do conhecimento a questão do ensino e pesquisa em ensino estão estruturadas claramente como entidades distintas. O que são de toda verdade e que apresentam algumas interfaces entre elas que são pertinentes e de direito. Entretanto, nas grandes áreas das ciências experimentais, às quais estamos inseridos, as vertentes de ensino e pesquisa em ensino assumem a marginalidade na face do saber como:
i) tema de pesquisa para ser feita quando você estiver as vésperas da aposentadoria;
ii) preocupação que só devemos ter depois de uma colossal publicação nas grandes revistas de imunologia e afins;
iii) destinada à preocupação apenas para os programas de extensão; e ainda pior:
iii) estigmatizada e delegada àqueles que não sabem fazer bancada ou ‘ruins de bancada’ ou o fulano(a) ‘mão-podre’ do laboratório.
A consequência de todas essas definições cristalizadas nos nossos discursos cotidianos é o atraso no avanço da reflexão sobre ensino e ainda mais sobre pesquisa em ensino nas áreas de ciências biológicas e médicas dos cursos de graduação brasileiros. Refletindo intrinsecamente na formação de recursos humanos liberados às centenas por ano com títulos de mestres e doutores que vão assumir posições nevrálgicas na universidade (ensino/pesquisa/extensão) para formar mais profissionais. Mas afinal, o que é ensino? E o que é pesquisa em ensino?
Aqui divido meu texto em três grandes partes na tentativa de faiscar a discussão. A primeira parte, a seguir, na dialética do que é ensino e pesquisa em ensino; na segunda parte, exemplifico a importância de uma boa pesquisa realizada em ensino de imunologia por pesquisadores brasileiros; a terceira são algumas propostas alicerçais para a pesquisa em ensino de imunologia.

1)    Os dois caminhos: diferentes e não um mais curto ou fácil que o outro.

 Nas consultas de qualquer dicionário da nossa língua encontramos definições que fazem uníssono para os termos de Ensino e Pesquisa em Ensino. Numa definição desses conceitos todos podemos dizer que Ensino é qualquer forma sistematizada de transmitir algum conhecimento para outrem em ambientes ditos como escolares (nosso caso aqui é a universidade). Pesquisa é um processo sistemático, utilizando metodologias específicas, para construção do conhecimento humano. Dessa forma, a Pesquisa em Ensino significa processo sistêmico, com metodologias e fundamentos teóricos próprios, sobre qualquer forma sistematizada de transmitir algum conhecimento a outrem. A pesquisa em ensino de ciências, no Brasil, obedece essa estrutura desde meados da década de 60 do século XX. E as metodologias usadas nessa grande nova área podem ser emprestados, sem grandes conflitos, à pesquisa para ensino das ciências biológicas e médicas do ensino superior.
Assim, a forma confusa e petrificada de associar ‘se ensino faço ensino, lógico trabalho com pesquisa em ensino’ pode ser rompida e abrir para mais outro ponto de grande confusão: a prática docente. Sim, a prática docente exige pesquisa, porém pesquisa para sua prática docente e não como geradora de conhecimento acadêmico. E como fazemos esse exercício da prática docente na atualidade? A grande única forma de contato que o pós-graduando se depara no seu processo de formação são com os ‘estágios de docência’ que na sua grande maioria constituem, de grande parte cronológica, de observação de algum docente experiente e uma aula de regência no meio disso tudo. Na grande maioria das vezes, o estudante passa por esse estágio, sem uma reflexão, com uma base teórica especializada, ou seja, sem ler um único texto sobre ensino e estágios supervisionados em ensino,  e refletindo sobre a prática do docente supervisor e ainda sobre sua prática docente na ocasião. O estágio fica relegado ao cumprimento de créditos.
A pesquisa em ensino não soluciona – nem de perto e nem tem essa intenção – de resolver os problemas e desafios da prática docente. Ela fornece bases de conhecimento de metodologias, como importância do experimento, do ensino por investigação, de ensino em espaços não formais e etc, que podem ser refletidos na prática docente. A pesquisa em ensino ainda gera conhecimento, propõe metodologias para a investigação, refuta práticas, abre perspectivas de metodologias para o ensino, testa hipóteses, valida sequências didáticas. Ou seja, ela é sim uma linha de pesquisa de extrema importância no campo de geração de conhecimento novo, inovador, com publicações de importância e produtos para o mercado, como exemplo de programas de didáticos para computador. Fazer pesquisa em ensino nas áreas de ciências biológicas e médicas não é estar na zona marginal da ciência, mas ela ocupa um dos pilares de sustentação para qualquer atividade investigativa experimental.  

2)    Um exemplo dos mais importantes: o conceito.

            Um dos assuntos mais espinhosos para qualquer professor de imunologia – seja ele iniciante ou emérito – é discutir com os alunos da graduação (que chegam impregnados das marteladas midiáticas e dos livros básicos do ensino médio) sobre o conceito básico: o que faz a imunologia? Ou, o qual a função do sistema imunológico? As primeiras respostas são sempre as mesmas: que a função do sistema imunológico está fixada na díade ataque-defesa, ou seja, da relação de microrganismos com o organismo. Porém esse drama não acaba por aí. Ele se espalha de forma natural e insolúvel no livros didáticos de imunologia, esses que usamos nas nossas aulas para a graduação. E ai não há professor, milagreiro que possa dissolver.
            Esse resultado foi interessantemente estudado e concluído (em um precioso e raro artigo de ensino de imunologia no Brasil) por Siqueira-Batista e colaboradores (2009). Nesse artigo, Siqueira-Batista se utiliza de uma metodologia simples e precisa na área de ensino que é a investigação, busca textual, sobre o tema nos livros didáticos, fazendo uma:
(a) revisão crítica da literatura, com textos obtidos nos livros e nos capítulos de livros de Imunologia;
(b) leitura crítica dos textos;
(c) elaboração de síntese reflexiva sobre o tema.
Esse estudo concluiu que os livros didáticos de imunologia, em sua quase totalidade, definem o sistema imunológico como ‘arsenal’, ‘militar’, não abrindo possibilidades de apresentação das funções do sistema imunológico, como por exemplo, na face da homeostasia.
            Esse trabalho mudou os rumos do ensino de imunologia? Não. E não por diversos motivos, dentre eles, a ausência da discussão do tema de forma firme e vertical, ou até, mesmo pela cristalização de como a história da imunologia foi construída ao longo desses anos e contextos históricos envolvidos. Ou seja, um bom tema para pesquisa.

            3) as propostas

Ensino, a prática docente, Pesquisa em Ensino e geração de conhecimento científico da área, apesar de terem suas diferenças claras, apresentam interfaces como qualquer outra grande área, como por exemplo, produtos gerados na pesquisa podem virar sequências didáticas e aplicadas no ensino do cotidiano da disciplina e formação de pesquisadores no tema. Além de gerar conhecimento básico para a temática: o que é ensinar imunologia?
Dessa forma, para maior amplitude da pesquisa em ensino de imunologia, as propostas são simples e altamente executáveis:
a) reconhecimento de que pesquisa em ensino de imunologia é uma linha produtiva e com perspectivas de integração com outras linhas do departamento e na universidade;
b) contratação de docentes com essa linha de pesquisa nos departamentos de imunologia;
c) financiamento de projetos para essa linha de pesquisa como auxílio financeiro e bolsas de pós-graduação.

Post de Daniel Manzoni

Referências bibliográficas:

SIQUEIRA-BATISTA, R.; GOMES, AP.; ALBUQUERQUE, V.S.; MANDALON- FRAGA, R.; ALEKSANDROVIWZ, A.M.C.; GELLER, M. Ensino de Imunologia na educação médica: lições de Akira Kurosawa. Revista Brasileira de Educação Médica. 33, 186-190, 2009

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